A advocacia diante da revolução digital
20 de agosto de 2024, 21h59
Embora o otimismo seja uma característica da inovação e dos idealizadores da tecnologia digital, visto que o progresso tende a trazer melhores condições para a vida humana, é preciso compreender que os efeitos do avanço tecnológico para a sociedade propiciam questões cada vez mais complexas e de difícil solução (atinentes à genética, à nanotecnologia e à inteligência artificial, por exemplo), apesar de se buscar no avanço digital a simplificação da forma de comunicação nas relações humanas mediante o uso da internet.

Ademais, numa economia de escala, a probabilidade de conflito tem uma dimensão maior e mais rápida. [1] De acordo com Fábio Ribeiro Porto, “na atualidade as sociedades evoluem de forma mais setorizada e segmentada, tornando a sociedade civil mais complexa, mais instantânea, conflituosa e mais tensa”. [2]
O novo humanismo iluminista deve ter como meta o bem-estar da condição humana, porém não pode permanecer cego à complexidade dos efeitos que o desenvolvimento tecnológico proporciona à sociedade. Não se trata de uma posição conservadora ou de “progressofobia”, mas de um convite para analisar o avanço da internet de um modo multifacetado e de forma pertinente aos respectivos setores sociais. [3]
A revolução digital caracteriza-se pela mudança de paradigma da comunicação, sendo cada vez mais rápida e ágil na propagação da informação. [4] Trata-se, principalmente, da internet da comunicação, mais utilizada no cotidiano pela população. Todavia, a revolução digital ou terceira revolução industrial também engloba a internet da energia e a internet da logística, que todas juntas podem ser denominadas de internet das coisas conectadas.
Segundo Luc Ferry, “a 3ª Revolução Industrial, que hoje vivemos, associa, como as outras, novas fontes de energia, nesse caso as energias descarbonizadas ou energias ‘verdes’ (energia eólica, fotovoltaica, geotérmica, células de hidrogênio e, logo, hidrato de metano), com uma nova forma de comunicação, a da internet, ou, como veremos, das internets, porque existem diversos tipos”. [5]
No que se refere ao impacto do progresso da tecnologia da comunicação no âmbito jurídico, o Poder Judiciário tem sido um dos vetores de transformação ao oferecer o serviço de justiça pelas plataformas eletrônicas [6] e também por ter iniciativa na elaboração de normas istrativas de organização que disciplinam tribunais estritamente digitais, como é o caso da Resolução CNJ nº 385/2021, a qual estabelece a criação de tribunais vinculados ao Núcleos de Justiça 4.0, especializados em determinadas matérias e com a competência sobre toda a territorialidade concernente ao tribunal local.
O aumento do uso da tecnologia na prestação jurisdicional está inserido numa nova onda de o à Justiça, a qual integra a disponibilidade do progresso tecnológico aos usuários do serviço de justiça como premissa a um processo eficiente, tempestivo e adequado. [7] Não é o objetivo aqui aprofundar o tema sobre o à justiça na era digital, mas cabe ressaltar que não se trata de o meramente a uma plataforma digital pertencente ao Judiciário e sim a um tribunal inteiramente online cuja eficácia de suas decisões não possui limite territorial geográfico.
Trabalho dispensável do advogado?
Ocorre que alguns idealizadores defendem que o trabalho do advogado será cada vez mais dispensável nos tribunais online à medida que o serviço for sendo desenvolvido e simplificado de modo que o próprio usuário da justiça poderá demandar judicialmente sem a necessidade de representação por um advogado. Richard Susskind chega a afirmar que o trabalho do advogado não é valioso em si, pois a sua função é obter o resultado que o usuário poderia sozinho requerer se o sistema judicial online fosse auto elucidativo. [8] De acordo com essa perspectiva, advogado é caro e burocrático e, por isso, opositor ao progresso tecnológico.
