Direito dos municípios de litigar nos tribunais estrangeiros: Mariana e Brumadinho
20 de agosto de 2024, 7h09
Recentemente, o Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração) ajuizou no STF (Supremo Tribunal Federal), a ADPF 1.178 com o fim de impedir que municípios brasileiros litiguem, sponte sua, nas cortes estrangeiras na defesa de seus interesses particulares, sobretudo para se recomporem financeiramente pelos irreparáveis prejuízos socioambientais causados pelo rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho.

Na ADPF, o Ibram afirma que o ajuizamento de ações por municípios brasileiros em foros estrangeiros viola, inter alia, a imunidade de jurisdição do Brasil, a soberania nacional, a competência da União para manter relações com Estados estrangeiros e a competência do Senado Federal para autorizar operações externas de natureza financeira de interesse municipal.
Nenhum desses argumentos se sustenta, sendo ambos falaciosos e “criados” para cruelmente impedir os Municípios de se recomporem financeiramente dos danos sofridos pelos atos das mineradoras. Esclareci todos esses pontos em Parecer juntado aos autos da ADPF 1.178 para subsidiar a participação do Coridoce (Consórcio Público para Defesa e Revitalização do Rio Doce) como amicus curiae. Neste espaço, resumo os principais pontos alegados relativos a questões que tocam o Direito Internacional Público e o Direito Internacional Privado.
Imunidade de jurisdição e desnecessidade de representação da União
A imunidade de jurisdição é um benefício do Estado que o protege de ações intentadas contra si perante instâncias (judiciais ou istrativas) estrangeiras, dada a igualdade jurídica que todos os Estados têm perante a ordem internacional e o respeito mútuo que devem ter uns em relação aos outros.
Referida teoria não se aplica, evidentemente, para o caso de entes nacionais que demandam — como autores e não como réus, portanto — em questões privadas relativas a seus legítimos interesses, agindo em seu absoluto favor, a título de gestão de interesses particulares, não sendo o caso de submissão do ente nacional à ação proposta por outro Estado soberano em relação a si, perante o Poder Judiciário de Estado estrangeiro.
O autor da ADPF junta à sua inicial parecer de Nadia de Araujo, que, dentre outros argumentos, aduz “que o ato de buscar reparação em foro estrangeiro não pode ser adotado por ente federativo em nome próprio, porquanto representa renúncia à prerrogativa da imunidade de jurisdição, de titularidade do Estado soberano”. [1]
E continua: “Contudo, ainda que possível a renúncia, convém notar que a prerrogativa da imunidade decorre da soberania. Portanto, a decisão de afastá-la em um caso concreto deve ser tomada pelo seu titular que, exercendo soberania, dela pode dispor: o Estado. Uma tal decisão deve, ainda, ser necessariamente manifestada pela pessoa jurídica de direito interno a qual tenha sido atribuída competência para representar o Estado no exterior. No caso do Brasil, essa pessoa é a União”. [2]
O Ibram também junta aos autos pareceres, no mesmo sentido, de Ellen Gracie Northfleet e Daniel Sarmento. Ambos seguem idêntica linha de raciocínio do primeiro parecer.

Ao ler os argumentos exarados, percebe-se que ambas as manifestações confundem princípios e normas do Direito Internacional que não comportam qualquer aplicação ao caso concreto, primeiro, pelo fato de o ajuizamento de ações no exterior não representar a manutenção de “relações internacionais” em nome da República Federativa do Brasil ou qualquer tipo de paradiplomacia municipal, e, segundo, porque a imunidade de jurisdição do Estado — caso pudesse vir a ser aplicada à hipótese, o que não é cabível — não haveria jamais de servir para impedir a ação de entes federativos brasileiros na busca de seus interesses particulares em foros estrangeiros, em litígios contra pessoas jurídicas também de direito privado estrangeiras.
