Opinião

O golpe de Estado, os atos preparatórios e o crime impossível

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  • é promotor de Justiça em São Paulo membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador — Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia — ABJD.

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7 de dezembro de 2024, 9h18

Em entrevista a um portal de notícias, o respeitado (com muita razão) jurista Pedro Serrano expõe sua visão sobre o relatório da Polícia Federal que indiciou dezenas de pessoas (muitas delas com grande relevância no cenário político nacional) por crimes de golpe de Estado, abolição violenta do Estado de Direito e outros. Segundo o professor, a Polícia Federal fez um trabalho primoroso, e demonstrou, estreme de dúvidas, a participação de cada um dos indiciados na suposta trama.

Expôs o professor Pedro ainda sua visão acerca da diferença entre atos preparatórios e atos executórios de um crime. Para ele, na hipótese específica do crime de golpe de Estado, uma mera reunião para organizar a divisão de tarefas do ilícito já seria o suficiente para se considerar que houve “início da execução”. Todavia — ainda segundo o professor —, no caso analisado, não se tratou somente disso, ou seja, os atos executórios tiveram início, e o crime somente não se consumou por circunstâncias alheias à vontade dos agentes.

A certa altura da entrevista, o dr. Pedro a a dizer que, caso operadores do Direito discordem e neguem suas conclusões, devem ser considerados como os “juristas do Reich”, aqueles que deram “forma jurídica” ao nazismo. De acordo com sua reflexão, os juristas devem necessariamente defender o seu ponto de vista, sob pena de “traírem seu diploma”, “traírem a profissão” e “traírem a ética”.

Renovadas todas as vênias das quais o professor é merecidamente digno, não há como concordar com sua conclusão, ao menos no que se refere à adjetivação utilizada. Ter uma interpretação jurídica diversa não significa apoio a nenhum “Reich”. E no caso dos crimes discutidos, há muitas nuances que precisam ser enfrentadas, devendo ser evitadas as simplificações.

Não pretendo fazer qualquer avaliação do caso concreto sobre o qual o professor teceu seus comentários. Isso porque outros membros do Ministério Público terão contato com os autos do processo e deverão necessariamente se manifestar em termos de prosseguimento. Não seria ético fazer qualquer análise do relatório da Polícia Federal, das conclusões do delegado ou de quaisquer das outras provas produzidas. A avaliação, singela, baseia-se em termos doutrinários abstratos.

Inicialmente, insta salientar que o Código Penal () estabelece uma diferença entre atos preparatórios e atos executórios de um crime. O artigo 31 estabelece que “o ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis”.

Quer dizer, se permanecer nas fases de cogitação ou de planejamento, não há que se falar em crime, a não ser que o próprio tipo penal preveja essa conduta, por si só, como criminosa.

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Um ótimo exemplo de crime que se consuma com o mero “ajuste” é aquele previsto no artigo 288 do (associação criminosa). Basta, nesse caso, a associação de três ou mais pessoas “para o fim específico de cometer crimes”. Não é necessário que os crimes planejados sejam sequer tentados (não é necessário o início da execução). Uma reunião, um planejamento ou uma divisão de tarefas podem ser suficientes para que os agentes respondam por associação criminosa.

Mas, no caso dos crimes de “abolição violenta do Estado Democrático” e de “golpe de Estado” (artigos 359-L e 395-M do ) não se pode dizer o mesmo, porquanto não são exceções ao artigo 31. Para que sejam configurados, portanto, necessário que os agentes iniciem a execução do crime, agindo com violência ou grave ameaça, seja para abolir o Estado Democrático de Direito, seja para depor o governo legitimamente eleito.

Uma questão interessante desses artigos é que eles punem, como crimes consumados, a mera tentativa. Basta a tentativa para que o crime seja considerado plenamente exaurido. Trata-se de uma exceção ao artigo 14, parágrafo único, do , que prescreve que crimes tentados são punidos com penas reduzidas em comparação aos consumados.

Assim, diversamente do que afirma o professor Serrano, uma “reunião” que trate sobre um eventual golpe de Estado não pode ser considerada um ato executório, uma vez que não há previsão legal para que “o ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio” sejam punidos. Necessário que sejam iniciados os atos executórios dos crimes. Não há diferença entre consumação e tentativa, é certo, mas há entre atos preparatórios e atos de execução.

