Opinião

Imunidade parlamentar material: abrangência e natureza jurídica

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  • é advogado do Senado e advogado criminalista sócio do escritório Alamiro Velludo Salvador Netto graduado mestre e doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo ex-assessor na Presidência do Tribunal Superior Eleitoral e ex-delegado da Polícia Federal.

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5 de dezembro de 2024, 7h02

Sabe-se que os senadores e deputados federais não podem sofrer a imposição, pelo Poder Judiciário, de sanções criminais e civis por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos, uma vez que a Constituição da República, no caput do artigo 53, estabelece a chamada imunidade parlamentar material.

Trata-se de uma garantia para o livre exercício da representação popular, o que significa assegurar o regime democrático e o poder soberano do povo e que, portanto, se afigura como indispensável no nosso sistema representativo. Ao mesmo tempo, tal garantia deve se cingir a condutas atreladas ao exercício do mandato (in officio ou propter officium), sem que possa ser convertida em um privilégio pessoal do parlamentar.

A vinculação da palavra ou opinião ao exercício do mandato para a incidência da imunidade, embora não escrita no texto constitucional, representa uma limitação ao caput do artigo 53 da Constituição, que tem uma redação ampla, especialmente pela previsão da expressão quaisquer. Não há garantia ou direito absoluto e a imunidade parlamentar não é diferente.

Apesar disso, deve-se atribuir força normativa ativa e máxima efetividade à imunidade parlamentar material prevista no caput do artigo 53 da Constituição de 1988 [1]. E isso tem diretas repercussões práticas, entre quais que sejam evitadas e refreadas investigações e ações penais contrastantes com a garantia democrática da imunidade parlamentar.

Esse tema ganha destaque no exame da tipologia de crimes – os crimes contra a honra – que são ordinariamente cometidos por meio de palavras [2], justificando-se a análise, caso a caso, de todas as circunstâncias em que as palavras são proferidas. Elas são o típico instrumento de trabalho do parlamentar (do francês parlement, parler; e do latim parolare), configuram o meio corriqueiro de exercício do mandato, do exercício da atividade fiscalizatória e dos embates políticos inerentes ao processo de formação das leis e à busca dos consensos, daí as constantes implicações e questionamentos jurídicos relativos ao seu uso, ou abuso. Anote-se que a imunidade sobre o voto, por seu turno, não enseja tantas discussões, pois não há dúvida de que o voto do parlamentar nas deliberações do Poder Legislativo se dá no exercício do mandato conferido pelo povo.

O texto normativo que prevê a imunidade parlamentar material foi alterado após a promulgação da Constituição de 1988. A expressão “quaisquer” não foi positivada do texto original da Constituição, tendo sido fruto da Emenda Constitucional nº 35/2001, a qual, por isso, merece ter o seu processo legislativo revisitado.

Em 2001, além da inclusão da expressão quaisquer para qualificar as opiniões, palavras e votos, foi acrescentada a expressão “civil e penalmente”, de modo a qualificar a inviolabilidade, o que inibe a sanção pelo Poder Judiciário, de modo a prevenir eventual ameaça à independência dos poderes e ao equilíbrio dos freios e contrapesos. Afinal, a atividade de criação normativa e de fiscalização dos demais órgãos estatais, funções que naturalmente dialogam e se retroalimentam, não podem ser, de antemão, constrangidas.

Imunidade ampla

A EC nº 35/2001 é resultado da proposta de emenda à Constituição – PEC nº 02/1995, do Senado, que inicialmente versava sobre as aspectos da imunidade parlamentar formal ou processual.

Plenário da Câmara dos Deputados

Na Câmara dos Deputados, tramitou como PEC nº 610/1998, na qual chegou a ser incluída, na parte final do caput do artigo 53, expressão que qualificava as opiniões, palavras e votos como aqueles “proferidos no exercício do mandato ou em função dele”, imbricando a imunidade ao mandato. Em segundo turno de votação, todavia, tal expressão foi excluída por votação em destaque que teve aprovação de 396 de um total de 404 deputados votantes, sob o argumento, entre outros, de que a proteção ao mandato seria apenas “parcial”. Dessa forma, o parlamentar ficaria exposto, exemplificativamente, a ser apenado pelo crime de desacato caso, no exercício da sua função fiscalizatória, exigisse veementemente explicações de funcionário de outro órgão público.