As teses expostas na inicial da ADPF e nos pareceres que a acompanham não assimilaram que a imunidade de jurisdição do Estado é medida de proteção da soberania brasileira contra ações de outrem no estrangeiro no exercício de seu jus imperii, não podendo servir para embaraçar atos de entidades do Estado que atuam em seu próprio favor no exterior, contra pessoas jurídicas de direito privado estrangeiras, sem qualquer liame estatal ou prática de atos jus imperii no Estado estrangeiro.
Seria, de fato, um contrassenso utilizar da regra da imunidade de jurisdição “às avessas” para impedir que Municípios brasileiros litiguem no estrangeiro na defesa de seus interesses privados, o que também se aplicaria a todos os demais atos de entes subnacionais — como os Estados-federados e o Distrito Federal — nas questões que empreendem junto a soberanias estrangeiras, sobretudo em matéria de cooperação internacional.
Não se trata aqui, portanto, de atos representativos da soberania brasileira no exterior, tampouco atos de usurpação das competências da União em matéria de Direito Internacional Público, não sendo o caso de ingerência dos Municípios na capacidade da União de representar a República Federativa do Brasil no exterior, pelo simples fato de que o ajuizamento de ações no estrangeiro por parte dos municípios não representa a manutenção de “relações internacionais” da República Federativa do Brasil, que estão afetas, v.g., à declaração de guerra, à celebração da paz, à nomeação ou recebimento de representantes diplomáticos, à celebração de tratados, à participação em organizações internacionais etc.
A União tem competência, nos termos do artigo 21, I, da Constituição, apenas para manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais, não podendo, por exemplo, celebrar tratados internacionais, cuja competência é do presidente da República, com autorização do Congresso (CF, artigos 84, VIII e 49, I).
No caso da celebração de tratados, o ato conjugado do Chefe do Executivo e do Congresso manifesta a vontade da República Federativa do Brasil no plano exterior, sem qualquer participação da União, que também é ente inferior à República, isto é, ao Estado brasileiro. A eventual representação que a União faz da república no plano exterior é limitada, portanto, àquelas estritas hipóteses constitucionais, tanto que, em matéria tributária, não pode a União isentar tributos estaduais ou municipais (artigo 151, III), mas pode a República Federativa do Brasil, por meio de tratados, fazê-lo, como já decidiu corretamente o STF. [3] Dentre as competências da União não está a de representar entes subnacionais no exterior em questão privadas afetas à sua autonomia político-istrativa.
As imunidades à jurisdição do Estado teriam lugar se fossem os Municípios brasileiros réus em ações movidas por outrem em jurisdições estrangeiras, não, evidentemente, quando agem na qualidade de autores em ações contra pessoas jurídicas de direito privado estrangeiras, caso em que o Poder Judiciário estrangeiro (v.g., do Reino Unido ou do País de Gales) guarda completa legitimidade decisória, impondo licitamente às partes o seu decisum no caso concreto. Daí o acerto da doutrina de Vera Maria Barrera Jatahy, para quem “[o] princípio da imunidade de jurisdição é aquele segundo o qual esta deixa de ser exercida em razão da qualidade do réu” [grifo nosso]. [4]
A competência que tem a União Federal para representar a República Federativa do Brasil em ações perante estados estrangeiros e organismos internacionais não impede, ao contrário encoraja, que outros entres (como os municípios) ajuízem ações em seu favor em casos não atinentes às relações internacionais do Brasil com estados estrangeiros e/ou organismos internacionais, pois, somente nesse âmbito, e não em outro, é que a União guarda competência representativa do Estado brasileiro. O ajuizamento de ações no exterior contra empresas privadas estrangeiras não ingressa no âmbito das relações internacionais do Brasil com Estados estrangeiros e/ou organismos internacionais, como se nota com clareza solar.
