Corte IDH decide que eleições venezuelanas de 2013 não foram autênticas
9 de dezembro de 2024, 6h38
No último dia 2 de dezembro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos realizou a notificação da sentença do Caso Capriles vs. Venezuela ao Estado venezuelano [1]. A sentença [2], julgada pelo tribunal em outubro de 2024, declara a responsabilidade internacional da Venezuela pela violação de direitos humanos de Henrique Capriles Radonski, então candidato a presidente, ocorridas no contexto das eleições de 2013 no país.

Em outubro de 2012, Hugo Chávez foi eleito para exercer o quarto mandato consecutivo como presidente da Venezuela. Após eleito, Chávez designou como vice Nicolás Maduro. Em dezembro do mesmo ano, o presidente eleito recebeu autorização da Assembleia Nacional para realizar um tratamento de saúde em Cuba, mas morreu em março de 2013.
Com a morte de Chávez, a Sala Constitucional do Tribunal Supremo de Justicia (TSJ) entendeu que o cargo vago deveria ser ocupado por Maduro, que já vinha exercendo o cargo de presidente encargado de la República durante a sua ausência. Para o TSJ, o novo mandato de Chávez havia se iniciado em 10 de janeiro de 2013, mesmo que ele não tenha participado da cerimônia de posse em razão do tratamento de saúde no exterior. Assim, o tribunal venezuelano entendeu que o vice-presidente em exercício era Nicolás Maduro, que deveria assumir como presidente segundo a Constituição do país [3].
A Corte Interamericana ressaltou que, na prática, a decisão do TSJ viabilizou a candidatura de Maduro à presidência, visto que a Constituição venezuelana veda que vice-presidente em exercício se candidate ao posto. O TSJ também determinou que o presidente encargado não precisa deixar o cargo durante o processo eleitoral.
Eleições em 2013
Em 9 de março de 2013, o Consejo Nacional Electoral (CNE) da Venezuela convocou eleições para o dia 14 de abril de 2013. Se candidataram à presidência do país Henrique Capriles, do partido Mesa de la Unidad Democrática (MUD), e Nicolás Maduro, do Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV).

Para a Corte IDH, ficaram comprovados no processo internacional o “uso dos meios de comunicação públicos, declarações e mobilizações de funcionários públicos, e o uso de recursos públicos, para a cobertura e promoção da campanha de Nicolás Maduro”. [4] Carros e edifícios oficiais, por exemplo, foram utilizados com fins eleitorais para atos de proselitismo político ou distribuição de materiais de propaganda a favor de Maduro [5].
A sentença aduz, ainda, que a equipe de campanha de Capriles apresentou 348 denúncias sobre possíveis irregularidades na campanha de Maduro, entre março de abril de 2013, ao CNE. A Corte Interamericana ressalta que não há informações sobre o trâmite dessas denúncias [6].
Em abril de 2013, depois das eleições que elegeram Maduro com 50,61% dos votos, enquanto Capriles obteve 49,12%, o candidato da oposição solicitou ao CNE uma auditoria completa, inclusive sobre os materiais de votação, com base na Ley Orgánica de Procesos Electorales da Venezuela.
Capriles também apresentou, em maio, um recurso eleitoral perante a Sala Eleitoral do TSJ, pleiteando que a eleição fosse declarada nula, e questionando a falta de respostas adequadas aos pedidos apresentados ao CNE. Ocorre que, em junho, a Sala Constitucional do TSJ decidiu julgar todos os processos pendentes junta à Sala Eleitoral, cujo objeto fosse a contestação das eleições presidenciais, avocando de ofício tais processos. Capriles suscitou a parcialidade dos membros da Sala, requerendo que fosse designado um grupo imparcial para julgamento de sua causa, o que foi rechaçado pelo TSJ.