Nesse segundo turno de discussões e votação da proposta, ainda, foi deliberada a inclusão da expressão “quaisquer” para qualificar as opiniões, palavras e votos, como emenda de redação, que teve votação simbólica, com registro de voto contrário de dois deputados dentre os votantes [3]. Posteriormente, a PEC retornou ao Senado e foi promulgada pelas mesas das casas legislativas, em 20/12/2001.

Como se vê, o constituinte reformador pretendeu atribuir a maior amplitude possível à imunidade parlamentar de modo a afastar intepretações restritivas. Assim, em casos dúbios ou limítrofes quanto à aplicação da imunidade, deve-se preferir a interpretação de que não há crime, privilegiando-se a mens constitutionis de se garantir o livre e independente exercício do mandato. Por outro lado, não se pode expandir a imunidade para situações em que o parlamentar claramente atua como particular, despido da função e sequer indiretamente inclinado ao interesse público.

Essa posição é revelada pela história constitucional brasileira [4], que segue as constituições iluministas estadunidense e sa ao prever a inviolabilidade relacionada ao desempenho da função. Nessa toada, o Supremo Tribunal Federal modulou a amplitude transmitida por uma leitura meramente gramatical do caput do art. 53 da Constituição, derivada da expressão “quaisquer” e do silêncio à referência ao exercício do mandato, e garante a observância da imunidade parlamentar desde que a conduta tenha conexão com o mandato [5].

A imunidade parlamentar quanto às palavras e opiniões permite ao parlamentar se equivocar e até mesmo se precipitar, dada a velocidade e inconfiabilidade das notícias, e tendo em vista a necessidade que tais notícias sejam debatidas dentro e fora do Parlamento, até para que sejam esclarecidas. Os atos de falar, discutir e denunciar, entre outros, são indissociáveis da atividade parlamentar e são, por isso, incentivados, fomentados e garantidos pela Constituição da República, não de modo absoluto ou sem critérios jurídicos.

O que o ordenamento jurídico procura coibir é que tal equívoco se transborde em uma conduta intencionalmente agressiva ou odiosa, no sentido de o agente ter um plano de ação para se atingir um resultado ofensivo à honra e demais bens jurídicos penalmente tutelados das pessoas, grupos e dos integrantes de outros poderes ou da istração pública de modo geral (nos casos de crimes contra a honra, dolo específico ou animus caluniandi, diffamandi vel injuriandi).

Vale anotar, por exemplo, que a honra é historicamente reconhecida como objeto de tutela pelo Direito, desde as leis gregas de Solon, normas romanas contra as injúrias, até o Código francês de 1810, que inspirou o Código Criminal do Império brasileiro de 1830 [6]. Ou seja, da mesma maneira que a democracia representativa evolui permeada de garantias, entre elas a imunidade parlamentar, e não prescinde de meios para a ser preservada, os bens jurídicos socialmente relevantes não podem deixar de ser tutelados. Nessa esteira, a liberdade e o destemor para o exercício do mandato não podem servir, a priori, de anteparo a condutas propositalmente criminosas, ao o que a ameaça de sanções não pode tolher ou inibir a atividade parlamentar.

Denunciação caluniosa

Do ponto de vista prático, eventuais noticiantes ou supostas vítimas que têm plena consciência de que determinada conduta de parlamentar está acobertada pela inviolabilidade de palavras e opiniões e, mesmo assim, provocam autoridades estatais com atribuição de persecução penal, podem incidir, em tese, no delito de denunciação caluniosa (Código Penal, artigo 339).

