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Pagamento por serviços ambientais: transição necessária para sustentabilidade sistêmica

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  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU) advogada mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR professora de Direito Ambiental pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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24 de agosto de 2024, 8h00

Os pagamentos por serviços ambientais (PSAs) são incentivos financeiros oferecidos a proprietários de terras ou comunidades que adotam práticas que preservam ou melhoram os serviços ecossistêmicos. Esses serviços incluem, por exemplo, a conservação da biodiversidade, a proteção de recursos hídricos, o sequestro de carbono e a manutenção de paisagens naturais. O objetivo do PSA é criar um incentivo econômico para que os indivíduos ou comunidades mantenham práticas sustentáveis que beneficiem o meio ambiente.

A Lei nº 14.119, sancionada em 13 de janeiro de 2021, estabelece a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA) no Brasil, criando um marco legal para a implementação de mecanismos de PSA no país. Essa lei visa incentivar a conservação dos ecossistemas, a manutenção e recuperação de áreas degradadas e a promoção do desenvolvimento sustentável por meio de incentivos financeiros ou de outra natureza a indivíduos ou comunidades que prestam serviços ambientais.

A PNPSA reconhece uma variedade de serviços ambientais, como a conservação da biodiversidade, a proteção dos recursos hídricos e o sequestro de carbono, e permite que os pagamentos sejam realizados por meio de recursos públicos ou privados. A lei também estabelece diretrizes para a implementação dos programas de PSA, incluindo a necessidade de transparência, monitoramento e avaliação dos resultados, além de promover a inclusão social e econômica das populações locais, especialmente comunidades tradicionais e agricultores familiares.

Complementaridade

O artigo 5º, inciso IV, da Lei nº 14.119/2021 estabelece como diretriz da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA) a complementaridade dos Pagamentos por Serviços Ambientais em relação aos instrumentos de comando e controle. Essa diretriz indica que os mecanismos de PSA não devem substituir as obrigações legais impostas pelos instrumentos de comando e controle, mas sim atuar de maneira complementar a eles.

Os instrumentos de comando e controle, como mecanismos regulatórios titularizados pelo poder público, incluem um conjunto de esforços que visam estabelecer parâmetros e limites de uso dos recursos naturais. Eles incluem a criação de leis, regulamentos e normas que estabelecem limites e padrões ambientais, além de preverem sanções para o descumprimento. Exemplos incluem limites de emissão de poluentes, limitações para o uso de áreas destinadas a proteção ambiental, como o caso das áreas de preservação permanente e reservas legais, requisitos de licenciamento ambiental, dentre outros. Esses instrumentos são baseados em uma abordagem coercitiva, na qual o cumprimento é garantido através de fiscalização e aplicação de penalidades.

A ideia é que, enquanto os instrumentos de comando e controle estabelecem padrões mínimos obrigatórios para a proteção ambiental, os PSAs oferecem incentivos adicionais para que indivíduos e comunidades adotem práticas que vão além desses requisitos mínimos. Essa abordagem busca criar sinergias entre diferentes ferramentas de política ambiental, promovendo uma gestão mais eficiente e eficaz dos recursos naturais. Ao integrar PSAs com instrumentos regulatórios, a legislação visa ampliar o alcance e o impacto das ações de conservação, incentivando práticas sustentáveis que não apenas cumprem as normas legais, mas que também contribuem de maneira proativa para a preservação e recuperação dos ecossistemas.

Spacca
Andrea Vulcanis tarja 2022

Certamente, a fiscalização de atividades ilegais é uma ferramenta vital no combate à degradação ambiental, mas, isoladamente, como a própria lei reconhece, não é suficiente para garantir a preservação do meio ambiente e dos serviços ecossistêmicos que ela proporciona.

Só o necessário

É importante reconhecer que a fiscalização e os instrumentos de controle em um país de dimensões continentais como o Brasil é uma tarefa monumental. Mesmo com um aumento no número de fiscais, veículos, aeronaves e equipamentos disponíveis para os órgãos ambientais em todas as esferas de governo, é inviável garantir a presença efetiva do Estado em todas as regiões do país.

Por outro lado, a simples imposição de regras e o controle do seu cumprimento não incentiva proativamente práticas sustentáveis entre indivíduos e comunidades. Esse enfoque tradicional e muito usual no Brasil, baseado em coerção e penalidades, tende a criar uma relação de resistência e de cumprimento mínimo, na qual as pessoas e organizações fazem apenas o necessário para evitar sanções legais, sem necessariamente adotar uma mentalidade de sustentabilidade, ou seja, sem adquirir uma ampliação de consciência sobre a relação entre pessoas e natureza.

Nesse sentido, faz-se importante avançar, inclusive com políticas públicas, para a formação de uma consciência ambiental que é um estado de percepção em que os indivíduos reconhecem a interdependência entre suas ações, a qualidade de vida e o meio ambiente, o que requer uma ampliação da visão de mundo que vá além das necessidades imediatas e considere as consequências a longo prazo das ações pessoais e coletivas.

Em outras palavras, para uma mudança genuína de comportamento em direção à sustentabilidade, é necessário que os indivíduos em por um processo de reavaliação de valores e crenças. Assim, promover atitudes positivas em relação ao meio ambiente, estabelecer normas sociais que valorizem a sustentabilidade e aumentar a percepção de controle dos indivíduos sobre suas ações são os cruciais.

