A hermenêutica de Carlos Maximiliano e o naturalismo jurídico no Brasil do século 20
7 de dezembro de 2024, 8h00
Esta coluna guarda uma relação próxima com outro texto que publiquei na ConJur, quando abordei os inícios da produção acadêmica brasileira sobre hermenêutica jurídica [1]. Na coluna anterior eu destaquei os ensinamentos de Francisco de Paula Baptista e sua defesa do in claris cessat interpretatio, além de ar pelas influências jusracionalistas que marcavam boa parte dos juristas brasileiros do século 19. A crença em um legislador universal, em um apego à literalidade da lei e uma desconfiança da interpretação judicial foram marcas daquele período.
Na transição do século 19 para o 20 veio a proclamação da República e a primeira Constituição promulgada na história brasileira. Houve mudanças profundas, como a adoção dos modelos estadunidenses de federalismo e presidencialismo, além do controle judicial também seguindo o modelo norte-americano. Outro ponto importante foi a desvinculação do Estado com a Igreja, o que representava mudanças simbólicas do novo momento em que ava o Estado brasileiro. O triunfo do liberalismo (tanto político quanto econômico) foi evidente, havia uma necessidade de que o livre mercado pudesse ser desenvolvido a todo vapor.
Porém, o Direito brasileiro ainda convivia com os fantasmas da monarquia e de um Direito de bases continentais, com uma organização judiciária nos moldes do Velho Continente e sistema penal inquisitorial nos moldes do velho processo romano-canônico europeu [2]. A transição, ainda claudicante, é bem tratada no romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis, enquanto Pedro (ferrenho defensor da monarquia) tinha um quadro de Luís 16 em sua cabeceira, seu irmão Paulo (defensor do liberalismo) ostentava um retrato de Robespierre [3].
As ideias do positivismo, tanto de origem sa como do evolucionismo social de Spencer, foram marcantes na transição da Monarquia para a República. No Rio Grande do Sul havia a Constituição estadual nos moldes do castilhismo, com grande concentração de poder no Executivo e uma forte influência positivista. O que se tinha era uma ânsia por modernização do aparato público, com uma visão de governo centralizador. A Monarquia era vista como atrasada, mantenedora de privilégios e castradora de liberdades. O espírito republicano brasileiro, em suas primeiras décadas, tentava emular uma ruptura definitiva com o antigo regime monárquico, tal qual o exemplo francês ou estadunidense. Cantava-se A Marselhesa pelas ruas, como uma tentativa simbolizar uma transição revolucionária [4].
As inovações científicas que vinham do século 19 causaram muita influência nas ditas “ciências humanas”. A biologia, a química, física e matemática representavam os novos modelos de ciência para a humanidade, ao mesmo tempo que o conhecimento empírico e logicamente demonstrável solapava qualquer pretensão de uma defesa à razão prática ou postulados metafísicos. Esse século estava marcado, no Direito, pelas codificações e na tentativa de se estabelecer uma maior certeza quanto resolução de demandas judiciais. O jusnaturalismo ou a ser visto com muita desconfiança, a influência de autores como Hobbes, Hume e John Austin eram centro das discussões. Valores morais, tratados como transcendentais, eram cada vez mais desprezados e afastados do debate público.
Já no século 20 há um importante movimento chamado de Círculo de Viena, encabeçado por autores como Otto Neurath e Rudolf Carnap, que pugnava por uma ciência longe de qualquer atividade metafísica e baseada apenas na percepção dos fatos através de conhecimento lógico ou empírico: O espírito de uma concepção científica de mundo. Os juristas, tomados por essa concepção científica, tentaram emular as técnicas das ciências naturais em seus estudos. No Brasil, o professor José Reinaldo de Lima Lopes vai falar sobre a influência desse naturalismo na produção jurídica brasileira a partir de uma visão sociológica do Direito. As relações jurídicas são meros fatos empíricos, e isso trará consequências.
“A evidente existência do direito poderia ser tratada como tudo mais que existia como algo ou um ‘mundo lá fora’, fora do sujeito cognoscente. A assimilação do direito aos objetos naturais colocava para os juristas novos desafios percebidos em duas dimensões: a do objeto e a do método” [5].
O objeto foi visto como um fenômeno social empírico e o método evidente seria o subordinado à sociologia descritiva. Enquanto o jusnaturalismo dependia de um conhecimento formado pela filosofia moral, no naturalismo a questão principal seria o método de análise das relações jurídicas. Autores como Augusto Comte e Herbert Spencer representaram influências marcantes no pensamento jurídico brasileiro nas primeiras décadas no século 20. Entre os juristas, Pedro Lessa e Sílvio Romero se destacaram como intelectuais públicos e obtiveram prestígio no cenário doméstico. Inclusive, este último chegou a dizer em sua banca examinadora de doutorado (faziam parte Belfort, Paula Batista e Coelho Rodrigues) que a metafísica não mais existia (estava morta) e que todos deveriam estudar mais [6].
