Justo Processo

Alguns pontos sobre a quesitação no crime de feminicídio

Autores

  • é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

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  • é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

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  • é mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e defensora pública do estado de Pernambuco.

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  • é desembargador substituto do TJ-PR magistrado auxiliar da presidência do CNJ mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) e professor de Processo Penal (UTP Emap Ejud-PR).

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14 de dezembro de 2024, 8h00

A Lei nº 14.994 de 09 de outubro de 2024, estabeleceu novos rumos para a prevenção e repressão da violência doméstica e familiar contra a mulher, ampliando o espectro de aplicação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) em diversos eixos.

No ponto objetivo que interessa à nossa abordagem, houve a construção de mais um crime doloso contra a vida que deve ser processado e julgado pelo Tribunal do Júri (artigo 5º, XXXVIII, d, CRFB). Criou-se uma estrutura penal autônoma: o feminicídio. O reconhecimento do feminicídio não é nova.

Foi introduzido pela Lei 13.104/2015 quando dispôs sobre a qualificadora prevista no artigo 121, § 2º, VI, do Código Penal (agora revogada). Mas a grande diferença é que esta apenas descrevia uma circunstância do tipo derivado, caracterizando o homicídio como feminicídio. Para os fatos praticados nesse contexto, após o dia de vigência da nova estrutura normativa — já que se caracteriza como novatio legis in pejus face ao aumento da reprimenda penal (20 a 40 anos de reclusão) —, alteram-se essas características para reconhecer o tipo autônomo previsto no artigo 121-A do Código Penal.

Toda a mudança legislativa implica em diversos efeitos. Nas questões pertinentes ao sistema criminal, a relação indissociável do direito penal com o processo penal acaba sendo latente. Logo, uma readequação penal — como ocorreu na previsão de tipo autônomo — resulta nos efeitos diretos na sua aplicação prática. Em alguns pontos, a adequação merece um esforço interpretativo para que não haja mácula à sua aplicação e não viole o devido processo legal e a ampla defesa.

Como é sabido, em regra, o Tribunal Popular é competente para julgar os crimes dolosos contra a vida e, portanto, o feminicídio. Por isso, nosso objetivo, nesta primária reflexão, se restringe às modificações no tratamento jurídico deste novo tipo penal e o impacto direto sobre a quesitação nos julgamentos realizados pelo júri.

O crime de feminicídio possui características específicas relacionadas à vítima, configurando-se como um tipo penal próprio com natureza hedionda (artigo 1º, I-B, da Lei 8072/90) face à necessária proteção das mulheres vítimas de violência doméstica.

Quesitação específica no feminicídio

Nesse contexto, a quesitação assume um papel crucial, pois trata-se de crime com uma motivação de gênero que exige a individualização de suas particularidades, justamente para que seja caracterizado o tipo autônomo.

A questão se restringe à forma como será garantido aos jurados compreender adequadamente a dinâmica de violência de gênero e sua relação com o próprio fato criminoso e a condição particular da vítima. Da mesma forma, precisa-se garantir o exercício da defesa plena durante o julgamento no júri.

Destaca-se que a formulação dos quesitos no Tribunal do Júri deve receber tratamento diferenciado, respeitando a clareza e a simplicidade exigidas pelo artigo 482, caput, do P. Os quesitos necessitam ser redigidos em proposições afirmativas e diretas, de modo que possam ser respondidos com precisão pelos jurados, conforme o parágrafo único do referido artigo.

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Via de consequência, torna-se natural que a característica especial do feminicídio “por razões da condição do sexo feminino” prevista no § 1º do artigo 121-A do Código Penal, seja submetida à apreciação do Conselho de Sentença de forma diferenciada do que ocorria quando era classificada como qualificadora do tipo derivado. Por isso, há clara necessidade de distinção das características especiais do tipo autônomo na imputação e, consequentemente, na quesitação. O dispositivo legal considera que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve (1) violência doméstica e familiar; (2) menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Dado que o julgamento pelo Tribunal do Júri deve prezar pela simplicidade e clareza, os quesitos precisam ser adequados ao novo tipo penal, ensejando a capacidade de compreensão pelos jurados do que correspondam “as razões de condição do sexo feminino” e o vínculo direto com a conduta. O feminicídio não se resume a um crime de homicídio, mas está intrinsecamente vinculado a razões de condição de sexo feminino. Para evitar confusões, especialmente diante de uma possível tese desclassificatória, recomenda-se o desmembramento do primeiro quesito.

Assim, após o quesito referente à existência do fato, deve-se indagar aos jurados se o crime foi cometido por razões de condição de sexo feminino, com a individualização necessária da sua própria caracterização. Então, o segundo quesito deve ser formulado através da seguinte indagação: “O crime foi cometido por razões de menosprezo à condição de mulher, considerando [justificativa]?” ou “O crime foi cometido por discriminação à condição de mulher, considerando [justificativa]?“. Essa abordagem permite delimitar de forma precisa o elemento especial do tipo penal.