Spacca

Nesse cenário, a autoridade pública deve, de plano e fundamentadamente, coarctar a iniciativa abusiva do proponente. Na presença da imunidade material de parlamentar, a autoridade policial não deve instaurar inquérito. Um integrante do Ministério Público não deve requisitar a instauração de inquérito policial ou instaurar procedimento de investigação criminal. E um magistrado não deve receber uma queixa-crime ou outra espécie de petição inicial contra o parlamentar. Se o contrário ocorrer, vem à tona outra importante garantia constitucional: a ação de habeas corpus para a correção da decisão anterior de modo a se aplicar a imunidade parlamentar constitucional.

Deve-se observar que um inquérito policial não é uma frivolidade jurídica, uma vez que a sua existência, e muitas vezes sua infinitude, atinge o status dignitatis e gera à pessoa investigada prejuízos sociais, reputacionais, econômicos, entre outros. Como afirmou o ex-ministro Sepúlveda Pertence, “Estamos todos cansados de ouvir que o inquérito policial é apenas um ‘ônus do cidadão’, que não constitui constrangimento ilegal algum e não inculpa ninguém (embora, depois, na fixação da pena, venhamos a dizer que o mero indiciamento constitui maus antecedentes: são todas desculpas, Sr. presidente, de quem nunca respondeu a inquérito policial algum)[7].

E a fundamentação para se obstar a investigação ou o processo é a imunidade parlamentar, que exclui o parlamentar como possível sujeito ativo do crime, que é elemento essencial do tipo penal, resultando em atipicidade penal. A imunidade parlamentar, assim, tem a natureza jurídica de causa constitucional de exclusão da tipicidade [8]. Embora existam autores que entendem que seria uma causa excludente da ilicitude [9], a imunidade faz com que seja desnecessário se perquirir a presença dos demais pressupostos jurídicos do delito (além da tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade), excluindo, de plano, por determinação constitucional, o primeiro deles, que é a tipicidade.

A tipicidade também é excluída de imediato à luz da teoria da tipicidade conglobante [10], pois o ordenamento jurídico não pode ser contraditório ao incentivar e fomentar a atividade parlamentar por meio da fala e do debate verbal e escrito, além de priorizar o desassombro no desempenho da função perante outras autoridades públicas e particulares e, ao mesmo tempo, intimidar ou atravancar mediante a ameaça de sanções.

Deste modo, a autoridade da persecução penal não precisa prosseguir com a investigação ou processo a pretexto de ponderar sobre a interpretação jurídica do fato, uma vez que a Constituição já elegeu essa ponderação jurídica para o primeiro aspecto da análise do fato ao prescrever a imunidade material para o parlamentar. Não é descabido consignar, para uma visão global do ordenamento jurídico, que instaurar procedimento investigatório criminal ou proceder à persecução penal sem justa causa fundamentada, ou contra quem sabe inocente, são condutas que caracterizam abuso de autoridade (Lei nº 13.869/2019, artigos 27 e 30).

Do breve histórico do caput do artigo 53 da Constituição e das sucintas anotações sobre a teoria do delito, deflui que não são quaisquer palavras do parlamentar que são abrangidas pela imunidade parlamentar, mas aquelas que forem proferidas no âmbito do exercício da atividade parlamentar, destacando-se a ampla e muitas vezes urgente função fiscalizatória. Nesse contexto, para a máxima aplicabilidade e força normativa das normas constitucionais que estruturam a democracia representativa, não pode sequer ser iniciado qualquer tipo de procedimento investigatório ou judicial que signifique constrangimento do parlamentar no exercício da sua função.

 


[1] “(…) a força normativa da Constituição não reside, tão somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional –, não só a vontade do poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung).” (HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad.: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 19.

[2] “O crime contra a honra é praticado mediante linguagem falada (emitida diretamente ou reproduzida por meio mecânico), escrita (manuscrito, dactilografado ou impresso) ou mímica, ou por meio simbólico ou figurativo. Verbis, scriptis, nutu et facto.” HUNGRIA, Nélson. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal, vol. VI. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 38.

[3] Diário da Câmara dos Deputados, de 6/12/2001, p. 62521, 62553, 62582 e outras. Disponível em: https://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD06DEZ2001.pdf#page=197 e https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14848. o em 26/08/2024.

