Julgamento com perspectiva racial desmistifica Justiça de olhos vendados
13 de dezembro de 2024, 11h16
Mesmo antes de entrar em vigor, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial já desperta a oposição de simpatizantes da causa da igualdade racial atormentados por fantasmagóricas armadilhas e “sensos incomuns” que poderiam ser agrupados, grosso modo, nos seguintes supostos problemas:
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o protocolo pretende impor determinada interpretação do princípio constitucional da igualdade, tomando-a como premissa hermenêutica vinculante;
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a iniciativa representa uma intromissão indevida do Judiciário na esfera de competência do Legislativo, visto que o protocolo “criaria” direitos não instituídos por lei;
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a medida pretende direcionar julgamentos em favor de discriminados, ignorando que o protocolo ambiciona justamente destravar esquemas cognitivos cristalizados pelo aprendizado social do racismo e que frequentemente resultam em desconsideração de fatos e provas subordinando-os a valores, ilações ou pendores raciais de julgadores;
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a proposta deveria ater-se ao critério da classe social, olvidando-se que 75% dos mais pobres no Brasil são negros, o que significa dizer que o critério racial engloba o social mas o contrário não é verdadeiro. Ademais, é fato notório que negro rico não está imune ao racismo, de modo que se é verdade que poderio econômico blinda o indivíduo branco novo-rico do justiçamento organizado, do lawfare, o mesmo não se pode dizer de preto abastado.

Que o diga, aliás, o Apóstolo Valdemiro Santiago, aquele do chapéu, o preto: a despeito do vetusto instituto dos “sinais exteriores de riqueza”, no Brasil certos líderes religiosos multiplicam fortunas pessoais em tempo recorde sem que nenhuma instituição jurídica ouse estorvá-los com aporrinhações acerca do modo de multiplicação… Já o pastor preto por acaso é o único que vive às turras com penhoras inclusive do cobiçado dízimo ou oferta, talvez não pela concentração de melanina em sua pele mas pelo uso reiterado do chapéu, quem sabe! Não estou dizendo que o preto é vítima de lawfare mas não me parece irrelevante o fato de ele ser o único pastor incomodado pelo sistema de justiça.
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a proposição estorva o cânone da neutralidade judicial e institui um viés racial em substituição ao viés atual centrado na “objetividade”, na “essencialidade do fato e não do olhar-sobre-o-fato”;
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a decisão do CNJ institui uma espécie ilegítima e descabida de ação afirmativa processual e dirige-se unicamente aos crimes de violência racial, conclusão essa completamente dissociada do conteúdo do protocolo;
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a iniciativa estimula o “ativismo judicial” encorajando o “subjetivismo” e onerando o protagonismo individual dos julgadores com encargos que deveriam ser assumidos pela educação formal, incluindo o ensino jurídico;
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o enfrentamento dos efeitos do racismo sobre a parcialidade judicial deve circunscrever-se à esfera do dever ético — a sensibilização — e não do dever funcional de equidistância e imparcialidade.
Em homenagem à paciência do leitor e à parcimônia no volume de texto deste artigo vou me ater inicialmente a alguns desses aspectos, na esperança de contribuir para o debate e amadurecer futuras aproximações ao tema.
Sobre a concepção de verdade, a hipotética oposição entre “essencialidade do fato” capturado em sua pureza e o “o olhar sobre o fato”, quer me parecer, ressalvadas minhas precárias incursões nos domínios da filosofia do Direito, que entre a grega alétheia (automanifestação da realidade) e a romana veritatis (leitura da realidade) há muito a hermenêutica terá optado por esta última. Se assim não fosse, em tempos de inteligência artificial, aliás, poderíamos rapidamente substituir a judicatura por softwares que alimentados por fatos produziriam mecanicamente sentenças em escala astronômica.

Seria o fim dos acervos, metas do CNJ e reclamações de morosidade do Judiciário.
O problema é que mesmo se resolvêssemos optar por alétheia, a alimentação dos softwares dependeria do manejo da problemática figura da linguagem, da palavra.
Vaguidade e ambiguidade
Ainda com Marilena Chauí aprendemos que o e físico da lei, a palavra, integra um sistema, a língua, compreendida como sistema de signos e relações, conformado por um repertório de símbolos organizado em uma estrutura — as regras de uso. Donde, interpretar é sempre atribuir um significado a um signo.
Marilena Chauí, referindo-se à linguagem como manifestação cultural, acentua que o signo linguístico designa objetos e coisas, mas também valores, ideologias e sentimentos.
Dois atributos dos signos linguísticos, os quais perseguem a existência de toda e qualquer palavra, merecem consideração especial:
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a vaguidade, definida pela indeterminação do significado;
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a ambiguidade, que se caracteriza pela multiplicidade de significados suscetíveis de serem atribuídos ao signo.
