Tempo Rei: o STF contra as velhas formas do viver
21 de agosto de 2024, 18h27
Não é pequena a pressão sobre um ministro do Supremo Tribunal Federal. Por mais embasada que seja uma sentença, ela não tem como evitar a frustração de quem não obteve o que queria. Isso ocorre em julgamentos que interessam a apenas duas pessoas, e ocorre muito mais nos que envolvem toda a sociedade, como aqueles feitos rotineiramente pela corte. Às vezes, porém, o tempo se encarrega de provar o indiscutível acerto de algumas decisões, de modo que mesmo aqueles que perderam, item o equívoco.
Um bom exemplo ocorreu há oito anos, quando o STF, apreciando o Tema 607 da Repercussão Geral — em decorrência do leading case do Recurso Extraordinário nº 733.433 —, fixou a tese de que “a Defensoria Pública tem legitimidade para a propositura de ação civil pública que vise a promover a tutela judicial de direitos difusos ou coletivos de que sejam titulares, em tese, pessoas necessitadas”.
Trata-se de um reconhecimento, pela Corte Constitucional, do que já está expressamente previsto no artigo 134 da Constituição, no artigo 4º, VII, da Lei Complementar nº 80/1994 e na Lei nº 7.347/1985 (com redação dada pela Lei nº 11.448/2007).
Após intensas discussões, o Supremo concluiu que a Defensoria Pública atua, cotidianamente, na defesa de grupos mais vulnerabilizados, e precisa ter os instrumentos necessários para viabilizar esta atuação. Assim, a decisão do STF reafirma que a Defensoria Pública deve dispor de um dos mecanismos mais importantes para garantir direitos e buscar a justiça social para os mais necessitados, que é a ação civil pública.
Não foi uma decisão fácil, nem livre de pressões. Houve forte atuação organizada em sentido contrário, não somente no processo judicial, mas também politicamente. Grupos organizados espalharam para ministros, governadores e parlamentares que estaria sendo criado um “superpoder” ou que o Ministério Público seria a única instituição pública “vocacionada” para a atuação coletiva, pois defenderia toda a sociedade, “inclusive os necessitados” e por isso não seria necessária a atuação da Defensoria.
Felizmente, prevaleceu o entendimento de que as pessoas necessitadas não poderiam ser excluídas da melhor atuação possível ao seu favor. A Defensoria nunca virou um “superpoder” e choveram atuações inovadoras. O melhor jeito de se descobrir um problema coletivo é ouvir quem sofre com ele. A Defensoria é a única instituição jurídica que atende pessoalmente milhares de pessoas necessitadas todos os dias. Essas vozes começaram a chegar nos tribunais.

Graças a aquele trabalho do STF, a Defensoria do Rio de Janeiro pôde ajuizar ação civil pública que garantiu que creches públicas atendessem crianças com menos de seis meses, como as creches particulares já faziam. Lembrem que a licença maternidade só dura quatro meses. Na Bahia, uma ação garantiu que os estudantes de escolas públicas recebessem auxílio-merenda durante a pandemia de Covid-19 e outra impediu o encerramento do Projeto Viver, o único projeto de portas abertas do Estado para atender jovens vítimas de abuso sexual.
Comprovação prévia da pobreza
Ainda hoje, de vez em quando, surge quem questione o fato de que, talvez, alguma criança rica tenha sido beneficiada por essas decisões. Juridicamente, poderíamos rebater lembrando que a interpretação de “necessitados”, na redação dos artigos 134 e 5º, LXXXIV da Constituição, deve se dar de forma ampla e abstrata, pois a vulnerabilidade pode ser verificada por diversos critérios que não se reduzem apenas à hipossuficiência sob o aspecto econômico.
Não há que se condicionar a atuação da Defensoria Pública à comprovação prévia da pobreza do seu público-alvo, pois tal restrição é incompatível com a natureza da própria instituição, que é de garantir o o à justiça de grupos vulneráveis por critérios econômicos, sociais ou jurídicos, como: mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar; idosos; pessoas com deficiência; crianças e adolescentes; populações indígenas e de comunidades tradicionais; consumidores; pessoas vítimas de discriminação por motivo de etnia, cor, gênero, origem, raça, religião ou orientação sexual; população LGBTQIA+; pessoas privadas de liberdade em razão de prisão ou internação; migrantes e refugiados; pessoas em situação de rua; etc.
Porém, diante da quantidade de crianças pobres que puderam ter o a uma creche, se alimentar e ter acolhimento, nós responderíamos com uma simples pergunta: e daí se alguma pessoa com boas condições financeiras também se beneficiar? Os necessitados deixaram de ser invisíveis e de morrer de fome e abandono. É isso o que importa.
Direito emancipador
Poderíamos citar centenas de outros casos, não somente a favor das crianças, mas também das mulheres, de quilombolas, de indígenas, de idosos, moradores de favela, usuários de transporte público… Mas, só aqueles seriam suficientes para que o STF estivesse orgulhoso por ter ado as pressões e decidido pelo interesse de quem menos podia pressionar ao fixar a tese no Tema 607.
Ali, a corte provou que o Direito pode ser mais que um instrumento de conservação e exercer um papel realmente emancipador. O tempo rei mostrou que a corte Suprema transformou as velhas formas do viver. O ditado segundo o qual a serpente da justiça só pica os descalços pode ser subvertido. Ela pode ajudá-los a se erguer. Depende de vontade. Parabéns ao STF e à Defensoria Pública!
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