O prazer da dor: reflexos da cultura midiática no direito penal
27 de agosto de 2024, 6h04
Como sempre acontece em determinados casos criminais, alguns setores da mídia os explora à exaustão e deixa um pequeno espaço para um contraponto. Explico: em determinadas operações da polícia, que obviamente dá a sua versão dos fatos, os investigados são pré-julgados pela sociedade e, muitas vezes, pelas outras instâncias de controle social que acabam se contaminando pela versão “oficial” noticiada massivamente. Uma falsa verdade contada várias vezes vira uma verdade.

Já não é de agora que se ocupa uma página inteira nos veículos de comunicação impressos e destina-se à defesa uma nota de dois ou três parágrafos. Não que o veículo de comunicação tenha que respeitar o contraditório. Isso ele nunca fará, primeiro porque interessa vender o fato na forma de um grande crime, uma atrocidade; segundo porque o contraditório será exercido nos autos do processo. Isso em parte não está errado. O que está equivocado por um setor da mídia é como se pode destruir vidas ou empresas sem a responsabilidade de uma apuração mais séria antes da divulgação dos supostos fatos criminosos.
Parece que a história recente ainda não ensinou determinados meios de comunicação que antes da divulgação massiva sobre a apuração de suposta prática delitiva existem pessoas e empresas que devem continuar suas operações, claro, desde que dentro da legalidade. Acabar com elas antecipadamente não é e não pode ser um caminho responsável. Veja-se recentemente a operação Lava Jato e, preteritamente, o caso da Escola de Base em São Paulo.
Utilizo os dois casos somente para demonstrar que empresas foram destruídas com processos que foram posteriormente anulados — isso no primeiro exemplo —, e um casal acabou arruinado pessoalmente e financeiramente no segundo exemplo.
A influência cada vez maior dos meios de comunicação de massa nos processos de formação da opinião sobre os mais diversos assuntos é uma das características mais marcantes da globalização. Com efeito, na sociedade de consumo contemporânea, os meios de comunicação são utilizados como mecanismos para fomentar crenças, culturas e valores, de forma a sustentar os interesses — invariavelmente mercadológicos — que representam.
A busca do sensacional e do espetacular, do furo jornalístico, é o princípio de seleção daquilo que pode e daquilo que não pode ser mostrado, o que é definido pelos índices de audiência — ou seja, pela pressão do campo econômico, do mercado, sobre os jornalistas [1]. E as imagens, aliadas às legendas que dizem o que é preciso ler e compreender, produzem o “efeito de real”, ou seja, fazem ver e fazem crer no que fazem ver. Com isso, os jornalistas e demais “trabalhadores da mídia” transformam-se cada vez mais em “pequenos diretores de consciência que se fazem, sem ter de forçar muito, os porta-vozes de uma moral tipicamente pequeno-burguesa, que dizem ‘o que se deve pensar’ sobre o que chamam de ‘os problemas da sociedade'”. (BOURDIEU, 1997, p. 65).

A descrição acima relata justamente o que ocorre em determinados casos de supostas práticas delitivas. As fotos e as imagens são previamente escolhidas indicando que aqueles investigados, por sua condição de vida, estariam cometendo delitos. Isso ocorre com mais força quando se trata de investigados que se destacam pelo patrimônio alcançado num curto espaço de tempo. Nesses casos, nada melhor do que mostrar como vivem determinadas pessoas que tiveram substancial aumento patrimonial, como isso por si só fosse um delito. Não há o mínimo cuidado de investigar a origem do patrimônio, pois, o melhor mesmo é dizer que toda procedência é ilícita. O estrago está feito.
Especialistas ajudam na publicidade da criminalização
Essa “vagueza” de respaldo teórico do discurso midiático sobre a criminalidade é suprimida pela opinião dos especialistas ad hoc que, diante de um determinado caso concreto, transformam-se, da noite para o dia, em autoridades no assunto [2]. Zaffaroni (2007) identifica essa “publicidade” do sistema penal com a publicidade de determinados analgésicos: em ambos os casos, utilizam-se os especialistas ou atores para cumprir com o papel de dar credibilidade àquilo que se expõe.
Reveste-se, assim, o discurso leviano da mídia com a autoridade dos especialistas, credenciados pelo exercício profissional, pela academia, pela ocupação de um cargo público ou até mesmo por um episódio de vida privada, no caso das vítimas que são chamadas — e instrumentalizadas — a contribuírem com o caso a partir das suas “experiências pessoais”.
Essas reflexões são importantes porque, como já mencionamos, há exemplos de sobra de pré-julgamentos midiáticos. Atualmente, com a velocidade das redes sociais, a destruição de empresas e de reputações pessoais torna-se ainda mais preocupante.
Deve-se fazer a devida ressalva em relação à mídia que cobre os fatos criminosos ocorridos no País. Alguns setores da imprensa — o bom e correto jornalismo — preocupam-se na hora da investigação de avaliar corretamente os fatos praticados. Não bebem diretamente da fonte dos órgãos de persecução penal. Buscam também verificar se os fatos apurados tecnicamente estão corretos. Se não há falhas ou outras percepções que podem esclarecem melhor o que está sendo investigado. Isso é jornalismo responsável.
Por fim, enquanto não tivermos a consciência de que o prazer da divulgação massiva de suposto delito praticado não é e não deve ser o procedimento correto antes que se apure a responsabilidade criminal dentro do processo penal, respeitando-se o contraditório e a ampla defesa, preceitos constitucionais esquecidos por alguns, não andaremos no melhor caminho.
A ânsia pela divulgação de fatos prematuros deixa de lado outro princípio constitucional de que muitos se esquecem: o da presunção da inocência. Infelizmente, isso não é assimilado por todos. O melhor é vender a notícia mesmo. O investigado que dê um jeito de provar sua inocência antes mesmo do processo penal começar. Tempos estranhos!
[1] Como destaca Bourdieu (1997, p. 67), “não há discurso (análise científica, manifesto político etc.) nem ação (manifestação, greve etc.) que, para ter o ao debate público, não deva submeter-se a essa prova de seleção jornalística, isto é, a essa formidável censura que os jornalistas exercem, sem sequer saber disso, ao reter apenas o que é capaz de lhes interessar, de ‘prender sua atenção’, isto é, de entrar em suas categorias, em sua grade, e ao relegar à insignificância ou à indiferença expressões simbólicas que mereceriam atingir o conjunto dos cidadãos.”
[2] Exemplificando como se dá esse processo, refere Batista (2009, p. 9): “o caso do ‘maníaco do parque’ exumou a psiquiatria forense mais rasteira e atrasada; crimes ambientais chamam a opinião de biólogos e militantes verdes, que ingressam lepidamente em tormentosas questões jurídico-penais; na violência policial contra a classe média, a troupe dos direitos humanos ganha o centro do picadeiro, de onde é retirada, constrangida, quando o motim na penitenciária foi por fim controlado; etc.
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