O recurso de Capriles foi julgado improcedente pela Sala Constitucional, que afirmou não existir “elementos fáticos ou jurídicos” [7] que embasassem seus pedidos. Além disso, o TSJ aplicou uma multa a Capriles, alegando que ele empregou “expressões ofensivas e desrespeitosas contra a Sala Constitucional e outros órgãos jurisdicionais”, acusando a Sala de “obedecer à linha do partido de governo” [8].
Decisão da Corte Interamericana
Diante dos fatos apresentados, a Corte Interamericana concluiu:
A Corte concluiu que o processo eleitoral ocorreu em um contexto de deterioração progressiva i) da separação de poderes na Venezuela, e ii) da independência do Consejo Nacional Electoral (CNE) e do Tribunal Supremo de Justicia (TSJ). No caso, a Corte verificou a existência de um uso abusivo do aparelho de Estado durante o processo eleitoral que favoreceu o candidato oficial, Nicolás Maduro Moros, e consequentemente afetou a integridade do processo eleitoral e os direitos políticos do senhor Capriles e seus eleitores. Da mesma forma, a Corte concluiu que os direitos às garantias judiciais, à proteção judicial e à liberdade de expressão foram violados no contexto do recurso eleitoral contencioso apresentado pelo senhor Capriles para solicitar a anulação da eleição. O exposto, uma vez que o TSJ descumpriu suas obrigações decorrentes das garantias de imparcialidade e do dever de fundamentar a decisão em que declarou o recurso inissível. Além disso, a Corte determinou que a multa aplicada ao senhor Capriles no âmbito do processo contencioso constitui uma violação ao seu direito à liberdade de expressão e ao direito à defesa. Com base no exposto, a Corte concluiu que o Estado é responsável pela violação dos artigos 23, 13, 24, 8.1 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento.[9]
O juiz brasileiro e atual vice-presidente da Corte, Rodrigo Mudrovitsch, apresentou individualmente seu voto concorrente, em que se aprofunda na fundamentação sobre as violações ao artigo 23 da Convenção Americana, consignadas na sentença, resgatando lições doutrinárias e a jurisprudência internacional sobre direitos humanos. [10]
Para Mudrovitsch, a sentença evidencia a relação intrínseca entre a proteção dos direitos humanos e a democracia representativa, e destaca que é dever dos Estados assegurar “a integridade dos processos eleitorais, especialmente sob o ângulo da garantia de igualdade de oportunidades entre os grupos em disputa” [11].
Todavia, o magistrado argumenta que a Corte IDH focou sua análise, à luz do princípio democrático, no desequilíbrio entre os candidatos quando um deles já ocupa cargo público (e se utiliza deste indevidamente para obter vantagens na corrida eleitoral), concluindo que os Estados devem assegurar a integridade das eleições garantindo iguais oportunidades aos grupos em disputa. E, para Mudrovitsch, o cerne da questão não é esse. Aduz no voto:
11. Não ignoro que a igualdade de oportunidades na competição eleitoral consiste em elemento importante do art. 23 da Convenção e da questão controvertida no caso Capriles vs. Venezuela, conforme assentou com precisão a Sentença.
12. Todavia, o cenário fático submetido à análise da Corte permite reflexão mais aprofundada sobre o significado e o alcance da proteção ao regime democrático na Convenção e na jurisprudência deste Tribunal. É necessário avançar no exame da democracia representativa para além da garantia de igualdade de oportunidades, cujo enfoque predominantemente formal, embora importante, reduz a capacidade da Corte captar adequadamente o contexto e os movimentos políticos que conformam as pretensões deduzidas perante o sistema interamericano de direitos humanos. [12]
O brasileiro, que defendeu tese de doutorado na USP (Universidade de São Paulo) em 2016, com o tema “Democracia e Governo Representativo no Brasil” [13], argumenta que as eleições venezuelanas de 2013 deixaram de ser autênticas principalmente em razão da ausência de imprevisibilidade do resultado.