Elasticidade de garantias penais é temerária

O exemplo tradicional da doutrina penal é a compra de uma arma de fogo para a prática de homicídio. Se o agente, após a compra, guardar a arma em casa e nunca mais usá-la, ainda que tenha inicialmente planejado o homicídio, jamais responderá pelo crime.

Em outro exemplo, se o agente, com a arma comprada, dirigir-se à residência da vítima, tocar a campainha e, assim que a vítima surgir, mudar de ideia e deixar o local, também jamais responderá por tentativa de homicídio, pois, mesmo que tenha planejado e praticado inúmeros atos tendentes a praticar o crime, não iniciou qualquer ato que pudesse gerar o resultado morte.

Se quatro ou cinco pessoas fizerem uma reunião, imprimirem planos de ação, resolverem uma divisão de tarefas, distribuírem armas entre si, alugarem um carro, usarem-no para ir a uma agência bancária que pretendem roubar, mas, chegando ao local, acreditarem que o plano não dará certo e desistirem, não estará configurado o crime contra o patrimônio. Não se terão transposto os atos preparatórios da conduta criminosa.

Importante relembrar que isso representa uma garantia contra atos arbitrários do Estado, que fica impedido de punir a cogitação e o planejamento de crimes (exceto em casos expressos). Trata-se de uma regra democrática, que reduz sobremaneira o jus puniendi estatal. Não se pode transigir com isso, sob pena de se abrirem precedentes perigosos. Imagine-se o Estado legitimado a punir por crimes ainda não praticados…

A interpretação das leis penais deve ser sempre a favor do jus libertatis, independentemente de quem seja o réu ou o investigado, independentemente da suposta gravidade das condutas apuradas. A elasticidade de garantias penais para punir pessoas e/ou fatos específicos é atitude temerária, que não cabe no interior de um Estado que se pretende de Direito. Estou certo de que o professor Pedro, garantista que é, concorda com o raciocínio.

Ademais, uma questão que me parece de suma importância tem ado relativamente ao largo da discussão: o instituto do “crime impossível”, previsto no artigo 17 do : “Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”.

Significa que, seja em razão do instrumento utilizado, seja em razão da finalidade perseguida, impossível que o crime seja consumado. Rezar para que alguém morra é um bom exemplo (embora o beato acredite que pode matar sua vítima, ela jamais morrerá por esse motivo). Atirar em alguém com uma arma de brinquedo ou furtar uma nota de 100 reais falsa também são hipóteses de crime impossível.

No caso do crime de “golpe de Estado”, e mais ainda no de “abolição violenta do Estado de Direito”, não basta a vontade – nem mesmo o firme propósito – de meia dúzia de gatos pingados sem nada na cabeça para que o crime seja ao menos tentado (lembro mais uma vez que se trata de uma avaliação abstrata, sem relação com qualquer fato concreto).

São crimes hipercomplexos, que demandam estrutura. Demandam a atuação de vários agentes, de variados setores sociais (forças armadas, judiciário, mídia, empresariado, academia etc.). Golpes de Estado – como foram no Brasil, no Chile, na Argentina, na Guatemala e em muitos outros – são processos longos. Muitas vezes sua preparação dura anos (no Brasil pós-Vargas, a partir de 1954, os golpistas só conseguiram se articular para consumar o golpe 10 anos depois).

Spacca

Ademais, é muito conhecida a participação, em grande parte dos golpes de Estado ocorridos desde o último século, de agências de inteligência de países centrais. É possível até afirmar – salvo melhor juízo – que, sem a atuação desses serviços, golpes de Estado não são possíveis.

Desta forma, fogos de artifício não são meios capazes de “abolir violentamente o Estado de Direito”; vendedores ambulantes e aposentados, sozinhos, são incapazes de consumar um “golpe de Estado”; generais de pijama, tomando seu café da tarde em clubes militares, são incapazes de mobilizar tropas para “fechar as instituições”. Trata-se de condutas írritas, imprestáveis para violar o bem jurídico protegido pela norma penal.

Qualquer pessoa pode matar ou roubar, mas não é qualquer pessoa — nem qualquer grupo de pessoas — que pode efetuar um golpe de Estado.

Esperemos as conclusões dos procedimentos que apuram crimes similares supostamente ocorridos recentemente no Brasil. Resta-nos torcer para que as autoridades envolvidas façam o seu trabalho da melhor forma; da forma mais imparcial.

E mais importante: que façam respeitar a Constituição e as leis, independentemente do apelo popular e das gigantescas pressões envolvidas

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