A lei europeia antidesmatamento, o Acordo de Paris e a OMC
7 de dezembro de 2024, 6h31
No dia 14 de novembro de 2024, o Parlamento Europeu aprovou, em decisão apertada (371 votos a favor, 240 contra e 30 abstenções), a proposta da Comissão Europeia de adiar em um ano a implementação do Regulamento Europeu Antidesmatamento (EUDR, na sigla em inglês). Mas a decisão não é ainda conclusiva. Depende da chamada “negociação em trílogo”, realizada entre a Comissão Europeia, o Conselho Europeu e o próprio Parlamento.

O trílogo, previsto no artigo 294 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia — TFUE), é um mecanismo de negociações informais que busca facilitar o consenso, especialmente em temas complexos ou sensíveis, como é o caso da EUDR. O trílogo provoca debates sobre um almejado equilíbrio entre eficiência interinstitucional e falta de transparência, já que as reuniões não são públicas. O texto final da EUDR será divulgado na sessão plenária de 16 a 19 de dezembro e o desfecho permanece incerto, considerado o presente e instável cenário político europeu.
Este artigo delineia os fatos e interesses envolvendo a lei europeia antidesmatamento, sua aderência aos compromissos climáticos assumidos pelos países no Acordo de Paris e a capacidade da lei (ou falta dela) em se articular com o sistema multilateral de comércio e a OMC.
Adiamento à implementação da EUDR e os interesses envolvidos
O adiamento da lei tem sido o ponto central da cobertura da mídia sobre a EUDR. Foi proposto pela Comissão Europeia em 2 de outubro após fortes pressões de países exportadores das commodities agrícolas cobertas pela lei (óleo de palma, soja, carne bovina, café, cacau e borracha). Estes países, como Brasil, Indonésia e Índia, não apenas querem o adiamento, mas contestam as próprias premissas e parâmetros estabelecidos pela EUDR, além dos potenciais impactos às suas economias e populações.
Em junho de 2023, a Indonésia acusou a UE de “imperialismo regulatório”, durante negociações sobre um acordo comercial e em meio a disputas na OMC sobre a eliminação progressiva do uso de óleo de palma como matéria-prima para biocombustíveis. Em agosto de 2024, durante as negociações de um Acordo de Livre Comércio com a UE, a Índia considerou a EUDR (e o CBAM – Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira) “instrumentos de protecionismo e barreiras não-tarifárias”.
O Brasil, em setembro de 2024, pediu à UE o adiamento da implementação da EUDR, afirmando que a lei representa uma medida “unilateral, coercitiva e punitiva”. Mas muito antes do pedido, o Brasil já vinha questionando de forma contundente as premissas da EUDR perante diversos Comitês da Organização Mundial do Comércio (OMC). No dia seguinte à manifestação do Brasil, a diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, pediu à UE a revisão do regulamento, mencionando diretrizes de conformidade pouco claras e crescentes preocupações de líderes do G20.

Não são apenas países em desenvolvimento que contestam a lei. A Alemanha, dois dias após a manifestação do Brasil, pressionada pelo lobby dos editores e do setor agrícola e florestal, pediu mais tempo para adequar seus sistemas de rastreabilidade e diligência devida. Ainda dentro do bloco, a Áustria na liderança, apoiada por Finlândia, Itália, Polônia, Eslováquia, Eslovênia e Suécia, reforçaram o pedido de adiamento. Em maio de 2024, o Representante de Comércio dos EUA (USTR), enviou uma carta à Comissão Europeia, citando “desafios críticos” enfrentados pelas indústrias de madeira, papel e celulose.
O Senado australiano, em agosto, aprovou moção pedindo o adiamento, devido à incerteza sobre a implementação da lei e os impactos na indústria de carne bovina do país.
Guinada regulatória representada pela EUDR e alterações no cenário político europeu
A contestação generalizada ao início da implementação já dá uma dimensão da diversidade de interesses envolvidos em torno da EUDR. Mas, para além dos pedidos de adiamento, mudanças mais profundas vêm abalando o cenário político europeu desde a aprovação da lei até o momento atual, e o desfecho é incerto.
A EUDR foi aprovada pelo Parlamento Europeu em 2023 com uma votação expressiva, após tornar-se a segunda consulta pública mais popular na história do bloco. Aclamada pelos ambientalistas como um marco na luta contra a crise climática e vitória histórica para florestas, a lei pela primeira vez abordou o vínculo entre expansão agrícola e desmatamento, impulsionado pelo comércio internacional das commodities de risco florestal.
