(Re)pensando o papel do Ministério Público na justiça criminal negocial
14 de dezembro de 2024, 8h00
Nos últimos anos, observamos uma rápida expansão dos espaços consensuais na justiça criminal, impulsionada pelo crescente abarrotamento do sistema judiciário e pela busca de maior eficiência. Esses acordos entre acusação e defesa, que buscam acelerar processos e facilitar a imposição de uma sanção penal mitigada, desafiam a tradicional noção de processo penal. No Brasil, essa evolução pode ser dividida em três momentos principais:
- A Constituição de 1988 (art. 98, inciso I) determinou a criação os juizados especiais para infrações de menor potencial ofensivo, o que foi feito pela Lei n. 9099/95 que introduziu a transação penal.
- As Leis nº 12.850/2013 e 12.486/2013, que regulamentaram a colaboração premiada e os acordos de leniência.
- A consolidação do acordo de não persecução penal (ANPP), inicialmente por Resolução do CNMP e depois pela Lei nº 13.964/2019.
Apesar das vantagens aparentes, como a aceleração de processos e possíveis benefícios ao investigado/acusado, a justiça criminal negocial enfrenta críticas importantes. Entre elas:
- O desequilíbrio de poder entre acusação e defesa, com o Ministério Público assumindo um papel de acusador e julgador.
- A ampliação do direito penal e a fragilização do devido processo legal.
- O risco de condenação de inocentes e a coerção implícita em negociações.
- O retrocesso em garantias processuais e o enfraquecimento da defesa efetiva [1].
Essa dinâmica intensifica o debate sobre o papel do MP nesses acordos. Enquanto a ampla discricionariedade do órgão é justificada por paradigmas filosóficos e jurídicos superados, o acúmulo de funções – acusar, negociar e, em certa medida, julgar – agrava o desequilíbrio e os riscos de abuso. O problema é exacerbado quando as decisões se baseiam apenas em cálculos pragmáticos e estratégias utilitaristas.
Qual deveria ser, então, o papel do Ministério Público? Proponho – com base em nossos princípios constitucionais – que o MP assuma uma tríplice função: acusador, julgador e garantidor. É essa última, orientada por princípios e responsabilidade política, que pode equilibrar as demais, prevenindo abusos e assegurando ability hermenêutico. Isso exige superar a mentalidade inquisitória ainda presente em certas práticas e redefinir o MP como uma verdadeira instituição de garantia, voltada à proteção dos direitos fundamentais e à consolidação da democracia.
O papel do Ministério Público na justiça criminal negociada: exigência de responsabilidade política em um cenário de estado de exceção hermenêutico
Apesar das críticas à prática da barganha, especialmente quanto à relativização de direitos, não se pode ignorar a autonomia do acusado. Como destaca Wedy: “Não se pode impedir que uma pessoa queira, livremente e sem coação, confessar delitos e dar a conhecer práticas criminosas de terceiros” [2]. Partindo dessa premissa, este texto [3] analisa a disparidade de forças entre acusação e defesa e o consequente desequilíbrio entre os atores processuais nas negociações, com foco na suposta subversão das funções de acusar e julgar sustentada no fato de que o promotor determina a realização e os termos do acordo (decisão sobre a culpabilidade do réu) [4].
Embora a crítica à complexidade da acumulação de funções pelo MP seja válida, retirar os atos decisórios do Parquet não resolve o problema. Caso o órgão ministerial apenas negocie e o Judiciário e a validar os acordos, a lógica da barganha seria desfigurada e o sistema acusatório enfraquecido. Nesse contexto, é necessário repensar os conceitos de independência funcional e discricionariedade, além de criar mecanismos para avaliar se a negociação foi adequada ou contaminada por estratégias abusivas. Esse controle pode ser exercido por meio de um dever de ability hermenêutico, que exige decisões fundamentadas, coerentes e íntegras em relação a casos similares.

Os idólatras da discricionariedade do MP e do plea bargain se gabam de que esse sistema é muito presente em países da common law como nos Estados Unidos, mas desconhecem os graves problemas e as pesadíssimas críticas que esses sistemas sofrem no contexto em que estão sendo aplicados. Yue Ma observa que a ampla discricionariedade dos promotores e seu papel predominante nas negociações são vistos como inconsistentes com os princípios de imparcialidade, equidade e responsabilidade que sustentam o sistema jurídico americano [5].
No Brasil, como sempre nos lembra o professor Streck (aqui, aqui, aqui, aqui), o Ministério Público não deve adotar posturas punitivistas ou atuar como mero acusador. A Constituição de 1988 lhe atribui um papel imparcial, com um arranjo institucional que o equipara à magistratura em termos de garantias. Assim, o MP não faz escolhas arbitrárias, mas decisões com responsabilidade política, que demandam fundamentação adequada, especialmente por impactarem direitos fundamentais. Essas decisões não podem ser baseadas em preferências ou estratégias utilitárias, como frequentemente ocorre na prática cotidiana [6]–[7].