Justificativa de magistrado
O seu voto esclarece que, na antiga democracia ateniense, a composição de órgãos representativos era definida mediante sorteios dentre aqueles que eram considerados cidadãos, gozando estes, portanto, de chances absolutamente iguais de serem sorteados. Nesse sistema, todos os cidadãos eram considerados igualmente capazes de exercer o poder, “inexistindo distinção entre representantes e representados no que diz respeito à qualificação” [14].
Na democracia representativa moderna, por outro lado, “a ideia que subjaz a escolha de representantes para exercer o poder não é, na formulação inicial desse tipo de governo, que todos possam fazê-lo, mas, sim, que os melhores ocupem esses espaços”. [15] Nesse sentido, Mudrovitsch conclui que a democracia representativa que o artigo 23 da CADH protege vai muito além de uma análise formal sobre a igualdade de oportunidades entre os candidatos de um pleito.
Rodrigo Mudrovitsch pondera que, sob a ótica da CADH, é preciso estabelecer “arranjos que impeçam a captura definitiva dos critérios de distinção entre representantes e representados por um dos grupos que disputam o poder” [16], que é o elemento que garante a imprevisibilidade dos resultados eleitorais e, por conseguinte, a autenticidade das eleições. Afirma:
45. Essa incerteza no resultado do processo eleitoral, como elemento fundamental da autenticidade da democracia representativa, não restou configurada no caso Capriles vs. Venezuela. Repito: não se trata apenas de desigualdade de oportunidades. O conjunto de ações e omissões das instituições venezuelanas evidenciou que os resultados eleitorais careciam de qualquer imprevisibilidade, revelando o caráter inautêntico das eleições, em franca violação ao art. 23.1.b da Convenção. [17]
O voto de Mudrovitsch discorre, ainda, sobre o instituto da “garantia coletiva”, um instrumento que reforça a proteção dos direitos humanos. A garantia coletiva foi melhor disciplinada pela Corte IDH através da Opinião Consultiva nº 26/2020, como um mecanismo baseado na boa-fé, solidariedade e cooperação entre os Estados americanos para atingir os compromissos firmados internacionalmente.
O magistrado brasileiro explica os motivos pelos quais, na sentença do Caso Capriles vs. Venezuela, a Corte Interamericana exorta os demais países a contribuírem com o cumprimento da decisão:
69. À luz de tais considerações, a invocação da garantia coletiva no presente caso mostra-se não apenas adequada, mas necessária. Em primeiro lugar pelo próprio objeto do caso. O provimento da Corte IDH corrobora as preocupações há muito externadas a respeito da deterioração da democracia venezuelana. Por outro lado, as violações identificadas no presente caso foram produzidas precisamente no processo eleitoral que colocou o atual mandatário no poder enquanto ele ocupava a presidência interina do país. Essa particular situação é indicativa de que o Estado venezuelano possui reduzidas condições institucionais, ou mesmo incentivos, para adimplir, por si só, as obrigações estabelecidas na sentença.
70. Ademais, em sede de cumprimento de sentença, a Corte IDH vem constatando em inúmeros casos que o Estado venezuelano não tem se manifestado a respeito do cumprimento ou não das medidas de reparação ditadas pelo Tribunal, o que denota diminuta receptividade em relação à implementação de suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos. [18]
Multa aplicada a opositor
Por fim, o vice-presidente da Corte discorre especificamente sobre a multa aplicada a Capriles pelo TSJ, em decorrência dos recursos interpostos pela vítima questionando o processo eleitoral. A aplicação da multa foi considerada arbitrária, uma vez que carente de motivação, pelo tribunal interamericano, o qual também considerou que a sanção representou uma violação à liberdade de expressão e aos direitos à garantia e a proteção judicial, resguardados pela CADH.