Vista sob o prisma regulatório, a lei representa um caso paradigmático da transição de mecanismos privados transnacionais de governança de mercado no manejo florestal para mecanismos públicos unilaterais, de comando e controle. Sob a perspectiva jurídica, é uma lei com evidentes efeitos extraterritoriais e que desafia princípios de soberania na regulação de florestas. Traz impactos significativos nas políticas domésticas ambientais e agrícolas, tanto de países europeus quanto não europeus, além de estabelecer inovadores mecanismos de compliance no nível empresarial, por meio das obrigações de diligência devida.
Uma interessante análise política e empírica da EUDR revela como atores estatais e não estatais organizaram-se em torno de coalizões e alianças estratégicas, envolvendo apoiadores e opositores. Duas coalizões favoráveis à regulamentação se destacaram: uma composta por ONGs voltadas à sustentabilidade e ao meio ambiente, estados-membros dependentes de importações, grupos da sociedade civil e alguns certificadores nos setores de alimentos e florestas, que defendiam novas regras; e outra, formada por multinacionais, varejistas, empresas europeias dependentes de importações, e alguns produtores agrícolas domésticos e suas associações, que favoreciam uma regulamentação orientada aos interesses comerciais.
Em contrapartida, uma coalizão contrária à regulamentação, numericamente menor, envolvia algumas instituições da UE, estados-membros ricos em florestas, certificadores agrícolas e autoridades governamentais de países tropicais produtores. Este amálgama de interesses resultou em um texto legislativo que institucionalizou diversas crenças e interesses, com prevalência dos atores pró-mudança.
As justificativas ao texto final da EUDR refletiram esse amálgama de interesses. Baseado em dados alarmantes da Organização para as Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), que estimou a perda de 420 milhões de hectares de florestas entre 1990 e 2020, o equivalente à área da UE, o bloco propôs “um regime jurídico para travar e inverter a desflorestação mundial impulsionada pela EU, com base na diligência devida obrigatória”.
Este regime jurídico traduziu, em texto de lei, a guinada regulatória da UE, substituindo acordos bilaterais e certificações privadas e voluntárias por um sistema mandatório, com monitoramento geoespacial de toda a cadeia de suprimento das commodities alvo, desde a origem até o consumo.
No plano regional, a UE reconheceu que seu consumo interno era fator considerável ao desmatamento em escala mundial e que estava obrigada ao cumprimento dos compromissos juridicamente vinculantes assumidos no âmbito do Pacto Ecológico Europeu e do Regulamento (UE) 2021/1119 do Parlamento Europeu e do Conselho, para alcançar a neutralidade climática até 2050 e reduzir as emissões de gases de efeito de estufa em 55 % até 2030.
No plano internacional, apesar de deixar explícito que as políticas internacionais em matéria de conservação de florestas falharam, a UE reconheceu, ainda que de forma discreta, o reforço à concretização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) adotados pela ONU em 2015, do Acordo de Paris (2015), do Plano Estratégico das Nações Unidas para as Florestas (2017-2030), da Convenção de Biodiversidade e da Declaração de Nova Iorque sobre Florestas (2014) , embora todos sejam não-vinculantes juridicamente.
Por fim, embora tratando-se de uma medida essencialmente comercial, já que o gatilho para aplicação do sistema de diligência devida é o ingresso e a comercialização dos produtos no mercado europeu, o texto original da EUDR faz uma única menção à Organização Mundial do Comércio (OMC), apenas nas justificativas.
No item 23, reconhece que, na qualidade de membro da OMC, “a União está empenhada em promover um sistema multilateral de comércio universal, assente em regras, aberto, transparente, previsível, inclusivo, não discriminatório e equitativo, bem como uma política comercial aberta, sustentável e decisiva”.
Como política comercial, apesar dos evidentes objetivos sustentáveis, a lei parece estar longe de tornar-se decisiva, e a transparência e previsibilidade têm sido colocadas em xeque. E mais preocupante, o reconhecimento da OMC e do sistema multilateral como fórum relevante de diálogo, vai se tornando mais tênue.
Emendas propostas ao texto da lei: Acordo de Paris e papel da OMC
Uma semana antes da decisão do Parlamento em 14 de novembro último, o Partido Popular Europeu (EPP na sigla em inglês), que vêm emergindo como força política dominante na Europa, propôs 15 emendas à EUDR. Tais emendas visavam claramente enfraquecer a lei, ao isentar comerciantes e alguns países europeus dos mecanismos de diligência devida, além de pedir o adiamento por dois anos e não apenas um, como proposto anteriormente pela Comissão.
No entanto, horas antes da votação pelo Parlamento Europeu, o EPP retirou seis das 15 emendas. Surpreendentemente, a indústria e investidores, desta vez do mesmo lado que os ambientalistas, não apoiaram as mudanças propostas pelo EPP. Grandes produtores de alimentos, incluindo a poderosa indústria de chocolates, à esta altura, querem que a implementação e o texto da norma não sofram mais alterações, sob o argumento de que já investiram dispendiosos recursos para cumprir o regulamento.
