Opinião

Fim das cláusulas de não concorrência?

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23 de agosto de 2024, 20h51

No início de maio deste ano, a Federal Trade Commission dos Estados Unidos publicou regra que proíbe o uso de cláusulas de não concorrência em todo o território norte-americano, exceto em algumas situações específicas. O argumento central da FTC é o de que o uso indiscriminado dessas cláusulas é uma prática injusta de competição, especialmente quando aplicada a trabalhadores que não têm o a informações confidenciais ou estratégicas, os quais correspondem a cerca de 18% da força de trabalho americana ou o equivalente a aproximadamente 30 milhões de pessoas.

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A regra proibitiva, que possui mais de 500 páginas, abrange, resumidamente, qualquer termo ou condição contratual que proíba, penalize ou impeça um trabalhador de buscar ou aceitar emprego nos Estados Unidos com uma pessoa ou entidade diferente de seu empregador.

A FTC deixou claro que a regra não se aplica às cláusulas de não concorrência já existentes firmadas com executivos seniores, ou seja, aqueles com remuneração total anual acima de US$ 151 mil e que ocupem posições “com autoridade para criar políticas”, nem nos atuais ou futuros casos de “venda de negócios” (o que significa que uma cláusula restritiva seria válida mesmo no contexto de uma aquisição empresarial com posterior sucessão de empregadores).

Contudo, a existência de sérios argumentos contra a regra geral da FTC, incluindo a alegação de que o órgão não possui competência legislativa, a menos que haja uma decisão judicial em contrário, a partir de setembro, as empresas americanas terão que fazer profundas adaptações em suas políticas.

Estimamos que o impacto da regra da FTC no Brasil seja, no máximo, indireto, caso uma política global venha a ser criada e a filial brasileira tenha que aplicá-la, a exemplo do que vem ocorrendo com as clawback clauses, que aram a ser exigidas pela Security Exchange Commission (SEC) no final de 2022.

Em todo caso, a discussão acalorada sobre as cláusulas de não concorrência nos Estados Unidos, especialmente considerando o forte viés político da FTC, ressaltou a falta de regramento específico sobre o tema em nosso País, provocando pertinentes reflexões.

No Brasil, ao longo dos anos , alguns projetos de lei foram propostos, como o PL nº 4.030/19 [1], que pretende acrescentar um artigo específico à Consolidação das Leis do Trabalho sobre o tema. Todavia, até o presente momento não existe nenhuma legislação específica a respeito do assunto.

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Atualmente, o tema é gerido pela jurisprudência civil e trabalhista. Nota-se que a jurisprudência não é vinculante, ou seja, não existe obrigatoriedade legal de observância de seus precedentes não qualificados, embora sirvam como forte indicador de tendência. Assim, caso o assunto venha a ser questionado judicialmente, a posição majoritária é praticamente inescapável.

Para que uma cláusula de não concorrência seja válida perante o Poder Judiciário no Brasil, ela precisa cumprir, cumulativamente, com os seguintes critérios: ter limite territorial razoável; ter limite temporal e, especialmente, inferior a cinco anos; especificar as atividades concorrentes e oferecer compensação justa pela restrição imposta.

Compensação justa

Na Justiça do Trabalho, não existe um montante ou porcentagem mínima para a definição de “compensação justa”, pois ela depende do escopo da restrição: quanto mais abrangente o escopo, maior deve ser a compensação (isto é, mais próxima de 100% do último salário/remuneração praticada junto ao empregado).

É fundamental ressaltar que, além das cláusulas de não concorrência, existem outras obrigações restritivas pós-contratuais frequentemente incluídas em contratos de trabalho, tais como as cláusulas de confidencialidade, não-solicitação e não-difamação.

Os tribunais trabalhistas entendem que estas obrigações não demandam o cumprimento dos mesmos critérios de validade das cláusulas de não concorrência. Em particular, não exigem a presença de uma contrapartida por parte do empregador, uma vez que não impõem uma restrição direta ao trabalho do empregado.

Por exemplo, a proibição de um empregado de solicitar clientes ou outros empregados do empregador não o impede de exercer sua profissão em outra empresa. Da mesma forma, a obrigação de não difamar o empregador não cria uma restrição ao trabalho, mas sim impõe um dever ético e legal de não prejudicar a reputação da empresa após o término do contrato de trabalho.

A obrigação de confidencialidade é uma das mais importantes na relação de trabalho, sendo essencial para a preservação de informações estratégicas e sensíveis da empresa. Seu cumprimento é considerado obrigatório, mesmo na ausência de previsão contratual expressa, em virtude da natureza implícita desse dever, o qual impõe ao ex-empregado a obrigação de não agir de forma prejudicial aos interesses da empresa, seja divulgando informações confidenciais, seja praticando atos criminosos de concorrência desleal (artigo 195 da Lei nº 9.279/96).

A existência de obrigações restritivas, cada vez mais frequentes nos contratos de trabalho, demonstra a necessidade e utilidade delas como ferramenta de proteção empresarial. É essencial que ambas as partes estejam plenamente conscientes dos critérios, direitos e deveres relacionados às cláusulas restritivas, contribuindo, assim, para evitar a judicialização exacerbada sobre o tema e permitindo uma fluidez maior dentro do mercado de trabalho.

A iniciativa da FTC nos EUA levanta questões cruciais sobre práticas de competição justa e proteção dos trabalhadores, destacando a necessidade de o Brasil encontrar um equilíbrio entre a proteção dos negócios e dos trabalhadores. O Brasil, ao observar e aprender com experiências internacionais, pode encontrar soluções que beneficiem a todos os envolvidos, garantindo a competitividade e a justiça no mercado de trabalho. 

 


[1] O projeto ainda está em tramitação na Câmara dos Deputados. Possui a intenção de limitar quais empregados poderiam ser abrangidos pela obrigação de não concorrência, bem como limitar o tempo em que ela duraria e o montante da compensação devida.

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