Carlos Maximiliano e sua hermenêutica metodológica
Esta introdução servirá para que meu argumento possa ser testado e avaliado por meus leitores. A hermenêutica jurídica brasileira foi sendo desenvolvida por seus cânones inseridos em contextos jurídico-filosóficos, resultando em uma expressão da tradição ali subjacente. Trato de Carlos Maximiliano e uma virada metodológica na hermenêutica jurídica brasileira.

Além de ter transitado entre a política (foi deputado federal na Assembleia Constituinte de 1933-34) e pelo judiciário (ocupou cargo de ministro do Supremo Tribunal), Carlos Maximiliano publicou em 1925 uma obra seminal para a teoria hermenêutica brasileira, o Hermenêutica e aplicação do direito. Esta obra já está em sua 23ª Edição e marcou a trajetória de gerações de juristas nas faculdades de Direito pelo Brasil.
Para Maximiliano, a hermenêutica jurídica tem por objeto de estudo: “a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do direito” [7]. A leis são expressas em linguagem ampla e sem descer às minúcias, ou seja, está naturalmente vazada por uma certa indeterminabilidade. Caberá ao intérprete pesquisar a relação entre a situação do caso concreto e a norma.
De início já é notável a diferença conceitual trazida por Maximiliano em relação à Paula Baptista. Aquele entende o processo hermenêutico como uma tarefa do intérprete em descobrir e determinar o sentido da norma. Não se trata, aqui, apenas de uma tarefa iva de extrair o sentido dado pelo legislador, mas uma atividade que exige um comprometimento do jurista em investigar o texto através de métodos. Para Maximiliano, a Hermenêutica seria a ciência jurídica que teria como objeto a interpretação das leis. Portanto há uma diferença entre essas duas camadas. A Hermenêutica provém os métodos de identificação de sentido, enquanto a interpretação representa a aplicação destes métodos.
Além disso, aplicação do Direito é, também, diferente da tarefa de interpretar a norma. São momentos distintos. Aplicar é adaptar o caso concreto à norma interpretada, sem, contudo, esquecer de realizar a análise de constitucionalidade e de validade da lei [8]. Há uma crítica de Maximiliano às prescrições de Paula Baptista de buscar a “vontade do legislador” na interpretação da norma. O sentido do texto legal não deve depender de um psicologismo, que se mostra impossível de ser realizado na prática, tendo em vista toda uma coletividade de pensamentos em uma casa parlamentar, ainda pela dificuldade em se dimensionar as influências políticas, econômicas e morais que sofrem os deputados e senadores ao votarem um texto. “Se fôssemos, a rigor, buscar a intenção ocasional, precípua do legislador, o encontraríamos visando horizonte estreito, um conjunto de fatos concretos bastante limitado” [9]. A interpretação é antes sociológica do que psicológica, afirma o autor.
Se um texto sofre influências históricas e sociais, não há o que se falar em uma aplicação da norma omissa de interpretação. Maximiliano se mostra um crítico ferrenho ao Interpretatio cessat in claris defendido por Paula Baptista no século 19. “Obscuras ou claras, deficientes ou perfeitas, ambíguas ou isentas de controvérsia, todas as frases jurídicas aparecem aos modernos como suscetíveis de interpretação” [10].
O juiz pode ser representado como um ator de teatro que interpreta as ordens direcionadas pelo dramaturgo, este análogo à figura do legislador. Não se trata de uma relação fria, de mera reprodução mecânica, mas de uma interpretação e aplicação que deverá estar ciente de uma circularidade hermenêutica. Existirá, sempre, um grau de subjetividade do juiz na aplicação do Direito, mas isso não quer dizer uma discricionariedade e nem arbitrariedade na aplicação da norma. “Não o consideram autômato; e, sim, árbitro da adaptação dos textos às espécies ocorrentes, mediador esclarecido entre o direito individual e o social” [11]. Porém, Maximiliano não deixa claro o quanto de liberdade terá o intérprete na aplicação do Direito.
Para o autor, a atividade judicial está identificada como uma atividade científica: “Assim como o químico põe em combinação elementos diversos e chega a uma resultante independente da sua vontade, assim, também, o juiz, ante certas relações de fatos e normas jurídicas gerais, obtém solução feliz, porém não filha do seu arbítrio” [12]. Nesta agem fica evidenciado que Maximiliano elaborou sua obra sob os paradigmas das ciências naturais, vendo a hermenêutica com um viés metodológico.
Escola Histórica de Savigny e a hermenêutica romântica de Friedrich Schleiermacher
É possível sustentar que Maximiliano é influenciado fortemente por, pelo menos, duas escolas de pensamento: Savigny e sua Escola História do Direito e pela hermenêutica de Schleiermacher como aporte filosófico [13].
