Opinião

A punibilidade dos atos preparatórios nos estados totalitários

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8 de dezembro de 2024, 9h21

“Sonhou Mársias que cortava a garganta de Dionísio. Este o mandou matar, dizendo que não teria sonhado à noite se não tivesse pensado de dia. Era uma grande tirania: pois, ainda que tivesse pensado, não havia atentado. As leis não se encarregam de punir senão as ações exteriores.” [1] (Montesquieu)

 

Já escrevi aqui nesta prestigiada revista jurídica sobre os perigos do uso político do processo penal, transformando-o em instrumento de perseguição tanto mais eficaz quanto mais desviado de sua função de limitar o poder punitivo do Estado [2]. Se o Direito Penal e o Processo Penal não estão, em um dado momento histórico, limitando o poder do Estado, então pode-se assegurar que estão fazendo o inverso: promovendo o fácil e incontido exercício do poder de punir, sem qualquer consideração com os direitos dos cidadãos que dele são alvos.

A importância da dogmática-penal se revela precisamente aqui, pois o Estado não precisa necessariamente de guilhotinas e pelotões armados para reprimir, perseguir e prender pessoas, já que ele pode se valer de um método mais sofisticado que é o Direito Penal que não impõe limites ao arbítrio judicial, como já advertia Bettiol:

“Quando se fala de terror penal, não se deve crer que ele só se manifesta por meio de guilhotinas e dos pelotões de execução, porque também é terror uma leve condenação aplicada pelo juiz, quando ao seu arbítrio não se fixem limites precisos. Terror é sinônimo de arbítrio individual e judicial, ao o que o direito penal começa onde acaba o arbítrio.” [3]

Cabe à dogmática penal e à processual penal exercer essa função de tolher o arbítrio judicial, fixando-lhe limites precisos, independentemente de favoritismos político-ideológicos. É o que tentarei fazer aqui neste breve artigo.

Foi divulgado um relatório da Polícia Federal a respeito de uma suposta tentativa de golpe por parte de certos agentes políticos ligados ao então presidente Jair Bolsonaro, que também seria um dos coautores da trama. Os crimes em tese praticados seriam os previstos nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal, respectivamente:

“Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: (…).; Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: (…).”

O triste clima político-partidário que atravessa o país conduz as pessoas a analisarem os fatos a partir de suas preferências ideológicas: a depender de quem for o alvo, a repressão do Estado pode desconsiderar os limites do Código Penal. Mas uma análise imparcial, despida desses fanatismos, pode nos levar a concluir pela punibilidade dos atos revelados? Seriam eles já início da execução, e, assim, tentativa punível? Ou seriam meros atos preparatórios, e, portanto, impuníveis? Vejamos.

A não punibilidade dos atos preparatórios se dá em razão de que os atos que ingressam nessa fase do iter criminis são atos que, em si mesmos e dentro da mais legítima esfera de liberdade do ser humano, podem ser utilizados para a prática dos atos mais inocentes e corriqueiros da vida civil. Peguemos um exemplo: andar de mochila.

Este é um ato que, no metrô, no ônibus, na escola, é utilizado diariamente por milhares de pessoas para carregar livros, cadernos e toda sorte de pertences pessoais utilizados para a vida cotidiana. Mas esse mesmíssimo ato — carregar uma mochila nas costas — não pode muito facilmente servir como um ato preparatório para um terrorista que quer explodir um determinado local?

De fato, uma mochila pode muito bem ser utilizada para guardar apetrechos explosivos, e qualquer pessoa que queira dela se valer para preparar o seu crime de terrorismo pode fazê-lo de uma maneira não mais dispendiosa com que um estudante dela se vale para guardar o seu livro, o seu caderno e o seu estojo.

Desse exemplo se extrai com facilidade o motivo de não se punir os atos preparatórios: são atos que não revelam ainda em si a execução criminosa inequívoca. São atos perfeitamente inocentes. Como diz Stuart Mill, “não existe praticamente qualquer parte da legítima liberdade de ação de um ser humano que não possa ser apresentada, e muito justamente, como modo de facilitar uma ou outra forma de delinquência” [4].

Diante deste cenário, de duas uma: ou o Estado renuncia à pretensão de punir os atos preparatórios a pretexto de evitar o perigo de assaltos, de homicídios, de estupros, de golpes contra a democracia etc.; ou o Estado se arroga semelhante tarefa de impedir toda e qualquer forma de ação humana que possa servir de preparação ao crime, e então ele deve se fazer onipresente mediante uma constante e ininterrupta vigilância sobre os cidadãos, multiplicando os tipos penais, antecipando a punibilidade à preparação, multiplicando os agentes policiais, permitindo a obtenção de prova ilícita, a violação da privacidade e da intimidade, buscas e apreensões generalizadas, enfim, um verdadeiro Big Brother orwelliano…

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Atos preparatórios e atos executórios

Aí é que entra a função da verdadeira dogmática penal liberal, para fornecer o aparato teórico que irá se cristalizar no Código Penal de modo a direcionar o Estado à primeira alternativa, vale dizer, a impunidade dos atos preparatórios, diferenciando-os nitidamente dos atos executórios. Como ensina Maggiore [5], esta diferenciação deve ser localizada em dois elementos objetivos: a não-equivocidade e a idoneidade.