Raciocínio contrário foi utilizado no parecer de Nadia de Araujo para justificar o argumento de que os Municípios brasileiros, ao ajuizarem ações particulares perante foros estrangeiros contra empresas privadas estrangeiras, estariam se usurpando da competência da União para manter relações com Estados estrangeiros, citando, para tanto, manifestação do então Consultor Jurídico do Itamaraty Franchini-Netto, de 1984, para quem “a atual Constituição da República Federativa do Brasil, perfilhando o rumo tradicional, ao assegurar a ‘autonomia interna dos Estados’ em que cada um se rege pela Constituição e leis por ele próprio adotadas, reserva à União Federal, a competência exclusiva da manutenção de relações com Estados estrangeiros”. [5]
No entanto, a consulta dirigida ao ilustre consultor jurídico do Itamaraty Franchini-Netto dizia respeito ao caso de um projeto de lei que pretendia autorizar “a celebração de acordos e convênios entre prefeituras municipais e governos estaduais com entidades análogas do exterior, para a constituição de ‘cidades irmãs-estados irmãos’”.
Naquele caso, a opinião do consultor foi no sentido de que “só o Estado tem capacidade para exercer direitos e contrair obrigações internacionais, vale dizer, o direito de celebrar atos jurídicos internacionais”, razão pela qual concluiu que “não cabe dúvida de que o projeto em apreço, excede à legislação em vigor, contrariando o dispositivo que, dentro da sistemática liberalista, dá à União a competência privativa da condução da negociação com estados estrangeiros” [grifo do original]. [6]
Portanto, o parecer de Franchini-Netto jamais cuidou da possibilidade de municípios brasileiros ajuizarem ações no exterior, pois o que ali se discutia era a possibilidade de estados-federados e Municípios celebrarem tratados com entidades análogas de outros países, o que não é permitido no Brasil. Estava correto, portanto, o parecer do consultor do Itamaraty.
O que não está correta é a interpretação que deste entendimento fez a parecerista, que confundiu a manutenção de relações internacionais do Estado — v.g., a celebração de tratados internacionais por entes subnacionais, o que é vedado no Brasil — com atos no estrangeiro de pessoas jurídicas de direito público interno empreendidos no exercício de sua autonomia político-istrativa, sem quaisquer relações com outras potências soberanas enquanto tais.
Ademais, se fosse o ajuizamento de ações perante foros estrangeiros um ato atinente à manutenção de relações internacionais do estado brasileiro, certo é que estariam também os particulares impedidos de ajuizar ações idênticas em tribunais de outros países, pois, ao enquadrar-se um ato como afeto às relações internacionais de uma potência soberana, se está atribuindo efeitos erga omnes a todos aqueles (v.g., entes subnacionais, pessoas jurídicas de direito privado ou particulares) que não detêm o qualificativo de Estado estrangeiro ou de organização internacional.
Como se nota, nada de similar existe no ajuizamento de ações perante o Poder Judiciário de país estrangeiro, que não conota, em absoluto, que o Município brasileiro, nos parâmetros de sua autonomia político-istrativa, está se arrogando nas prerrogativas do Estado e, com isso, “mantendo relações com Estados estrangeiros”.
O ajuizamento de ações no exterior em questão privadas não representa e jamais representou um meio de manter relações com estados estrangeiros, quer à luz das regras constitucionais e de Direito Internacional Público em vigor no Brasil, e até mesmo à luz das normas do Direito Internacional Privado ou nos termos da legislação do foro em que ajuizadas tais ações, dado que a República Federativa do Brasil, neste caso, não está se “submetendo” involuntariamente ao jugo de outra potência estrangeira.