Vaguidade e ambiguidade, cuja ocorrência torna sempre complexo o exercício interpretativo da linguagem do senso comum, ganham especial relevância no momento em que a palavra é empregada para a construção de enunciados prescritivos de conduta.
Referindo-se ao problema da linguagem constitucional, por exemplo, Celso Bastos [1] preconiza que apenas excepcionalmente deve-se atribuir aos vocábulos empregados no texto constitucional um sentido técnico, devendo ser privilegiado o significado atribuído pela linguagem comum. Anota o autor [2] que:
“Em certo sentido, pode-se afirmar que a Constituição não tolera o vocabulário técnico (…) o que se pretende realçar é a mais íntima e natural vinculação povo-constituição, veiculada por um vocabulário que é muito mais a encarnação de valores e hábitos do que mesmo a expressão de refinadas técnicas de comunicação normativa. Valores e hábitos, aliás, que serão tanto mais preservados quanto revelados sob a roupagem filológica com que o povo costuma paramentá-los.”
A despeito da logicidade e da força persuasiva do argumento de Bastos, não se pode olvidar das lições de Tércio Sampaio Ferraz Jr. [3], no que se refere à tensão existente entre o “aspecto onomasiológico da palavra, isto é, o uso corrente para a designação de um fato, e o aspecto semasiológico, isto é, a sua significação normativa”.
Preleciona o autor [4]:
“Ao disciplinar a conduta humana, as normas jurídicas usam palavras, signos linguísticos que devem expressar o sentido daquilo que deve ser (…) O legislador, nestes termos, usa vocábulos que tira da linguagem cotidiana, mas frequentemente lhes atribui sentido técnico, apropriado à obtenção da disciplina desejada (…) A determinação do sentido das normas, o correto entendimento do significado dos seus textos e intenções, tendo em vista a decidibilidade de conflitos constitui a tarefa da dogmática hermenêutica.”
Jurisprudência sentimental
Uma nota deve ser destinada também para assinalar a natureza distinta da interpretação constitucional, visto como a exigência de regramento de diversificadas ordens de relação jurídica, impõe à linguagem constitucional, especialmente aos princípios constitucionais, uma alta densidade semântica, do que resulta um alto grau de abstração, ao contrário do que ocorre com as regras constitucionais, cujos atributos as tornam mais próximas da norma jurídica lato senso, vez que possuem baixa densidade semântica e, consequentemente, baixo grau de abstração: obrigam, proíbem ou permitem.
Justamente em razão da complexidade do fenômeno linguístico, não são poucos os doutrinadores que, ao examinarem o exercício de interpretação, põem em questão a necessidade de o intérprete duvidar de si mesmo, diligenciando para que suas predileções pessoais não desemboquem num proceder despótico.
Criticando o fenômeno por ele denominado de jurisprudência sentimental, assevera Carlos Maximiliano que, “em geral, a função do juiz, quanto aos textos, é dilatar, completar e compreender; porém não alterar, corrigir, substituir. Pode melhorar o dispositivo, graças à interpretação larga e hábil; porém, não — negar a lei, decidir o contrário do que a mesma estabelece” [5].
Prossegue o autor:
“Cumpre evitar, não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais este se apaixonou, de sorte que vislumbra no texto ideias apenas existentes no próprio cérebro, ou no sentir individual, desvairado por ojerizas e pendores, entusiasmos e preconceitos.” [6]
Em referência à matéria, acentua Miguel Reale:
“O primeiro dever do estudioso, ao aplicar o método fenomenológico, é procurar afastar de si todos os preconceitos, todos os prejuízos porventura formados a respeito do mesmo fenômeno, notadamente quanto à sua transcendência, ou realidade fora da consciência (‘epoqué’ fenomenológica). Devemos colocar-nos em um estado de disponibilidade perante o objeto, no sentido de procurar captá-lo, na sua pureza, assim como é dado na consciência, sem refrações que resultem de nosso coeficiente pessoal de preferências, para poder descrevê-lo integralmente, com todas as suas qualidades e elementos, recebendo-o ‘tal como se oferece originariamente na intuição (descrição objetiva)’” [7].
J.J. Gomes Canotilho, sco Ferrara e Konrad Hesse, também chamam a atenção para o fenômeno da pré-compreensão, consistente na incidência de valores e ideologias sobre o trabalho interpretativo, afetando-o, quando não pura e simplesmente condicionando-o.