Parece óbvio, mas é preciso reafirmar: o oferecimento de um acordo, ou sua recusa, deve ser devidamente fundamentado e livre de coerções ou estratégias abusivas. É essencial garantir que o consentimento do acusado seja genuinamente livre e informado, evitando práticas como blefes ou ameaças que possam induzir uma confissão indevida [8]. De outra forma esse tipo de prática não estará em conformidade com a nossa constituição.
Brian Bix descreve o comportamento estratégico em negociações como o uso de artimanhas, ameaças ou intenções enganosas para obter vantagens. Ou ainda qualquer “estratégia” que as pessoas escolham para lidar com as alternativas que enfrentam [9]. Embora comum em análises econômicas ou na teoria dos jogos, essa abordagem é incompatível com uma perspectiva minimamente adequada de respeito aos nossos valores constitucionais que fundamentam um julgamento justo. Um MP que se conceba como instituição de garantia deve adotar uma postura de decisão fundamentada, em contraste com ações pragmáticas baseadas em estratégias utilitárias. Usar a independência funcional como justificativa para decisões arbitrárias – seja para arquivar, denunciar ou propor acordos – compromete a legitimidade da instituição e sua função como agente de garantia e responsabilidade política.
Um exemplo pertinente encontra-se na obra de Nefi Cordeiro sobre a colaboração premiada. Para o autor, a independência funcional “é simples transposição ao agente acusador penal da garantia de livre convencimento aplicável ao magistrado. Deve o promotor ter assegurada a prerrogativa de convencer-se sobre as provas, estratégias e pedidos durante o processo, sem interferências ou pressões” [10]. Embora Cordeiro reconheça a necessidade de revisão e controle das decisões do membro do MP no âmbito das negociações, ele apresenta a independência funcional como uma abertura para uma atuação pautada em livre convicção e estratégias orientadas pela busca do que se entende como “justo”. É precisamente esse imaginário que se busca desconstruir aqui, para que o Parquet se posicione, de fato, como uma instituição de garantia, capaz de lidar com as contradições inerentes à acumulação de funções (e de poder) no contexto das negociações.
Refletir sobre uma atuação hermeneuticamente adequada durante a negociação exige compreender que a independência funcional não pode ser confundida com a submissão do Direito à consciência individual do membro do MP, tampouco ser utilizada como um salvo-conduto para incursões solipsistas ou decisionistas. No contexto da negociação, o Parquet deve respeitar a busca pela autonomia, integridade e coerência do Direito. Assim, não lhe é permitido negociar pautado por interesses políticos. Proceder de outra forma significa expor a negociação à degeneração promovida por aquilo que Streck chama de “predadores do Direito” – como o subjetivismo, moral, política, economia, entre outros –, transformando-a em um mero instrumento utilitário.
Esse é um ponto crucial para a definição de parâmetros de controle das motivações do MP nas negociações, especialmente em um cenário onde “não há qualquer controle acerca da motivação na decisão do promotor em barganhar” [11]. Tal contexto se aproxima daquilo que Streck denomina estado de natureza hermenêutico ou estado de exceção hermenêutico. Isso decorre, sobretudo, do caráter anti-hermenêutico de posturas alinhadas ao pragmatismo jurídico, que relegam a produção democrática do Direito a um papel secundário, confinando-a em um limbo interpretativo no qual se instaura esse estado de exceção. A predominância de raciocínios e argumentos finalísticos compromete o “DNA” do Direito, colocando em risco sua integridade e coerência. No limite, esse processo pode resultar em um mero realismo jurídico, onde a verdade é substituída pela efetividade [12]. A primazia de um suposto útil em detrimento da normatividade promove a desconsideração das amarras normativas do ordenamento jurídico, comprometendo a própria legitimidade do Direito [13].
Não podemos itir a impossibilidade de controle e relegar o acordo ao campo da mera discricionaridade da acusação. Precisamos do estabelecimento de normativas balizadoras de critérios e parâmetros para a atuação dos membros do MP quanto à issibilidade dos acordos, benefícios e penas a serem negociadas [14]. A definição de critérios que estruturem a negociação a partir de uma racionalidade de princípios [15] pode atenuar a tensão entre as funções de acusador e julgador do órgão ministerial, além de proteger a liberdade e a autonomia de vontade do acusado. Isso exige coerência e integridade [16] por parte do Parquet em suas negociações, uma vez que os novos arranjos institucionais próprios do modelo de justiça negociada impactam a atuação da instituição, que encontra na coerência e na integridade meios de legitimar seu protagonismo [17]. Somente assim será possível assegurar tanto um sistema penal funcional quanto a proteção dos direitos fundamentais das partes envolvidas na barganha. Como destaca Ferrajoli [18], uma instituição de garantia é aquela que promove de forma equitativa os direitos fundamentais de todos.