A não-equivocidade, também denominada de “valor sintomático do ato”, propõe que o ato executório só seja identificável quando ele demonstra de maneira inequívoca a intenção de cometer um delito determinado. O ato executório anuncia por si mesmo, pela maneira exterior como ele se desenvolve, a intenção criminosa de maneira objetiva e inequívoca.

Como adverte Antolisei [6], o requisito da univocidade atende a uma exigência de proteção da esfera de liberdade do cidadão, para fazer com que a intenção criminosa não seja imputável senão quando ela se exterioriza nesses atos inequívocos, evitando que o Estado extraia essa intenção criminosa de outras especulações que não o próprio ato objetivamente considerado, como o ado do agente, a sua orientação política, o preconceito do magistrado julgador etc.

Mas não basta a univocidade: o ato, além de inequívoco, deve ser idôneo: ele deve ter eficiência causal e objetiva a atingir o resultado, como leciona Bettiol: “O ato deve ter um valor causal (idôneo) e sintomático (não equívoco)” [7]. Reunidos esses dois requisitos em um ato, está-se diante de um ato executório, e, portanto, punível.

Mesmo os atos preparatórios que não são em si “inocentes” e constituem crime de per se, (porte ilegal de arma de fogo) são apenas puníveis enquanto tais, pois em si mesmos não fornecem o valor sintomático e causal de um tipo penal específico, e, portanto, não podem ser considerados atos executórios, por exemplo, de roubo ou homicídio enquanto não houver atos sintomáticos (não equívocos) e causais (idôneos) destes crimes.

Cumpre ponderar também que até mesmo um ato executório pode se apresentar equívoco, se não se acrescenta o critério formal-objetivo de ingresso no núcleo do tipo. Por exemplo: uma pessoa que coloca uma escada na parede de uma casa e começa a escalada pode estar com o propósito de cometer um furto, ou um estupro, ou um homicídio, ou até mesmo prestar ajuda ao vizinho, por exemplo, se ouviu gritos de socorro.

Sem o ingresso da conduta humana em algum elemento formal do tipo não há como afirmar a tentativa, seja pelo critério da univocidade, seja pelo critério da idoneidade. Logo, não se pode negligenciar o valor da teoria objetivo-formal como decisivo para conferir univocidade ao ato.

Os atos preparatórios sempre foram considerados impuníveis pois eles não constituem o início da execução, eles não carregam em si esses dois atributos dos atos executórios (não-equivocidade e idoneidade). Por isso, a lei penal só pode punir a tentativa quando ela se exterioriza nestes últimos atos, os executórios, pois somente estes trazem a segurança de se punir uma intenção criminosa inequívoca e idônea.

Como adverte Ortolan, um grande hiato de tempo e espaço ainda separa o projeto, mesmo resolvido, mesmo anunciado externamente, mesmo decidido entre vários agentes, da realização do delito, e, portanto, “préparation et commencement sont deux choses disctintes[8]. Logo, mesmo a preparação sofisticadamente idealizada e planejada, materialmente bem organizada e estruturada, não a disso: uma preparação impunível (artigo 31, Código Penal brasileiro).

Posso reunir inúmeros comparsas para assaltar um banco, adquirir armamento pesados, decidir dia e horário, distribuir as tarefas de cada um em uma planilha bem detalhada, tudo isso constitui meros atos preparatórios do roubo se um minuto antes do horário marcado eu afirmo aos meus comparsas, todos reunidos, que o plano deve ser abortado, que de fato deixa de ser executado. Ninguém ousaria negar que houve mera preparação impunível do crime de roubo, já que não houve o início da execução (atos de ameaça ou violência para a subtração de patrimônio).

Spacca

Sem esse início de execução, que ingressa no núcleo do tipo, ninguém poderia afirmar se todo aquele planejamento e armamento era destinado à pratica de um roubo (artigo 157, ) ou de homicídios praticados por grupo de extermínio (artigo 121, §6º, ). Se a polícia nos prendesse na posse do armamento, a flagrância em si não poderia fornecer à polícia senão a inequivocidade dos crimes de porte de arma e de associação criminosa, já que o crime que se iria praticar com todo esse armamento permanece no plano do equívoco.

E mais: ainda que confessássemos que iríamos praticar o roubo e que a polícia interrompeu esse roubo a ser realizado em futuro próximo, ainda assim não se pode falar de tentativa, pois, embora a inequivocidade esteja presente, falta a idoneidade dos atos: não havia ainda a eficácia causal nos atos para atingir o bem jurídico “patrimônio” do banco.

Não se iniciou, por atos idôneos, a lesão ao bem jurídico que essa intenção inequívoca tinha por meta. A única punição que o Estado poderia inflingir a mim e meus comparsas seria pelos fatos que em si já configuraram tipicidade penal: porte ilegal de arma e a associação criminosa. O roubo nunca existiu: foi meramente preparado, mas jamais executado.

