Opinião

Limites à proposta de consensualidade na apreciação da constitucionalidade da Lei 14.701

Autores

  • é professor associado de Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da UFMG. Doutor e mestre em Direito pela UFMG. Advogado. Vice-presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos. Coordenador do Programa Ciranda de Justiça Restaurativa da UFMG.

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  • é acadêmico da Faculdade de Direito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

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25 de agosto de 2024, 6h02

João Mangabeira advertiu há mais de meio século que o Supremo Tribunal Federal deixa a desejar “em pontos excepcionalmente nobres de suas manifestações, na salvaguarda das instituições republicanas em seus princípios, em sua mecânica, nos direitos subjetivos” [1].

Gustavo Lima/STJ

É a situação que se vivencia na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 87, com um procedimento que ameaça vulnerar direitos fundamentais dos povos indígenas. A ADC foi proposta em defesa de uma lei, a de nº 14.701, que, supostamente, regulamenta “o art. 231 da Constituição Federal, para dispor sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas” [2].

Se é verdade que o artigo 231 da CR/88, como decidiu o STF, tutela os direitos fundamentais dos povos indígenas, “com as consequentes garantias inerentes à sua proteção, quais sejam, consistir em cláusulas pétreas, anteparo em face de maiorias eventuais, interpretação extensiva e vedação ao retrocesso”, a lei em questão é natimorta.

Tal conclusão se baseia na afirmação do ministro Gilmar Mendes, que em perfunctória análise mencionou que a malsinada lei “contém dispositivos que ao menos em um exame inicial, podem ser interpretados de modo a contrariar parte das teses fixadas no referido julgamento” [3].

Laconismo do ministro

A toda evidência, portanto, a Lei nº 14.701/2024 é inconstitucional. Entretanto, a despeito de vislumbrar o manifesto vício de constitucionalidade, o ministro Gilmar Mendes, mesmo assim, deixa de sustar seus efeitos. Ao negar a liminar, permitiu que a Lei nº 14.701 continuasse a vigorar, protelando assim, a efetivação dos direitos indígenas reconhecidos no julgamento de mérito do Tema 1.031 da Repercussão Geral pelo STF.

Ao determinar, em sua decisão, que os chefes dos Poderes Executivo e Legislativo, além da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da República “apresentem propostas no contexto de uma nova abordagem do litígio constitucional discutido nas ações ora apreciadas, mediante a utilização de meios consensuais de solução de litígios”, o ministro Gilmar Mendes, no laconismo desses termos, coloca em risco os direitos dos povos indígenas.

Uma nova abordagem desta temática deve, necessariamente, partir da garantia de direitos dos povos indígenas a partir jurisprudência do STF. Desta maneira, afasta-se, desde logo, a possibilidade de se adotar a tese do marco temporal como critério definidor do território indígena, impondo, ainda, a observância de um plêiade de direitos fundamentais invioláveis.

Disparidade e limites

Spacca

Outra questão, a ser considerada na consensualidade alvitrada pelo STF, é a desproporcional disparidade de poderes entre os povos indígenas e os demais interlocutores, participantes do procedimento consensual. Assim, para evitar que as forças dominantes se tornem soberanas e façam desmoronar o arcabouço dos direitos fundamentais dos povos indígenas, esses direitos, enquanto limites constitucionais à “conciliação com notas de mediação” hão de ser respeitados [4].

A convocação para a audiência pública não pode, simplesmente, propor “uma nova abordagem” sobre o direito dos povos indígenas ao território.  Não se pode inovar tudo, há limites intransponíveis. É inissível transacionar sobre direitos fundamentais, declarados e certificados pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal como cláusulas pétreas.

Com efeito, é necessário definir o objeto, estabelecer as premissas e limites do que se pode transacionar no âmbito da ADC nº 87.

Conditio sine qua non para o diálogo.