Friedrich Schleiermacher foi um autor muito importante no desenvolvimento da hermenêutica do século 19, graças a ele as diversas hermenêuticas – filológica, teológica e literária – puderam ser reunidas em aspectos gerais. O filósofo tinha como objetivo estabelecer os métodos de uma compreensão adequada dos textos, de maneira que o estudo das disciplinas humanas pudesse contar com métodos comparáveis às ciências naturais. Ambicionava um grau de certeza [14].
Importante destacar que para Schleiermacher, uma interpretação não ocorre apenas quando existe um “mal entendido” no texto ou quando identifica-se alguma lacuna lógica. Mas o ato de interpretar é buscar, sempre, entender o texto até melhor do que o próprio autor. Existe, aqui, uma dimensão gramatical e uma dimensão psicológica na compreensão na interpretação. A importância de Schleiermacher se dá pela concepção de que a hermenêutica não seria apenas uma ferramenta que os estudiosos usariam quando fosse necessário, sua empresa de desenvolver uma técnica de compreensão entre autor e receptor foi pensada em todos os sentidos da linguagem humana.
Friedrich Carl von Savigny, teórico do Direito, fundou uma escola de pensamento denominada Escola Histórica. O objetivo deste autor era criar uma série de métodos próprios para o estudo do Direito, dando-lhe maior objetividade. Assim como Schleiermacher, buscava uma mimetização das ciências naturais e maior aproximação com a ideia de certeza para a ciência jurídica. O Direito deveria ser entendido como um empreendimento histórico e sociológico.
Este autor procurou entender o Direito a partir de três pontos de estudo: Elaboração filológica do Direito (aqui entra o elemento da interpretação), elaboração histórica do Direito e a elaboração sistemática do Direito. Na metodologia interpretativa de Savigny estão presentes os métodos de compreensão da norma: elemento lógico, o gramatical, o histórico e o sistemático. “Em outros termos, para Savigny, a interpretação não possui um caráter apenas acidental. Trata-se de uma operação sempre necessária para o trato científico do material jurídico” [15].
Conclusão
Seria necessário desenvolver com maiores detalhes a relação de Carlos Maximiliano e a influência do naturalismo jurídico no Brasil, mas, pelas breves considerações trazidas no texto, acredito que seja é possível identificar traços de uma sociologia positivista na teoria de Maximiliano. Além disso, as influências de um contexto em que a hermenêutica jurídica é vista como um conjunto de métodos a serem utilizados pelas humanidades à semelhança do que seriam os métodos das ciências naturais.
O florescer da Filosofia da Linguagem, desenvolvida no século XX por autores como Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer, vem desafiar a concepção naturalista de mundo e a reprodução dos métodos rígidos na investigação das ciências humanas [16]. Daí a importância da Hermenêutica Filosófica na contemporaneidade, aporte teórico que dá sustentação à Crítica Hermenêutica do Direito do professor Lenio Streck.
[1] /2024-ago-17/a-hermeneutica-juridica-brasileira-nao-deve-ser-tratada-como-um-museu/
[2] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 400
[3] ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Introdução e notas de Hélio Guimarães. 1. ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.
[4] CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 26
[5] LOPES, José Reinaldo de Lima. Naturalismo jurídico no pensamento brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2014. Livro eletrônico. 7083 posições. p. 1806
[6] CHACON, Vamireh. Formação das ciências sociais no Brasil (Da Escola do Recife ao Código Civil). 2. ed. Brasília: Paralelo 15; Brasília: LGE Editora; São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 2008. p. 199
[7] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 13
[8] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 20
[9] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 32
[10] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 40
[11] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 66
[12] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 55
[13] MIOZZO, P. C. Fundamentos dos Conceitos de Hermenêutica Jurídica e de Interpretação em Carlos Maximiliano. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS, [S. l.], v. 11, n. 3, 2017. DOI: 10.22456/2317-8558.66650. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/ppgdir/article/view/66650. o em: 7 ago. 2024. p. 374 e seguintes.
[14] PALMER, Richard E. Hermenêutica. Tradução de Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70, 1999. p. 91
[15] MIOZZO, P. C. Fundamentos dos Conceitos de Hermenêutica Jurídica e de Interpretação em Carlos Maximiliano. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS, [S. l.], v. 11, n. 3, 2017. DOI: 10.22456/2317-8558.66650. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/ppgdir/article/view/66650. o em: 7 ago. 2024. p. 378
[16] JUNG, Luã Nogueira. Verdade e Interpretação: hermenêutica filosófica como alternativa ao naturalismo e ao relativismo. Porto Alegre, RS: Editora Fundação Fênix, 2021.
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