Num mundo ideal em que a disputa jurídica estivesse isolada de outros fatores como os socioculturais, políticos e também econômicos, onde houvesse respeito à igualdade material e aos demais direitos fundamentais, bastando o preenchimento de um formulário online para o o ao direito, a dispensa da defesa técnica para casos “simples” poderia ser uma forma de diminuir o custo, mas a realidade é que o jurisdicionado precisa de um advogado para garantir que o seu caso será julgado adequadamente, mesmo nos processos menos complexos. Os raros casos de outorga de capacidade postulatória às partes no modelo processual não-penal brasileiro são raros e sempre despertaram reações de classe.

Ainda que o design de software seja desenvolvido pensando no usuário do serviço de justiça, sem jargão jurídico e sem grandes formalidades, a resolução de conflitos em si é um tanto complexa e não se torna simples apenas com uma apresentação mais ível ao jurisdicionado. Como exemplo, sobretudo a partir da revolução digital, o direito probatório deve observar o direito fundamental de proteção de dados, cabendo ao advogado um papel mais proativo na formação e na produção de prova na intenção de preservar os direitos do jurisdicionado a um processo justo.
É possível afirmar que estamos constantemente fornecendo na internet dados a favor ou contra nós mesmos, de modo que o uso inadequado desses dados pelo Estado poderia configurar violação ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação informativa, sendo que a advocacia tem uma função crucial na proteção de dados pessoais.
Além da função de simplificar o serviço de justiça para o usuário, o qual não se resume ao o à plataforma digital, o advogado também tem o compromisso de proteger o cidadão contra o arbítrio do Estado. É inerente à função do advogado interpretar as leis que são cada vez mais abundantes, conjuntamente com os precedentes formados pelos tribunais, o que em si é muito valioso, sendo imprescindível que o usuário disponha de assistência jurídica técnica sob pena de não obter uma tutela de direito adequada e eficiente para o seu caso especificamente (também importante considerar que o uso indiscriminado do serviço digital da justiça pode ocasionar num volume de processo elevado, pois não haverá o filtro de litigiosidade realizado pelo advogado na interpretação do direito).
O progresso tecnológico pode ser um aliado do direito e da resolução de conflitos, inclusive com o advento da inteligência artificial, porém é preciso não esvaziar o processo judicial de garantias, desconfigurando-o ao ponto de não mais possuir pressupostos básicos de um processo justo.
Portanto, a revolução digital aumenta a responsabilidade do advogado e o valor do seu trabalho, visto que enfatiza sua função no o do jurisdicionado a uma prestação jurisdicional eficiente e adequada, frente a um ordenamento jurídico mais complexo e a um Estado, que embora digital, deve observar os direitos fundamentais processuais.
[1] BECKER, Daniel; FEIGELSON, Bruno. o à justiça para além de Cappelletti e Garth: a resolução de disputas na era digital e o papel dos métodos on line de resolução de conflitos (ODR) na mitigação da crise de justiça no Brasil. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos; WOLKART, Erik Navarro; LAUX, Francisco de Mesquita; RAVAGNANI, Giovani dos Santos. Direito, Processo eTecnologia. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 207.
[2] PORTO, Fábio Ribeiro. A desmaterialização da justiça. Justiça 4.0: o futuro do judiciário brasileiro. Estudo de caso da eficiência do modelo de justiça digital. Londrina/PR: Editora Thoth, 2023, p. 63.
[3] PINKER, Steven. O novo iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do humanismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 61 e 308.
[4] COUTINHO, Luiz Marques; GOMES, Filipi Lobo. Revolução digital e suas implicações no direito moderno: podemos considerar o o à internet como um direito fundamental no Brasil? Revista da Seção Judiciária de Alagoas, v. 1, nº 8, 2024, p. 223.
[5] FERRY, Luc. A revolução transumanista. Barueri, SP: Manole, 2018, p. 83-91)
[6] (BARREA, Adriana. A quarta-revolução: O papel do Poder Judiciário na hiper-história. Disponível em http://conjur-br.diariodoriogrande.com. o em 12/08/2024.
[7] SUSSKIND, Richard. On line courts and the future of justice. NY: Oxford University Press, 2019, p. 70.
[8] SUSSKIND, Richard. On line courts and the future of justice. NY: Oxford University Press, 2019, p. 236.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!