Porém, as recentes reviravoltas no cenário político europeu, iniciadas em junho deste ano, delineiam novos contornos às decisões de adiamento e alterações no texto da lei, além da formação de diferentes configurações e coalizões de interesses. As emendas propostas pelo EPP, consideradas pela coalizão pro-regulamentação, e principalmente pelas ONGs ambientais, como fruto de uma “nova aliança de legisladores de centro-direita e extrema direita”, inauguraram um novo ciclo de negociações.
Além da imprevisibilidade do cenário político europeu, duas alterações propostas ao texto da EUDR suscitam reflexões importantes. A primeira refere-se ao sistema de benchmarking, ou de classificação de risco de desmatamento atribuída aos países, para que as autoridades europeias estimem, no momento da importação, a quantidade de produtos que devem submeter-se ao processo de diligência devida. O novo texto, proposto pelo EPP e por ora aprovado pelo Parlamento, criou uma quarta categoria adicional às três já existentes (baixo, padrão e alto) — a categoria “risco inexistente” (“no-risk”).
Nesta nova categoria, incluem-se países que mantiveram suas áreas florestais estáveis ou aumentaram a cobertura florestal desde 1990. O texto impõe as seguintes condições para que o país seja considerado de risco inexistente: a) ser signatário do Acordo de Paris e das convenções internacionais em matéria de direitos humanos e de prevenção do desmatamento, sem especificar quais; e b) que seus regulamentos domésticos de prevenção às florestas sejam “aplicados e cumpridos de forma rigorosa”, com “plena transparência no plano internacional” e “monitorizados”. Se aprovado este texto final, os países incluídos nessa categoria ficarão isentos de boa parte das exigências previstas na norma.
Trata-se de uma “quase-imunidade”, que visa a excluir determinados países europeus da parafernália burocrática do processo de diligência devida. Porém, mesmo que não aprovada a categoria de “risco inxistente”, a Comissão Europeia ainda tem até 30 de junho de 2025 para finalizar a definição do sistema de benchmarking.
A inclusão explícita do Acordo de Paris no sistema de benchmarking tem um ponto positivo de estabelecer um vínculo antes inexistente, apesar de o combate ao desmatamento ser essencial ao atingimento das metas climáticas previstas no Acordo. No contexto mais amplo da política europeia, ambos estão umbilicalmente interligados. No entanto, os Estados Unidos exemplificam a volatilidade desse compromisso: o país deixou de ser signatários do acordo durante o governo de Donald Trump, entre novembro de 2020 e janeiro de 2021, retornando ao pacto com a posse de Joe Biden.
Com a recente reeleição de Trump, há o risco de o país se desvincular novamente do acordo, o que excluiria o país da categoria “risco inexistente”. Se aprovada a emenda, pode servir de incentivo para que os Estados Unidos, ao menos por uma razão, permaneçam no acordo.
A segunda alteração ao texto, pouco notada pela imprensa em geral, refere-se à proposta feita pelo EPP, e surpreendentemente rejeitada pelo Parlamento, que previa um “diálogo regular com os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) para implementação e execução da lei, em conformidade com o sistema multilateral de comércio internacional a fim de evitar retaliações e tensões comerciais“.
É certo que o sistema multilateral de comércio se encontra combalido em seu mecanismo de solução de controvérsias, que outrora garantiu ao mundo um sistema previsível, baseado em regras. Contudo, em um cenário global com múltiplos atores e dinâmicas comerciais, no qual as camadas bilateral, plurilateral e multilateral se sobrepõem, a OMC e seus comitês temáticos, como o Comitê de Comércio de Meio-Ambiente, tem se consolidado como um “terceiro pilar” da instituição.
Desde a aprovação da EUDR em 2023, vários países potencialmente impactados pela regulamentação, a exemplo do Brasil, tem utilizado amplamente o fórum multilateral para expressar suas preocupações nos Comitê de Comércio e Meio Ambiente, Agricultura, o a Mercado e Comitê de Barreiras Técnicas ao Comércio.
No contínuo intercâmbio de informações e diálogos, começa a emergir uma rede ainda sutil de alianças e coalizões, que tem ultraado a tradicional divisão Norte-Sul nas questões climáticas. Se havia algo de positivo dentre as emendas propostas à EUDR, era o reconhecimento da OMC como fórum de diálogo regular para a implementação da lei. Contudo, esta emenda foi rejeitada pelo Parlamento Europeu. A relação entre a EUDR, as metas do Acordo de Paris e o sistema multilateral vai se tornando mais frágil.
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