Emendas parlamentares e o constitucionalismo de coalizão
23 de agosto de 2024, 6h02
A relação entre os poderes da República, a qual não deixou de experimentar sobressaltos desde a promulgação da Constituição que a assentou em termos democráticos, encontrou na dinâmica de emendamento parlamentar ao orçamento da União um novo foco de atrito.

Evento do governo com representantes dos Três Poderes
A tensão em torno das emendas parlamentares sempre permeou o jogo político entre o Poder Executivo e o Congresso. Num regime presidencialista multipartidário, sob os termos do qual o governante eleito deve compor coalizões majoritárias para avançar o seu programa político, o empenho e a realização de dotações reservadas aos parlamentares com o fim de beneficiar seus redutos eleitorais aparece como uma eficaz moeda de troca. Ou aparecia.
Aproveitando-se da fragilidade política de uma presidente cuja coalizão se desintegrara no contexto de crise fiscal e política pós-2013, o Parlamentou deu ignição a um movimento de redesenho normativo visando a conquistar espaço na confecção e na execução da lei orçamentária anual. Esse processo incluiu a impositividade das emendas individuais, através da EC nº 86/2015, e das emendas de bancada estadual, por meio da EC nº 100/2019, além da criação do modelo de transferência especial (“via Pix”) daquelas primeiras, desvinculando-as da indicação de projetos governamentais específicos, a partir da EC nº 105/2019.
A escassez de munição para articular uma base de apoio no Parlamento deu azo ainda à configuração, no plano infraconstitucional (e inconstitucional), de um modelo escuso de emendamento “secreto”, a partir do qual congressistas oficiavam o relator do projeto de lei orçamentária para fazer incluir rees extraoficiais cuja origem e destinação ficou fora das vistas do público. A emendas RP-9, no jargão técnico, tanto omitiam o parlamentar patrocinador, como dificultavam o rastreamento da verba executada na ponta.
O Poder Judiciário, na figura do Supremo Tribunal Federal, até então alheio a essa dinâmica político-normativa, reivindicou uma posição no conflito ao declarar a inconstitucionalidade do “orçamento secreto”, no âmbito das ADPFs 850, 851, 854 e 1014, sob o argumento de tal modelo corrompia o caráter republicano do processo orçamentário. Assentada a supremacia do regime constitucional de transparência e moralidade istrativa, restava ao Congresso conformar-se à decisão. Preferiu, contudo, encontrar vielas que colocassem o paroquialismo fora do radar da jurisdição, deslocando o segredo das RP-9 para as chamadas emendas de comissão.
Essas últimas, somadas às emendas individuais (incluindo as transferências especiais “via Pix”) e às emendas de bancadas estaduais, perfizeram, no orçamento de 2024, pouco mais de R$ 50 bilhões, ou 23% de todas as despesas discricionárias à disposição do governo para manter em funcionamento o aparato istrativo federal e realizar investimentos públicos.

A cada modalidade se atribui vícios específicos: as de comissão ocultam os proponentes, pois recaem sobre o relator do órgão parlamentar; as pix disfarçam o destino, ao compor o tesouro geral dos entes beneficiários, dificultando o controle. Comum a todas elas, ressai a dispersão de recursos e a ausência de aderência ao planejamento setorial das políticas públicas, em prejuízo à qualidade do gasto implementado. Sem contar o ensejo que a falta de transparência abre para desvios e corrupção.
Decisão ratificada e suas providências
Provocado por diferentes instituições acerca dessas fragilidades, bem assim a continuidade do modelo opaco cuja inconstitucionalidade já se havia decretado, agora sob outras vestes, o Plenário da Suprema Corte ratificou a série de decisões monocráticas do ministro Flávio Dino, proferidas nas ADIs 7.688, 7.695 e 7.697, sustando a execução das emendas impositivas e das emendas de comissão (além da realização de restos a pagar do finado orçamento de RP-9) até que se providenciasse o atendimento dos requisitos constitucionais da transparência e da rastreabilidade (artigo 163-A, da Constituição).
Dentre as condicionalidades impostas, destaca-se a indicação prévia em plataforma centralizada de informações referentes à transferência, a vinculação federativa do parlamentar proponente ao ente destinatário da verba, a abertura de conta exclusiva para o recebimento do ree e a fiscalização do dinheiro reado pelo TCU e pela CGU. Medidas concretas que, segundo apontou o ministro no voto proferido na ADI 7.695, asseguram “adequação à Constituição” e o “respeito à jurisdição deste Supremo Tribunal”.
Negociação e ajustes
Tais medidas de conformação à Constituição, todavia, não impediram que a interpretação constitucional se submetesse a ajustes negociados a partir da lógica dos interesses políticos. Na reunião interinstitucional que sucedeu a repercussão dos provimentos cautelares e a contraofensiva da Câmara Federal – ao dar andamento às propostas legislativas que restringem as competências dos STF –, chegou-se a um “consenso” quanto à operacionalização das emendas questionadas, o qual, ressalvada a necessidade de identificação antecipada do objeto para destinação da modalidade Pix, pouco alterou o panorama fático atual.
Porém, cabe indagar, por que o resultado da jurisdição constitucional, defrontada com a resistência política, deve submeter-se a rodadas de negociação?
Se a adequação à moldura constitucional supõe a adoção das providências determinadas pelo ministro Flávio Dino, como consignado na decisão, o que justifica convenções em torno do seu cumprimento, sob a forma de um “diálogo institucional”, senão a tentativa de dobrar a hermenêutica constitucional ao interesse pela manutenção em certa medida do modelo defeituoso de alocação que permite construir coalizões?
Não que a Corte Suprema opere (ou deva operar) sempre à margem dos fluxos da política. Afinal, como rememora Sustein [1], cabe a ela interpretar, em última instância, um documento jurídico-político: a Constituição. No entanto, que os limites da supremacia dessa Constituição se orientem mais pelo pragmatismo convencionado em almoços institucionais do que pela força normativa dos seus princípios não parece favorecer a legitimidade democrática reflexiva [2] do tribunal.
Conforme anota Arguelhes [3], não é problema que a atuação de juízes constitucionais tenha interseção com a dos políticos eleitos. O problema, sim, é que juízes ajam e sejam vistos como se fossem iguais aos políticos, com idêntica lógica de atuação, variando apenas os meios.
[1] SUSTEIN, Cass R. How to interpret the Constitution. Princeton University Press. 2023.
[2] Alude-se à tipologia propugnada por Pierre Rosanvallón. Segundo o teórico político francês, a legitimidade democrática se desdobra em três espécies de legitimidade. À luz deste modelo analítico, as cortes constitucionais atuariam sob uma legitimidade da reflexividade, ao funcionar como memória de longo prazo da democracia para preservação das expressões plurais do bem comum. Assim, mediante fundamentação reflexiva, as cortes tutelam a base normativa dos regimes democráticos, prevenindo abusos de poder. Ver: ROSANVALLÓN, Pierre. Legitimidade democrática. Tradução: Diogo Cunha. Ateliê das Humanidades, 2024.
[3] ARGUELHES, Diego Werneck. O Supremo: Entre o Direito e a Política. Rio de Janeiro: História Real, 2023.
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