Mudança de paradigma

É importante que se reafirme que a aquisição de uma consciência ambiental verdadeira requer uma mudança de paradigma fundamental em relação ao uso e exploração dos recursos naturais. Historicamente, o paradigma dominante tem sido o de exploração e uso ilimitado dos recursos naturais, impulsionado pela ideia de que a natureza é uma fonte inesgotável de matéria-prima para o desenvolvimento econômico.

A superação desse paradigma exige uma reflexão profunda sobre a evolução histórica e filosófica das relações humanas com o meio ambiente. Essa separação, que pode ser vista como uma desconexão entre a humanidade e o mundo natural, tem raízes em várias correntes de pensamento e eventos históricos ando pela revolução científica, o Iluminismo, a industrialização e o dualismo cartesiano que separa mente e corpo e cria a ideia de que a natureza é um mecanismo que pode ser decomposto e explorado sem considerar suas complexidades e interconexões.

Fritjof Capra, renomado físico e teórico de sistemas, propõe uma visão sistêmica da vida que desafia a perspectiva reducionista tradicional. Segundo Capra, para enfrentar os desafios ambientais, sociais e econômicos do século 21, é essencial adotar uma abordagem que veja o mundo como uma rede interconectada de relações [1].

A abordagem reducionista tende a fragmentar o conhecimento, analisando partes isoladas sem considerar o todo. Isso pode levar a soluções que resolvem problemas locais, mas criam novos problemas em outros lugares ou em longo prazo. É o caso da adoção das políticas de comando e controle, da forma como vem sendo adotadas no Brasil, ou seja, sem a integração com outras estratégias e políticas públicas.

Nesse sentido, a Política Nacional de Pagamentos por Serviços Ambientais, quando vista a partir de sua complementaridade em relação às políticas públicas que envolvem instrumentos de comando e controle, pode sim apoiar e ajudar a promover uma nova relação entre pessoas e natureza, por meio do oferecimento de incentivos positivos. Tais incentivos podem motivar indivíduos, grupos, comunidades e instituições a mudarem práticas tradicionais.

Parte da transição

Os Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA) representam uma política inovadora para incentivar práticas sustentáveis, recompensando financeiramente aqueles que conservam e melhoram os serviços ecossistêmicos. No entanto, é importante reconhecer que, embora eficazes, os PSAs ainda operam dentro de um paradigma reducionista e, portanto, devem ser vistos como parte de uma transição mais ampla em direção a uma mentalidade verdadeiramente sustentável.

Os PSAs, ao valorizarem serviços ecossistêmicos específicos, como a captura de carbono, o desmatamento evitado ou a preservação de bacias hidrográficas, sem necessariamente integrar esses serviços em um contexto ecológico, cultural, econômico e social mais amplo, podem levar a intervenções que, embora benéficas em um aspecto, não consideram a complexidade e a interdependência dos sistemas sociais humanos e naturais junto à consciência dos beneficiários.

Além do mais, ao atribuir um valor monetário aos serviços ambientais, os PSAs podem perpetuar a visão de que a natureza é um recurso a ser explorado economicamente. Isso pode limitar a compreensão mais holística da natureza como um sistema vivo e interconectado que possui valor intrínseco além do econômico.

Nesse sentido, como parte de um processo de transição, os PSA podem ser importantes. Eles ajudam a criar uma ponte entre práticas tradicionais de exploração e novas formas de interação com o meio ambiente que valorizam a conservação e a sustentabilidade.

Porém, para serem verdadeiramente eficazes, os PSAs devem ser integrados a outras políticas e abordagens que promovam a sustentabilidade de forma mais abrangente. Isso inclui educação ambiental, desenvolvimento de economias circulares e fortalecimento de governanças participativas que considerem as necessidades e os conhecimentos locais.

Mudança profunda

Além dos incentivos econômicos, é fundamental promover uma mudança nos valores e na cultura, em que a sustentabilidade seja vista como um valor intrínseco e parte essencial do bem-estar humano e planetário.

Portanto, para que práticas sustentáveis sejam mantidas a longo prazo, é importante que a motivação vá além de recompensas extrínsecas, como benefícios financeiros oriundos do PSA.

Para garantir a manutenção de práticas sustentáveis a longo prazo, é crucial que a motivação dos indivíduos e comunidades transcenda as recompensas extrínsecas, como benefícios financeiros.

A verdadeira sustentabilidade emerge de uma transformação cultural e valorativa, em que a proteção e a conservação do meio ambiente são vistas como responsabilidades intrínsecas e essenciais para o bem-estar coletivo. Isso requer uma abordagem que cultive a motivação intrínseca, na qual as pessoas adotam práticas sustentáveis não apenas por medo de sanções ou por recompensas financeiras, mas porque elas se alinham com seus valores pessoais, éticos e culturais.

Enquanto parte de um processo de transição, os PSAs são muito bem vindos, mas não se pode perder de vista que um futuro sustentável depende de que a valorização do meio ambiente e por um visão sistêmica da vida, em que será necessário transcender a dependência de incentivos financeiros e o cultivo de uma mentalidade que valorize intrinsecamente a sustentabilidade como um pilar fundamental do desenvolvimento humano e ambiental. Essa abordagem holística, integrada e regenerativa é essencial para assegurar um futuro equilibrado e resiliente para todos.

 


[1] CAPRA, Fritjof; LUISI, Pier Luigi. A Visão Sistêmica da Vida: Uma Concepção Unificada e Suas Implicações Filosóficas, Políticas, Sociais e Econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014.

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  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU), advogada, mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR, professora de Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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