[4] Const. de 1824: art. 26; Const. de 1891, art. 19; Const. de 1934, art. 31; Const. de 1937, art. 43; Const. de 1946, art. 44; Const. de 1967, art. 34; e Const. de 1969, art. 32.

[5] Exs.: Inqs. 2297, 2332, 2815, 3677, 3932, 4781; Pets. 5243, 5705, 5714.

Ao se tratar desse tema e da jurisprudência sobre o foro por prerrogativa de função, não se pode deixar de observar que o Supremo Tribunal Federal definiu, na Ação Penal nº 937, que sua competência para crimes cometidos por parlamentares federais somente se verifica para fatos relacionados às funções parlamentares praticados durante o mandato. Assim sendo, as condutas desses parlamentares desvinculadas do mandato que potencialmente configurem crime, deverão ser julgados, por força da definição dada pelo próprio STF, pelo primeiro grau de jurisdição da Justiça Comum. Com isso, em um caso, por exemplo, de suposto crime contra honra cometido por parlamentar federal, caso haja denúncia da Procuradoria-Geral da República ao STF, o órgão máximo do Poder Judiciário tão somente declarará a imunidade parlamentar, se as palavras ofensivas (mas não criminosas) forem proferidas em razão do cargo, ou remeterá para julgamento ao primeiro grau de jurisdição, se as palavras ofensivas forem potencialmente criminosas, uma vez que praticadas de modo desvinculado do desempenho da função. Isso porque a competência por foro de prerrogativa de função ou ratione personae é absoluta e o STF será absolutamente incompetente para o julgamento, sem que sua decisão pela não aplicação da imunidade parlamentar vincule o órgão jurisdicional competente, que poderá, após a fase instrutoria, concluir pela imunidade parlamentar (absolvição por atipicidade) ou por outro fundamento absolutório. Voltando-se um o atrás no procedimento, caso a notícia-crime seja levada à PGR, ou este órgão promoverá o arquivamento do caso por força da imunidade material, ou concluirá pela potencial existência de crime e remeterá ao órgão do Ministério Público oficiante em primeira instância, o qual, considerando-se a independência funcional ministerial, não estará vinculado ao entendimento da PGR e poderá arquivar o caso.

[6] HUNGRIA, Nélson. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal, vol. VI. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 34-36.

[7] STF, HC nº 80.564, rel. min. Ilmar Galvão, pub. 21/02/2003.

[8] “O que a Constituição quer dizer […] é que nas opiniões, palavras ou votos dos mencionados representantes do povo jamais se poderá identificar qualquer dos chamados ‘crimes de opinião’ ou ‘crimes da palavra’ […]”. “O setor das imunidades parlamentares é o das causas excludentes de crime ou de punibilidade”. HUNGRIA, Nélson. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo I. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 188 e 189.

Pronunciou o ex-ministro Celso de Mello que “em tal situação, atua, em favor do congressista, a prerrogativa da imunidade parlamentar, que descaracteriza a própria tipicidade penal dos crimes contra a honra. Como se sabe, a cláusula inscrita no art. 53, caput, da Constituição da República, na redação dada pela EC nº 35/2001, exclui, na hipótese nela referida, a própria natureza delituosa do fato, que, de outro modo, tratando-se do cidadão comum, qualificar-se-ia como crime contra a honra, consoante acentua o magistério da doutrina” (STF, Pet. 3.686, rel. min. Celso de Mello, pub. 31/08/2006).

[9] DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013, p. 379.

[10] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral, 12ª ed. São Paulo: RT, 2018. SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. “Reflexões Dogmáticas sobre a Teoria da Tipicidade Conglobante”. In Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, vol. 36, 2008, p. 23-43.

Autores

  • é advogado do Senado e advogado criminalista, sócio do escritório Alamiro Velludo Salvador Netto, graduado, mestre e doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ex-assessor na Presidência do Tribunal Superior Eleitoral e ex-delegado da Polícia Federal.

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