Vê-se que a distinção entre atos preparatórios e atos executórios constitui o núcleo de uma sólida e liberal teoria da tentativa no Direito Penal. Mas esta distinção não é meramente dogmático-penal: ela é eminentemente política, pois é sobretudo neste terreno que o Estado costuma revelar a sua faceta mais ou menos liberal, ou mais ou menos totalitária. O título do presente artigo foi uma deliberada e parcial apropriação do título da obra “La politique criminelle des États autoritaires”, do jurista francês Donnedieu de Vabres [9].

Discorrendo sobre a política criminal dos regimes fascistas, soviéticos e nazistas, ele demonstra ser detectável na política criminal desses regimes totalitários, dentre outros elementos, um denominador comum: a tendência de eliminar qualquer distinção entre ato preparatório e ato executivo, para legitimar então a antecipação da punibilidade estatal aos primeiros como se tentativa já fosse. Logo, os requisitos tradicionais e seguros de verificação objetiva da tentativa, quais sejam, a inequivocidade e idoneidade, desaparecem do Direito Penal desses regimes. Sem esses dois elementos objetivos, a antecipação do poder de punir se torna toda subjetiva: pune-se atos equívocos, que se tornam ofensivos à tutela penal por capricho das autoridades processantes.

E mais: De Vabres notou que, no regime nazista, a noção de “periculosidade” migrou dos atos considerados então “perigosos” para as pessoas: não se tratava mais de punir atos perigosos, mas pessoas perigosas. Logo, pessoas que são consideradas perigosas pelo regime vigente. Em uma palavra: opositores. Percebe-se, portanto, o que dissemos no início a respeito o desvio da função do Direito Penal e do Processo Penal: de uma função de limitação do poder punitivo para um instrumento de perseguição implacável de opositores políticos.

Uma simples função de facilitar — e coonestar — o extermínio moral, político e jurídico da oposição. É evidente que nesses regimes os atos inocentes da vida civil ou até política como se reunir em locais públicos ou privados, protestar, manifestar-se, ler certos livros etc., podem adquirir uma conotação penal, bastando que esses atos equívocos por natureza sejam interpretados de maneira “ofensiva” ou “ameaçadora” pelo regime vigente.

Um chavão que vem sendo utilizado é o de que “a mera tentativa deve ser punida como consumada, pois se o crime se consumar já houve a abolição do Estado democrático de Direito e o golpe está consumado, inviabilizando a punição”. Sem dúvida, isso é verdadeiro. O problema é que esse chavão é utilizado de maneira intencionalmente distorcida para ocultar o fato decisivo: é preciso que haja de fato essa tentativa que será punida como consumada!

Que a tentativa de abolir o Estado democrático de Direito deva ser realmente punida como se consumada fosse, ninguém há de pôr em dúvida. Ocorre que mesmo essa tentativa que é punida a título de crime consumado exige comprovação de que existiram atos unívocos e idôneos, vale dizer, que realmente fique comprovada uma tentativa. O fato de que o tipo penal contém a expressão “tentar” só reforça que o tipo penal só se consuma se o agente…tentar, vale dizer, se ele praticar atos não-equívocos e idôneos em direção à lesão do bem jurídico.

Do contrário, estaríamos trabalhando com um sistema penal típico de Estados totalitários, onde o “sonhar” em atingir os detentores do poder já ingressa na esfera de ilicitude penal. Podemos dizer com Montesquieu que, nesses Estados que assim operam, antecipando a ingerência penal aos atos preparatórios, “não só a liberdade deixa de existir, mas até a sombra dela” [10].

 


[1] MONTESQUIEU. Do espírito das leis, Trad. Roberto Leal Ferreira, São Paulo: Martin Claret, 2014, p. 279.

[2] Ver: /2023-jan-11/nadir-mazloum-tentacao-jacobina-uso-politico-processo-penal/.

[3] BETTIOL, Giuseppe. O problema penal, Trad. Ricardo Rodrigues Gama, São Paulo: LZN Editora, 2003, p. 36.

[4] MILL, John Stuart. Sobre a liberdade, Trad. Denise Bottmann, Porto Alegre: L&PM, 2016.p. 146.

[5] MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale, Volume I, Parte Generale, Tomo primo, 5ª Edizione, Bologna: Nicola Zanichelli, p. 544.

[6] ANTOLISEI, sco. Manuale di diritto penale: parte generale, Terza Edizione, Milano: Giuffrè, 1955, P. 343.

[7] BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal, Volume II, Trad. Paulo José da Costa Jr. e Alberto Silva Franco, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 226.

[8] ORTOLAN, J. Éléments de Droit Pénal, Quartième Édition, Paris: Plon et cie, 1875, p. 436.

[9] DE VABRES, Donnedieu. La politique criminelle des États autoritaires, Paris: Libraire du recueil sirey, 1938.

[10] Do espírito das leis…, p. 280.

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