Considerações finais: superando o estado de natureza hermenêutico da justiça criminal negocial
Para superar o atual estado de desordem hermenêutica que permeia a justiça criminal negocial, é necessário reimaginar o papel do MP como uma instituição que não apenas acusa ou julga, mas que também atua como garantidor de direitos. Essa configuração exige a harmonização entre justiça, eficiência e garantias [19], tendo como pilares a fundamentação responsável (ability hermenêutico), a coerência e a integridade com relação a precedentes e princípios.
A Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) fornece importantes ferramentas para essa reestruturação. Por meio dessa perspectiva, o MP pode ser compreendido a partir de uma tríplice função nos espaços consensuais criminais: acusador, julgador e, sobretudo, garantidor. Essa última função é essencial para equilibrar as duas primeiras, prevenindo abusos e assegurando que a atuação ministerial seja guiada por princípios, em vez de estratégias pragmáticas ou utilitárias, que frequentemente reduzem as decisões a cálculos de conveniência.
[1] VASCONCELLOS, V. G. de. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015, p. 55.
[2] WEDY, M. T. Sistema acusatório e modelo negocial penal: Fortalezas e fragilidades dos sistemas brasileiro e norte-americano. In: (Org.) Anderson Vichinkeski Teixeira, Lenio Luiz Streck, Leonel Severo Rocha. Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos. Nº 18. Blumenau, SC: Editora Dom Modesto, 2022. p. 266.
[3]Agradeço ao colega Francisco Campis e à colega Cássia Menin pela ajuda na revisão deste texto.
[4] VASCONCELLOS, V. G. […], 2015.
[5] MA, Yue. A discricionariedade do promotor de justiça e a transação penal nos Estados Unidos, França, Alemanha e Itália: uma perspectiva comparada. Revista do CNMP, n. 1, p. 192-230, 2011, p. 192.
[6] STRECK, L. L. Precisamos falar sobre o MP: qual é o seu papel? (Parte 2). Consultor Jurídico (Conjur). 10 de fevereiro de 2022. Disponível em: /2022-fev-10/senso-incomum-precisamos-falar-mp-qual-papel-parte/ o em: 09/12/ 2024.
[7] No sentido de responsabilidade política de que se utiliza Dworkin (Cf. DWORKIN, R. Levando os Direitos a Sério. 3 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010).
[8] DE VASCONCELLOS, V. G. Justiça criminal negocial e direito de defesa: os acordos no processo penal e sua conformidade aos direitos fundamentais. Boletim IBCCRIM, v. 29, n. 344, p. 7-9, 2021, p. 8
[9] BRIX, B. H. Diccionario de teoría jurídica. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México/INSTITUTO DE INVESTIGACIONES JURÍDICAS, 2009, p. 45.
[10] CORDEIRO, N. Colaboração Premiada: caracteres, limites e controles. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 139
[11] VASCONCELLOS, V. G. de. […], 2015, p. 175-176.
[12] STRECK, L. L. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Letramento Editora, 2020, p. 345.
[13] QUARELLI, V.; BRAGA MADALENA, L. H..; SAMPAR, R. E. Inconstitucionalidades paradigmáticas e o pragmatismo. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional , v. 14, n. 26, p. 295-313, 10 nov. 2022, p. 311.
[14] DE VASCONCELLOS, V. G. […], 2021, p. 8.
[15] WEDY, M. T. A colaboração premiada entre o utilitarismo e a racionalidade de princípios. Revista Direito e Liberdade, v. 18, n. 3, p. 213-231, 2016, p. 216.
[16] Segundo Ronald Dworkin, o direito como integridade exige dos julgadores que “[…]itam, na medida do possível, que o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal adjetivo”. O que implica “[…]que os apliquem nos novos casos que se lhes apresentem, de tal modo que a situação de cada pessoa seja justa e equitativa segundo as mesmas normas”. (DWORKIN, R. O império do direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 274).
[17] FIRMINO, A. G. A legitimidade da política criminal voltada ao consenso: o acordo de não persecução penal e o papel do Ministério Público. In: CAMBI, E. A. S. Ministério público contemporâneo e do futuro. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021, p. 25.
[18] FERRAJOLI, L. Per un pubblico ministero come istituzione di garanzia, in: Questione giustizia, n. 01, Milano, Franco Angeli, 2012.
[19] Especificamente sobre a questão da eficiência no direito penal e processual penal conferir: WEDY, Miguel Tedesco. A eficiência e sua repercussão no direito penal e no processo penal. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2016.
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