Inaplicabilidade da norma do artigo 52, V, da Constituição
Na ação, alega-se ainda afronta ao artigo 52, V, da Constituição, que diz competir privativamente ao Senado Federal “autorizar operações externas de natureza financeira, de interesse da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios”. [7]
O dispositivo em apreço tem área de abrangência específica e natureza dúplice, podendo dizer respeito tanto aos contratos istrativos internacionais, assinados diretamente pela União, pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios (sempre que o credor for uma empresa), como, também, aos acordos celebrados pelo Brasil com organismos econômicos ou financeiros internacionais, notadamente com o Fundo Monetário Internacional, os quais têm como ponto de partida o envio da “Carta de Intenções” a esse organismo internacional, culminando com a autorização relativa a um stand-by arrangement, que representa um acordo de crédito contingente junto ao FMI. [8]
Não há qualquer dúvida de que o artigo 52, V, da Constituição somente tem aplicação para os casos de acordos internacionais de natureza financeira solicitados pela União, pelos estados, pelo Distrito Federal ou pelos municípios, jamais podendo ser aplicado para outras finalidades, como, v.g., para uma suposta autorização do Senado para o fim de permitir a estados-federados ou a municípios que ajuízem ações em foros estrangeiros para a defesa de seus interesses particulares, pois tal ato é afeto ao direito de ação e de o à Justiça dos entes subnacionais e completamente estranho do escopo de uma operação externa de natureza financeira de interesse de tais entes.
Perceba-se que o dispositivo em questão demanda autorização do Senado para a conclusão de “operações” externas de natureza financeira, que são pedidos de auxílio financeiro da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios realizados tendo como ponto de partida os entes federativos brasileiros e como ponto de destino os bancos ou consórcios de bancos privados estrangeiros ou organismos econômicos ou financeiros internacionais, não servindo para autorizar o recebimento de indenização decorrente de decisão judicial proferida pelo Poder Judiciário de Estado estrangeiro.
As decisões estrangeiras que destinam indenizações a entes subnacionais brasileiros não são “operações” externas de natureza financeira de interesse do ente subnacional, a que alude o artigo 52, V, da Constituição, pois não são solicitações de auxílio financeiro realizadas a bancos privados estrangeiros ou a organismos econômicos ou financeiros internacionais.
Por isso, para litigarem no exterior na qualidade de autores não necessitam os municípios brasileiros autorização do Senado, podendo agir livremente no exercício de sua autonomia político-istrativa.
Direito dos municípios
É cruel pretender impedir, por meio do ajuizamento de uma ação do controle abstrato de normas, que municípios brasileiros logrem êxito em ações judiciais em foros estrangeiros, para o fim de se recomporem dos irreparáveis prejuízos socioambientais causados pelo rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho.
Juridicamente, é plenamente legítima a ação dos entes subnacionais de buscarem no estrangeiro a recomposição dos seus prejuízos, não havendo no Direito Internacional Público, no Direito Internacional Privado e no Direito Constitucional brasileiro impeditivo para tais ações das municipalidades no estrangeiro. Tal é o que se espera que reconheça o STF no julgamento da ADPF 1.178.
_________________________
[1] Parecer de Nadia de Araujo, p. 24.
[2] Idem, p. 26.
[3] STF, RE 229.096/RS, Rel. originário Min. Ilmar Galvão, julg. 16.08.2007. Sobre as isenções de tributos estaduais e municipais pela via dos tratados, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 15. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 338-348.
[4] JATAHY, Vera Maria Barrera. Do conflito de jurisdições: a competência internacional da justiça brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 27.
[5] Parecer de Nadia de Araujo, p. 26-27 [a parecerista informa o volume errado em que publicado o Parecer de Franchini-Netto].
[6] FRANCHINI-NETTO, M. Projeto de Lei – nº 3.411/84. Celebração de acordos e convênios entre prefeituras municipais e governos estaduais com entidades análogas do exterior. In: CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo (Org.). Pareceres dos Consultores Jurídicos do Itamaraty, vol. VII (1972-1984). Brasília: Senado Federal, 2004, p. 511-513.
[7] Para um comentário exaustivo da regra, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentário ao art. 52, V, da Constituição Federal de 1988. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva/Almedina/IDP, 2023, p. 1108-1112.
[8] Para detalhes, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Natureza jurídica e eficácia dos acordos stand-by com o FMI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005; e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Os acordos stand-by com o FMI e a competência internacional do Ministério da Fazenda. Revista Forense, vol. 370, ano 99, Rio de Janeiro, nov.-dez. 2003, p. 197-220.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!