Opinião

O 'superlegislador' e o 'superexecutivo': os poderes inéditos do ativismo judicial

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14 de dezembro de 2024, 6h33

Superestimação do Direito e do judicialismo

Zeenat Mansoor

Quando o sistema judiciário era apenas um apêndice da estrutura estatal repressiva e moralística — um escravo do status quo —, as expectativas em relação a ele era de somente avalizar os humores do poder político e zelar pela integridade dos costumes. Quando o Estado se apequena diante da complexidade, diferenciação e variação intrínseca da vida social contemporânea, principalmente em democracias evolucionárias e competitivas (em que o consensus tende a decair ou exigir formas mais refinadas para ser alcançado), não distribuindo segurança, como antes se esperava dele, é para o sistema de justiça que os olhos ansiosos se voltam.

Na busca de valores perdidos e sem o referencial tradicional de força e de segurança, o justo é colocado sob nova perspectiva. O Direito assume o centro do palco, não mais como instrumento de conservação social e fielmente submisso ao poder político, mas de contestação e de reivindicação, numa sociedade litigiosa, de extremos e em permanente ebulição, distante da mediania do consenso.

Como guardião do mecanismo central — o Direito — de uma democracia jurídica, ao juiz é atribuído um poder inédito, nunca antes registrado nos anais da vida judiciária de qualquer país. Poder que o transforma num “superlegislador” ou num “superexecutivo”, seja como criador de normas (legislador positivo), seja como formulador de políticas públicas.

Mas será que uma política pública não sancionada pelo debate periódico (não ritualizado) sobre seu alcance pode ser qualificada como democrática? O ineditismo dessas prerrogativas constitui um perigoso paradoxo para a própria higidez da democracia, pelo evidente risco de desvio da soberania e consequente concentração nas mãos de uma elite de agentes públicos (uma “aristocracia togada”). A acumulação desse poder inédito não se processa no vácuo, como se houvesse uma disponibilidade extra de poder apropriável, mas acontece às custas do povo (de onde vem a gênese de todo poder político e de onde ele emana, conforme os dizeres constitucionais).

A vida social moderna, política e econômica, materializa-se, em todas as suas formas de expressão, por meio da guardiania judicial (que, historicamente, “diz a última palavra” [1] e é, supõe-se, o menos perigoso — the least dangerous — dos poderes constituídos). As numerosas e excessivas solicitações revelam um ponto de inflexão da moderna sociedade democrática que transfere para a justiça, sem qualquer métrica avaliativa, suas demandas não resolvidas.

Tudo, num locus social litigioso, é motivo para provocar a manifestação do guardião da moral pública e das virtudes sociais. A sociedade democrática não se reconhece mais nas dinâmicas diretas e político-representativas (em cujo cerne estão o diálogo, a persuasão, o acordo e o consenso), mas na resposta judiciária que proporciona aspectos sensíveis ao ideal democrático (mas sem o ingrediente comunitário, social): debate, argumentação, diálogo ritualizado. Como escreve Garapon (1999, p. 51):

“A justiça oferece o espetáculo de um poder desacelerado, dividido, susceptível de recurso, de apelação, de revisão. Essa cena é, portanto, essencialmente descentralizada, opondo-se à concentração do poder. Ela não pertence a ninguém, pois que cada cidadão pode ser altemadamente suplicante ou juiz.”

O debate e a farta argumentação lançados na arena judicial não criam uma linha reta de comunicação das decisões judiciais para a cidadania (Schacter, 2017). Esses aspectos não gozam do selo democrático, não são cunhados para a maioria, mas para poucos iniciados. O lugar de visibilidade democrática reivindicado para a justiça é empanado por esses vieses aristocrático e adversarial.

O fascínio democrático da justiça ainda é enfatizado pela forma como é exercida. Diferentemente do poder político que tende à concentração personalística, a justiça dilui-se por diferentes ordens de jurisdição e por juízes alinhados pelo princípio da colegialidade, fornecendo uma experiência plural. A figura quixotesca de um juiz solitário, distribuindo decisões e assumindo um protagonismo na cena democrática, não resiste aos mecanismos recursais postos à disposição do sistema processual, nem tampouco ao imperativo epistemológico de que a figura do juiz não existe (nem resiste) fora da instituição judiciária. Este esboço revela, de forma inapelável, a distinção essencial entre uma decisão judicial adotada sob o modelo referido e a tomada de decisão da política democrática mainstream, dotada de imediatez e definitividade.

Spacca

Na concepção clássica, o juiz é sujeito à lei e só exerce seu direito de julgar através dela (concretizado na expressão montesquiana bouche de la loi). Ele tende, no presente, a elevar-se acima da lei para tornar-se diretamente o porta-voz do Direito (Garapon, 1999, p. 50) e da democracia ou usa os princípios jurídicos (os mais porosos e indeterminados possíveis [2]) para efetivar seus próprios objetivos políticos preferidos. Este espírito judicialista, potencializado por uma sociedade litigiosa ou uma “sociedade hiperjurisdicionalizada” [3] (Garapon, 1999, p. 93) e um saber jurídico colonizador de outros saberes, injeta um poder inusual em todo o sistema judiciário.