É fundamental que a denúncia não seja alternativa, ou seja, não apresente hipóteses distintas para a caracterização do feminicídio. A acusação deve especificar claramente os elementos que configuram o crime, assegurando o cumprimento do artigo 41 do P e garantindo o pleno exercício da defesa técnica.

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Da mesma forma, há necessidade de adequar os fundamentos da pronúncia aos quesitos (artigo 482, § único, P). Nesta linha, a forma de construção do quesito referente à caracterização do crime não pode ser genérica e abstrata, devendo ocorrer a descrição do fato que constitui as razões de condição de sexo feminino quando envolve violência doméstica e familiar ou o fato em si que ensejou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

As ‘novas’ causas de aumento de pena

Outro ponto relevante diz respeito às alterações sancionatórias do novo tipo penal. A pena do feminicídio poderá ser aumentada de 1/3 até a metade se o crime for praticado: (1) durante a gestação, nos três meses posteriores ao parto ou se a vítima é a mãe ou a responsável por criança, adolescente ou pessoa com deficiência de qualquer idade; (2) contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 (sessenta) anos, com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental; (3) na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima; (4) em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do caput do artigo 22 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006; e (5) nas circunstâncias previstas nos incisos III, IV e VIII do § 2º do artigo 121 deste Código.

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Consequentemente, não há tipificação expressa de qualificadora para o crime de feminicídio. Seguindo a lógica do artigo 483, V, P, essas causas de aumento de pena serão quesitadas após o quesito genérico ou eventuais causas de diminuição de pena arguidas pela defesa.

Surge uma questão prática: imaginemos que a pronúncia traga uma causa de aumento de pena que corresponda à qualificadora do homicídio. Na hipótese do afastamento do feminicídio e remanescendo o homicídio, as causas de aumento de pena que correspondem às qualificadoras deverão ser quesitadas ao Conselho de Sentença. Neste ponto, ocorreu a pronúncia naquelas circunstâncias fáticas que são similares à descrição das próprias qualificadoras previstas no artigo 121, § 2º, . Vale relembrar que os jurados são questionados sobre a matéria fática e não a descrição jurídica do fato.

Exemplificando: o acusado foi pronunciando pela prática do feminicídio com a causa de aumento do emprego de veneno (artigo 121-A, § 2º, V, ). Caso haja a desclassificação do feminicídio para homicídio, aos jurados deverá ser quesitada a qualificadora do emprego de veneno prevista no artigo 121, §2º, III, , na medida em que corresponde objetivamente a imputação fática.

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Revogação das qualificadoras subjetivas

Ainda merece ressaltar que a nova alteração legislativa delimitou as causas de aumento de pena expressamente no parágrafo 2º, do artigo 121-A, . Com o afastamento das motivações previstas no artigo 121, § 2º, I e II, não mais subsiste o motivo fútil ou torpe como circunstâncias qualificadoras do feminicídio, o que reforça a ideia de que este crime possui uma motivação específica e objetiva: razões de condição do sexo feminino. Essa delimitação normativa afasta a incidência das qualificadoras subjetivas, como o motivo fútil ou torpe.

Indo além, como o legislador colocou fim à discussão do elemento subjetivo especial, tampouco pode se reconhecer o motivo fútil ou torpe como agravante no caso de feminicídio.

Por fim, surge uma questão relevante que será objeto de maiores discussões em um futuro próximo: condenados por feminicídio, anteriormente qualificados por motivo fútil ou torpe, poderão pleitear a aplicação retroativa da nova lei? Em tese, por se tratar de lei mais benéfica, os condenados por feminicídio em razão do menosprezo ou discriminação à condição de mulher poderão requerer o afastamento da dupla punição anterior, vez que, apesar das críticas doutrinárias incisivas, o judiciário não reconhecia o bis in idem nestes casos.

Fim de 2024 e perspectivas para 2025

Começamos o ano de 2024 com o artigo “Populismo penal e o princípio da recodificação?”, em que clamamos para que os legisladores compreendessem que “a política criminal não é sinônimo de repressão ou de criminalização. A criminalidade é multifatorial e tem uma íntima relação com as políticas sociais e de distribuição de renda.” Ademais, a realidade demonstra que esse fenômeno “não afeta igualmente as classes sociais ou as raças, eis que sempre recaem sobre a clientela preferencial do sistema penal, o que é totalmente inaceitável em um Estado que busca ‘a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos’”.

Agora, no final de 2024, vemos uma pauta que busca alterar diversos dispositivos normativos penais, para aumentar a punição e tolher inúmeras garantias constitucionais e convencionais. A comunidade jurídica e acadêmica precisa subsidiar os legisladores e o Poder Judiciário, pois há um cabedal amplo de estudos nos últimos 50 anos que auxiliam para concretização de um Estado democrático.

 

A Coluna “Justo Processo” volta no dia 15 de fevereiro de 2025.

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  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa, mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros, professor de Processo Penal e autor de livros e artigos .

  • é advogado criminalista habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é juiz auxiliar da presidência do CNJ, mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) e professor de Processo Penal (UTP, Emap, Ejud-PR).

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