Assim, os povos indígenas somente estarão com igual dignidade para assentar-se à mesa de diálogo quando lhes for esclarecido o que está em jogo nesta  “nova abordagem” por meio de uma gourmetizada “conciliação, com notas de mediação” [5]. Somente quando lhes for reconhecida igual dignidade para participar da mesa de diálogo [6], e tendo como ponto de partida: 1) a premissa que direitos indígenas positivados são direitos fundamentais, e 2) do reconhecimento do seguinte:

  1. da “existência dos direitos territoriais originários dos indígenas, que lhe preexistem, logo, o procedimento istrativo demarcatório não constitui a terra indígena, mas apenas declara que a área é de ocupação pelo modo de viver da comunidade. A posse indígena espelha o habitat de uma comunidade, a desaguar na própria formação da identidade, à conservação das condições de sobrevivência e do modo de vida indígena, distinguindo-se da posse civil, de feição marcadamente econômica e mercantil”.
  2. “A proteção constitucional aos ‘direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam’ independente da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 e da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição.”
  3. “As terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas destinam-se à sua posse permanente e usufruto exclusivo das riquezas do solo, rios e lagos, como desdobramentos da posse qualificada exercida em área de domínio da União, afetada à manutenção do modo de vida comunitário.”
  4. “A ocupação tradicional das terras indígenas é compatível com a tutela constitucional do meio ambiente, sendo assegurado o exercício das atividades tradicionais dos povos indígenas.”
  5. “As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis.” [7]
  6. Pleno respeito à Convenção 169 da OIT, em todas as fases do procedimento, sem exceção.

A partir desses sustentáculos de garantia dos direitos fundamentais dos povos indígenas, haverá possibilidade de se dialogar sobre o tema, visando a construir soluções legítimas, a partir da consensualidade.

Pontos a serem consensuados

O decidido no STF, RG-Tema 1.031, está pendente de efetividade porque o Estado está em mora, no que diz respeito aos deveres de promover, assegurar e concretizar o direito fundamental dos povos indígenas ao território. Desta maneira, tarda em desincumbir-se do dever de estabelecer os procedimentos e as medidas necessárias para efetivar, com agilidade, a demarcação, regularização e titulação das terras e territórios dos Povos Indígenas, minimizando as situações de violência a que estão expostos os indígenas.

A fim de demonstrar vontade autêntica de solucionar os conflitos fundiários envolvendo territórios indígenas, o Estado deverá comprometer-se, na mesa de diálogo, com no mínimo o seguinte:

– Abster-se de outorgar concessões a terceiros para a exploração de bens e recursos localizados em áreas que correspondam às terras sobre as quais recairá a delimitação, demarcação e titulação correspondentes.

– Assunção da responsabilidade por respeitar, promover e garantir os direitos humanos dos povos indígenas.

– Construir uma política ativa e sistêmica de proteção dos povos indígenas contra as violências que veem sofrendo, principalmente da violência praticada pelos invasores de suas terras.

Esses devem ser os pontos a serem consensuados  nesta “nova abordagem”:  É necessária a definição de cronograma para retirar o Estado de sua letargia, Definir os prazos para o Estado desincumbir-se de seus deveres com vistas à efetivação do direito dos povos indígenas ao território. É momento oportuno para que se comprometa com a reparação histórica aos povos indígenas.

Acredita-se, assim, que atendidos, pelo menos os apontamentos apresentados, a mesa de diálogo estará com plena representatividade e legitimidade para  buscar soluções que melhor contemplem o interesse de todos os povos indígenas e não indígenas.

 


[1] Apud, SAMPAIO, José Adércio Leite.  A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Dely Rey, 2002, p. 984.

[2] BRASIL. STF. RE 1017365

[3] BRASIL. ADC87. Rel. min. Gilmar Mendes. Decisão monocrática.

[4] FUNAI: Prioridade da atual gestão, demarcação de terras indígenas avança nos primeiros 18 meses de governo — Fundação Nacional dos Povos Indígenas (www.gov.br)

[5] BRASIL. STF. ADC 87, REl. Min. Gilmar Mendes. Decisão monocrática.

[6] FORUM. Marco Temporal: Indígenas são barrados de audiência no STF e Barroso pede desculpas. 5/8/2024.

[7] STF, RG: TEMA 1031, DJe 15/2/2024

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  • é professor associado de Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da UFMG. Doutor e mestre em Direito pela UFMG. Advogado. Vice-presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos. Coordenador do Programa Ciranda de Justiça Restaurativa da UFMG.

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