Ativismo judicial

Evidencia-se o ativismo judicial quando, entre muitas soluções possíveis, a escolha do juiz é alimentada pela vontade de acelerar a transformação social ou, ao contrário, de travá-la (Garapon, 1999, p. 56), como se estivesse na vanguarda de uma revolução social que visa tornar-se política. Seu guião é antes uma escola particular (ou pessoal) de pensamento social que, propriamente, a lei, como ingrediente do processo democrático. Pouco importa o viés, se conservador ou progressista, o fato é que o ativismo judicial impõe uma agenda social, sem qualquer sintonia, muitas vezes, com as lições da história. Faz-se, o juiz, portador de uma verdade autossuficiente, capaz de traçar unilateralmente o caminho a seguir pelas multidões.

Insere-se, o ativismo judicial, como um movimento de uma elite funcional – a “aristocracia togada” – tendente a conduzir as sociedades, endossando a crença na incapacidade moral e intelectual da grande e inculta população (Sowell, 2011, p. 38). E neste sentido, o juiz substitui os padrões coletivos e sociais por seus valores e sua compreensão íntima, para a partir deste referencial de predomínio intelectual e moral (“padrões extralegais”), tomar decisões sociais e políticas relevantes.

Politização do Judiciário

No Brasil, o recrutamento de juízes por concurso público de provas e títulos é absolutamente democrático, mas a progressão na carreira, principalmente a composição dos tribunais (em especial, dos superiores), assume um tom acentuadamente político, que acaba sendo capilarizado de cima para baixo. As estruturas judiciárias inferiores não oferecem muita resistência às energias políticas superiores (principalmente de “altos magistrados que se equiparam à classe política” — Garapon, 1999, p. 63). Essas “energias políticas superiores” podem tanto funcionar como “aceleradores de carreira” quanto podem ser um terrível embaraço, dependendo para onde se move o pêndulo dos interesses.

Nas democracias ocidentais modernas, o direito de governar é concedido, ao menos em teoria, por diferentes formas de competição: campanhas e eleições, testes meritocráticos que determinam o o ao ensino superior e ao funcionalismo público (Applebaum, 2021, p. 25). Hierarquias sociais antiquadas geralmente fazem parte da mistura, mas, atualmente, em países com democracia consolidada (como Grã-Bretanha, Estados Unidos e França),  a maioria presume que a competição democrática é a maneira mais justa e eficiente de distribuir poder.

Os políticos mais competentes devem governar. As instituições estatais — o Judiciário e o funcionalismo público — devem ser ocupadas tão somente por pessoas, intelectual e tecnicamente, qualificadas. As disputas entre elas devem ocorrer em um campo de jogo nivelado, a fim de assegurar um resultado justo.

O Estado de Direito nasceu com a revolução sa. Suas notas definidoras são as seguintes: governo constitucional, divisão de poderes, garantia plena dos direitos subjetivos públicos; em resumo: frente ao governo dos homens, o governo da lei. Mas o ideal do governo de leis e não de homens, esconde, muitas vezes, de forma pérfida, a verdade do governo de homens agindo pela lei.

A politização do Judiciário brasileiro refere-se à percepção de que decisões judiciais, em vez de serem baseadas exclusivamente na interpretação da lei, acabam influenciadas por interesses políticos, ideológicos ou sociais. Críticos apontam que certas decisões de tribunais, inventivas ou construtivas (rechtsfortbildung — Rigaux, 2003, p. 323), especialmente em casos de grande repercussão política, refletem mais uma agenda política do que um compromisso com a interpretação imparcial da lei.

A interferência política do Judiciário, em casos especiais, acaba afetando a governabilidade, compreendendo-a como a capacidade de um governo para fazer prosperar suas iniciativas no circuito da representação (Woldenberg, 2019, p. 23).

Exemplo prático disso, a-se com a recuperação ou reconstrução da BR-319, rodovia federal dotada com a capacidade de conectar ou integrar o estado do Amazonas com o estado de Rondônia e o resto do país (além de estabelecer uma ligação internacional — Peru e Bolívia — com o ao Pacífico). Múltiplas decisões judiciais, a nível cautelar, têm impedido ou embaraçado que uma iniciativa do governo representativo avance. Certa ou errada, a interferência judicial ao longo dos anos (quase meio século) tem determinado o rumo da política e funcionado como uma “cláusula de ingovernabilidade” (ou se preferir, de “governabilidade judicial”).

Considerações finais

A democracia não se reduz à produção de normas jurídicas. Os atores da vida democrática não são simplesmente técnicos para criar e aplicar normas jurídicas. Logo, nem o Direito pode assumir a centralidade democrática, nem tudo precisa ser submetido ao juiz, como sacerdote da palavra irrefutável e do poder último.

