Retrospectiva 2024

2024: o ano da cannabis no Brasil

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  • é advogada consultora empresarial especialista na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann.

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14 de dezembro de 2024, 17h18

O ano de 2024 ficou marcado pelos avanços significativos na evolução jurídica e regulatória da cannabis no Brasil. Com decisões judiciais históricas, novas resoluções da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o avanço no uso medicinal e veterinário, o setor segue ganhando estrutura e legitimidade. Com um arcabouço jurídico e regulatório mais robusto, o país pavimenta o caminho para um futuro mais inclusivo, onde saúde, ciência e economia caminham lado a lado.

Ainda no primeiro semestre, em junho, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento histórico e descriminalizou a posse e o uso pessoal de cannabis. A decisão da corte foi um marco na política de drogas ao descriminalizar a posse para uso pessoal, priorizando a saúde pública sobre o punitivismo jurídico.

Pelo novo marco judicial, pessoas flagradas com até 40 g ou 6 plantas fêmeas serão, presumidamente, tidas como usuárias de drogas, e não traficantes. Trata-se de uma diferença brutal no tratamento jurídico desses casos. A medida deve corrigir o encarceramento em massa de populações pobres, negras e desprivilegiadas, promovendo paz e justiça social, agendas da Organização das Nações Unidas. E também abre caminho para que pacientes façam o autocultivo sem o risco de persecução penal pelo Estado.

Usos medicinal e veterinário

Já em novembro, foi a vez do Superior Tribunal de Justiça autorizar o cultivo de cânhamo medicinal, a variedade da planta com baixo teor de THC (tetrahidrocanabinol) de onde são extraídas substâncias medicamentosas, a exemplo do canabidiol. O STJ abriu precedente para a importação e o cultivo de cânhamo, ampliando o o aos tratamentos e reduzindo a dependência de importados. Reconheceu que, se a Anvisa já autoriza o uso farmacêutico dos derivados, não pode impedir o próprio país de produzir os insumos. E concedeu seis meses para que o Poder Executivo regulamente a matéria, criando regras claras para plantio, extração e comercialização dos derivados da planta

A Anvisa fez pequenos ajustes regulatórios, mas é preciso avançar. Os aperfeiçoamentos eram prometidos desde setembro de 2023 e foram implementados somente agora, no trimestre final de 2024.

O ajuste mais significativo, em termos de impacto no mercado, foi a inclusão de adendo na Portaria 344/98 (Anvisa) prevendo o uso veterinário de produtos de cannabis. A agência concentra o poder regulamentar referente a todas as substâncias de controle especial (psicotrópicas, entorpecentes), mas não é competente para liberar produtos com aplicação veterinária, tarefa que que cabe ao Ministério da Agricultura (Mapa).

Quando a Vigilância Sanitária — por ordem judicial, diga-se — ou a regulamentar produtos de cannabis, fez questão de frisar que a normativa era restrita ao uso humano, levando a área veterinária a um limbo regulatório. O resultado foi nefasto para o avanço da medicina veterinária canabinoide, com profissionais prescrevendo sem respaldo do próprio Conselho de Medicina Veterinária (CMV), e com nenhuma regulamentação vindo do MAPA, que alegava dependência da Anvisa. Agora, abre-se caminho para que produtos específicos para animais possam chegar ao mercado, sob autorização do Ministério da Agricultura e mediante prescrição de médicos veterinários.

Manejo de flores e produtos manipulados

Spacca

Outro avanço foi a inclusão da monografia de inflorescência (flores) na farmacopeia brasileira. A importação de flores in natura continua banida, mesmo por pacientes enfermos e com receita médica, por decisão polêmica da Anvisa, em meados de 2023. Mas a existência de um padrão farmacopeico para análise e manejo de flores representa um avanço regulatório para controle de qualidade do insumo, tornando mais claro para a cadeia produtiva e qualidade ao consumidor final.

Até as farmácias de manipulação tiveram boas notícias. Em Minas Gerais, já vemos os primeiros resultados positivos do estado, em que o Judiciário finalmente reconhece o direito de farmácias de manipulação para operar com produtos de cannabis manipulados, mediante prescrição médica, derrubando a proibição contida na RDC Anvisa 327/19. Em São Paulo, a tese já encontra boa receptividade no Tribunal de Justiça.

Agora, o tema das farmácias de manipulação será pauta no STF. Em outubro, o Supremo declarou a existência de repercussão geral das demandas, de modo que os ministros irão decidir, de uma vez por todas, se a Anvisa extrapolou os limites de sua competência ao proibir somente as farmácias de manipulação de operar com insumos derivados de cannabis, em detrimento de todo o restante do setor farmacêutico no país.

Entretanto, a Anvisa não parece ter pressa para realizar a revisão da RDC 327/19, que deveria valer por apenas três anos, e, assim, continua brecando o avanço das farmácias magistrais no setor canábico. As empresas que operam com produtos autorizados sob a norma excepcional (importados ou nacionais), ainda estão se adaptando às duras exigências reguladoras do ambiente farmacêutico brasileiro, de modo que não se percebe nenhum movimento sério da agência em revisar a norma, pois não existe consulta pública nem texto para participação popular.

Mas esses avanços representaram uma virada de chave no mercado. Isso porque os pacientes vislumbram melhoria de o aos produtos derivados da cannabis medicinal, impulsionados pelas decisões judiciais e simplificações regulatórias.

Em São Paulo, a lei que permite distribuição gratuita pelo SUS começou funcionar de fato em 2024. Esse cenário foi fundamental para o desenvolvimento econômico do mercado de cannabis medicinal e veterinária, que atraiu investimentos e gerou empregos, consolidando-se como setor estratégico da área farmacêutica. E ainda podemos citar o avanço cultural, pois o debate público sobre a cannabis evoluiu, reduzindo estigmas e promovendo conscientização, especialmente com a descriminalização da posse para uso próprio.

Perspectivas

Por tudo isso, 2024 foi o ano da cannabis no Brasil.

Para 2025, já no primeiro semestre devemos ter — da Anvisa, da União e do Mapa —um consenso ou pelo menos avanços significativos para a conclusão da regulamentação do plantio e cultivo de cânhamo para fins industriais médicos. A matéria é complexa e exige coordenação dos órgãos do Poder Executivo. Mas o STJ marcou prazo de seis meses, de modo que o relógio conta a favor daqueles que aguardam a regulamentação.

Por enquanto, a PEC das Drogas adormece no Congresso, depois de perder impulso para outras pautas políticas. Contudo, a tensão entre o Supremo e o Legislativo pode trazer de volta a proposta, que pretende (re)criminalizar o porte e a posse de cannabis e qualquer outra droga no Brasil, o que representa um retrocesso na política de saúde canábica e justiça social que finalmente avança no Brasil com os importantes tomados e boas respostas dadas pelo Poder Judiciário.

O ano de 2024 será lembrado como um divisor de águas na regulamentação da cannabis no Brasil. Que venha 2025!

Autores

  • é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios, fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann

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