Nesta quadra vale lembrar dois precedentes do STF diretamente relacionados ao tema em análise:
“1. no julgamento do RE 635659/SP, sobre porte de drogas para consumo pessoal, o STF adotou os seguintes motivos determinantes (extratos do voto do Ministro Alexandre de Moraes, entre outros):
“(…) Foram analisadas 656.408 ocorrências, entre 2003 e 2017, de flagrantes por tráfico, além de 556.613 apreensões como uso. Ou seja, mais de 1,2 milhão de casos de 2003 a 2017, todos do Estado de São Paulo, tanto flagrante por tráfico quanto boletim de ocorrência ou registro da polícia militar por uso. Nesses anos todos, foram catalogadas 2.626.802 pessoas envolvidas. (…)”
”(…) O branco, para ser considerado traficante, tem de ter 80% a mais que o preto ou pardo. Vamos somando as três grandes características: analfabeto jovem, em torno de 18 anos, preto ou pardo. A chance dele, com uma quantidade ínfima, ser considerado traficante é gigantesca. O branco com mais de 30 anos e curso superior precisa ter muita droga com ele no momento para ser considerado traficante. (…)”
“(…) Todo sistema de persecução penal vem gerando discriminação, porque as medianas quantitativas são muito diferentes nos critérios de grau de instrução, idade e cor da pele. Não há razoabilidade para isso. O estudo demonstra que não há razoabilidade para isso. (…)”
2. no julgamento do HC 208.240, sobre perfilamento racial, consoante extratos do voto do Ministro Alexandre de Moraes, entre outros, este foi o entendimento firmado pelo STF, expresso inclusive no dispositivo:
(…) Então, parece-me aqui que um dos requisitos essenciais, ou – eu diria – o requisito essencial para caracterização do perfilamento racial – e repito: o perfilamento racial, enquanto processo das forças policiais de discriminação, de racismo, infelizmente, existe no Brasil? Existe. Deve ser combatido? Deve ser combatido sob duplo aspecto: processualmente, a prova ser ilícita e, penalmente, aquele que pratica o perfilamento racial ser processado por racismo. Agora, o perfilamento racial se caracteriza exatamente por ser esse procedimento que as forças policiais fazem uso de generalizações fundadas na raça. (…)”
Não é portanto o protocolo responsável pela criação de qualquer viés interpretativo, senão o Supremo Tribunal Federal deliberando, à unanimidade (no caso da tese do HC) que há viés interpretativo racialista que obviamente não se resume ao agente de autoridade mas a todo o sistema de Justiça, cujo enfrentamento não pode ficar à mercê de futura e incerta mudança na educação básica ou no ensino jurídico.
É assim que o Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial ambiciona precisamente equacionar e superar a perspectiva racialista, considerada não como regra geral das decisões judiciais, mas como evento inevitável em um país cujo Código Penal ainda pune o curandeiro independentemente de haver ministrado substância maléfica ou benéfica à saúde.
Contrariando o próprio artigo 18 do Código Penal, o artigo 284 incrimina não um fato específico causador de lesão a bem jurídico determinado; pune-se a pessoa do curandeiro por sua forma de vida.
É assim que não obstante as inexatidões pontuais do Protocolo apontadas por mim em outro artigo, de que são exemplos o uso do improvisado racismo estrutural (espécie esdrúxula de racismo sem racista, por isso mesmo tão festejado) e racismo recreativo (figura de pensamento supremacista, antítese, que se presta a edulcorar um ato essencialmente violento) tais lapsos não deslustram a proficiência e rigor científico do conjunto da obra.
Não será ocioso lembrar, por fim, que a velha noção de isonomia, tantas vezes representada simbolicamente pela deusa romana Iustitia (com seus olhos vendados, segurando a balança com os dois pratos e sem o fiel no meio), mais se identifica atualmente com a representação da deusa grega Diké (filha de Zeus e de Themis), em cuja mão direita figurava uma espada, tendo na esquerda a balança com os dois pratos e sem o fiel, mas com os olhos rigorosamente abertos.
Uma abertura que, a propósito, é absolutamente imprescindível para o bom ofício de todos quanto acreditamos no direito como experiência histórica, dinâmica, e, fundamentalmente, como instrumento de afirmação daquela essência ético-espiritual de que todos os humanos são portadores, referida pela Constituição com o nome de dignidade da pessoa humana.
Em breve voltaremos ao tema.
[1] Celso BASTOS, Hermenêutica e Interpretação Constitucional, pp. 112.
[2] Ibidem, p. 113.
[3] Tércio Sampaio FERRAZ Jr. Introdução ao Estudo do Direito, p. 231.
[4] Ibidem, p. 232.
[5] Carlos MAXIMILIANO, Hermenêutica e Interpretação do Direito, p. 79.
[6] Carlos MAXIMILIANO, Hermenêutica e Interpretação do Direito, p. 103.
[7] Miguel REALE, Filosofia do Direito, p. 362.
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