A cidadania (e o homo democraticus como elemento formativo fundamental) tem objetivos democráticos que rompem, com folga, a esfera da narrativa judiciária e o espaço social litigioso (a exigir sempre mais Direito), não podendo ser limitada à qualidade de consumidora, telespectadora ou demandista, sob pena de sucumbir a uma organização clerical do poder e testemunhar um desvio de soberania, com clara defraudação do povo e do princípio democrático.

A centralidade do Direito e o ativismo judicial na cena democrática são fenômenos coevolutivos, cuja compreensão poderá indicar os novos rumos aceitáveis da democracia contemporânea ou a necessidade de ajustes para corrigir uma jornada que pode levar a um beco sem saída.

Essencialmente, a base política, conceitual, central, verdadeira e legítima da democracia é o povo, o demos — de onde emana todo o poder —, não suas instituições ou seus subprodutos culturais que, além de provisórios em sua estruturação, desempenham uma função instrumental. Se a democracia quiser ser uma forma política predominante, ecoando vivamente nos corações e mentes das pessoas, só pode como uma democracia popular, não simplesmente jurídica ou judicial.

Na equação criação/aplicação do Direito, são esquecidos ou negligenciados os constituintes fundamentais: os usuários, as redes de comunidades que, em essência, são o Direito (o “Direito democrático”, a “legalidade democrática” [4]). Devolver a ciência jurídica à sua instrumentalidade intrínseca e histórica, refletindo as condições e as necessidades comunitárias, é o o básico para reconhecer-lhe como força legítima e justa, verdadeiramente estruturadora de um Estado de Direito caro à calibragem democrática.

O ativismo judicial põe, frente a frente, algumas dicotomias essenciais à democracia: autoridades não eleitas versus documentos normativos promulgados democraticamente; uso estrito versus criativo de precedentes; política versus Direito; poder versus autoridade; controle de constitucionalidade versus lei. Mas para superar todas essas dicotomias, o ideal é voltar-se para o propósito de qualquer esquema estratificado de valores dentro de uma sociedade, promovendo as tendências e os hábitos, entre seus cidadãos, que permitam a busca da felicidade e da melhoria de vida de geração após geração: os filhos não podem ser destinados a viver pior que seus pais.

O ativismo, a rigor, não contribui para promover essa expectativa, e dada a insegurança jurídica de que é portador, apenas funciona como metáfora de preenchimento de vazios e concentração de poder nos estratos burocráticos da justiça, preso ainda, à bagagem ideológica da modernidade.

 


Referências:

APPLEBAUM, Anne. O crepúsculo da democracia. Tradução de Alessandra Bonrruquer. 1a. ed. Rio de Janeiro:Record, 2021.

GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia. O guardião das promessas. Tradução de Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro:Revan, 1999.

GARSCHAGEN, Bruno. Direitos máximos, deveres mínimos. Rio de Janeiro:Record, 2019.

GREGÓRIO, Daniely Cristina da Silva.; TEIXEIRA, Rodrigo Valente Giublin. Os reflexos do ativismo judicial em face da ampliação do o ao Poder Judiciário como instrumento de tutela dos direitos da personalidade. Belo Horizonte:Rev. Fac. Direito UFMG, n. 85, jul./dez. 2024, p. 47-64.

HARARI, Yuval Noah. Homo Deus. Uma breve história do amanhã. Tradução de Paulo Geiger. 1a. ed. São Paulo:Companhia das Letras, 2016.

HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século XXI. Tradução de Paulo Geiger. 1a. ed. São Paulo:Companhia das Letras, 2018.

RIGAUX, François. A lei dos juízes. Tradução de Edmir Missio. 1a. ed., 2a. tiragem. São Paulo:Martins Fontes, 2003.

SCHACTER, Jane S. Putting the politics of “judicial activism” in historical perspective. Supreme Court Review, 2017. Disponível em: https://law.stanford.edu/wp-content/s/2019/03/Jane.S.Schacter-Putting-the-Politics-of-Judicial-Activism-in-Historical-Perspective-2018.pdf. o em: 20 set. 2024.

SOWELL, Thomas. Os intelectuais e a sociedade. Tradução de Maurício G. Righi. São Paulo:É Realizações, 2011.

WOLDENBERG, José. En defensa de la democracia. México:Cal y Arena, 2019.

[1] “O Judiciário é, talvez, o mais eficiente grupo de pressão que existe no Brasil, porque tem a decisão final sobre a maioria dos aspectos envolvendo o Estado Brasileiro” (Garschagen, 2019, p. 124).

[2] Quando o assunto é o ativismo judicial no Brasil, duas situações se sobressaem: a adoção de cláusulas gerais e de conceitos jurídicos indeterminados, bem como a legitimação de direitos de aplicação imediata (Gregório e Teixeira, 2024, p. 50).

[3] Não é tanto a horizontalidade social que gera o fenômeno indicado de uma sociedade hiperjurisdicionalizada, mas certa infantilização dela em exigir sempre uma tutela do Estado-juiz para mediar os seus mínimos conflitos.

[4] Como vem inscrito na Constituição portuguesa: “O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática” (art. 3o.).

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