Mudrovitsch remonta a standards de proteção fixados em julgamentos de casos anteriores pelo tribunal, afirmando que “a Corte IDH reconhece os danos provocados pelo chilling effect à liberdade de expressão” [19]. Para o juiz, o efeito inibidor da aplicação do direito penal deve ser compreendido em sentido amplo, abrangendo o direito sancionatório de modo geral, visto que outras modalidades de sanção (como a multa, no caso Capriles) também podem agir como fatores que desestimulam ou intimidam os indivíduos a realizar denúncias, manifestações e críticas sobre assuntos de interesse público.
Mudrovitsch ainda argumenta, indo além da decisão da Corte, que a multa prevista no artigo 121 da Ley Orgánica do Tribunal Superior de Justicia da Venezuela também representa uma violação ao princípio da legalidade. Para ele, o dispositivo padece de “vagueza e imprecisão”, sendo, por isso, inconvencional [20]. Afirma no voto:
[…] Os critérios interpretativos esgrimidos pelo Tribunal venezuelano não permitem, por exemplo, diferenciar a legítima crítica ao Poder Público do ataque personalíssimo à honra subjetiva do funcionário público. Ao contrário, ao exigir posturas como a “veneración” da instituição ou da autoridade, o parâmetro interpretativo vigente – e aplicado ao caso do sr. Capriles – se projeta em sentido oposto àquele desenhado pela jurisprudência interamericana, que preza pela maior tolerância das figuras públicas ao escrutínio e à crítica pela sociedade civil. [21]
A sentença da Corte IDH em Capriles vs. Venezuela é paradigmática. A decisão fixa entendimento sobre o processo de deterioração da democracia e do Estado de Direito naquele país, afirmando ainda que “CIDH [Comissão Interamericana], o Alto Comissariado das Nações Unidas, o Comitê de Direitos Humanos da ONU e a própria Corte concluíram que diversas ações do Estado afetaram a independência e a imparcialidade do Poder Judiciário na Venezuela desde o ano de 1999”. [22]
Trata-se de um marco na jurisprudência do tribunal interamericano, que incrementa significativamente os standards de proteção dos direitos humanos em nosso continente, a serem observados inclusive em âmbito interno pelos Estados americanos, nestes tempos em que se verificam tantos ataques à democracia e ao Estado de direito.
[1] Acto de notificación de Sentencia en el Caso Capriles vs. Venezuela. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eadkey_2hqE. o em: 03/12/2024.
[2] Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso Capriles vs. Venezuela. Sentencia de 10 de octubre de 2024 (Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_541_esp.pdf . o em 03/12/2024. Tradução livre.
[3] SENTENCIA, p. 08 e seguintes.
[4] Corte Interamericana De Derechos Humanos. Caso Capriles vs. Venezuela. Sentencia de 10 de octubre de 2024. Resumen Oficial Emitido Por La Corte Interamericana. P. 02. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_541_esp.pdf. o em 03/12/2024. Tradução livre.
[5] SENTENCIA, p. 18.
[6] SENTENCIA, p. 22.
[7] SENTENCIA, p. 26.
[8] SENTENCIA, p. 26.
[9] RESUMEN, p. 01.
[10] Voto Concorrente do Juiz Vice-Presidente Rodrigo Mudrovitsch. Caso Capriles vs. Venezuela. Sentença de 10 de outubro de 2024. (Exceção Preliminar, Mérito, Reparações e Custas). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/votos/vsc_mudrovitsch_541_esp_por.docx. o em: 03/12/024. O voto foi disponibilizado também em português, dispensando tradução.
[11] VOTO, p. 02.
[12] VOTO, p. 02.
[13] MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt. Democracia e governo representativo no Brasil. 2016. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/002771771. o em: 03/11/2024.
[14] VOTO, p. 03.
[15] VOTO, p. 04.
[16] VOTO, p. 07.
[17] VOTO, p. 08.
[18] VOTO, p. 13-14.
[19] VOTO, p. 15.
[20] VOTO, p. 21.
[21] VOTO, p. 20.
[22] RESUMEN, p. 01.
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