Desonra e o consentimento nos crimes sexuais
16 de dezembro de 2024, 6h08
O livro Desonra, de J.M. Coetzee, vai além das convenções literárias ao explorar questões éticas, morais e jurídicas por meio da história de David Lurie, professor universitário que utiliza sua posição de poder para manipular e constranger sua aluna Melanie. A narrativa desafia o leitor a refletir sobre as nuances do consentimento, especialmente em contextos marcados por assimetrias de poder, trazendo à tona questões que ultraam o campo literário e alcançam discussões jurídico-penais.
A partir dessa narrativa, este artigo propõe uma análise do consentimento nos crimes sexuais sob uma perspectiva jurídico-penal. Utilizando Desonra como ponto de partida para uma reflexão interdisciplinar, busca-se interpretar a obra literária à luz de conceitos doutrinários e tratados internacionais, com enfoque no consentimento como elemento excludente de tipicidade.
A agem abaixo nos faz confrontar uma verdade desconfortável: consentimento não é meramente a ausência de resistência, mas requer, necessariamente, uma manifestação livre e inequívoca de vontade. Coetzee apresenta o seguinte trecho:
“Ele não avisou que vinha; ela fica surpresa demais para resistir ao intruso que impõe sua presença. Quando ele a pega nos braços, ela fica mole como uma marionete. Palavras duras como bastões batem o delicado labirinto de seu ouvido. ‘Não, agora não!’, ela diz, se debatendo. ‘Minha prima vai voltar logo!’
Mas nada o detém. Ele a leva para o quarto, arranca aqueles chinelos absurdos, beija-lhe os pés, perplexo com o sentimento que ela evoca. […]
Ela não resiste. Tudo o que faz é desviar: desvia os lábios, desvia os olhos. Deixa que ele a leve para a cama e tire sua roupa: até o ajuda, levantando os braços e depois os quadris. […] Estupro não, não exatamente, mas indesejado mesmo assim, profundamente indesejado.” (p.26)
A análise do trecho acima revela que o ato de Lurie não é baseado no consentimento de Melanie. As palavras “profundamente indesejado” expressam claramente que, embora não tenha havido uma resistência física ou verbal explícita além da negativa inicial, o desejo de Melanie não foi respeitado. A descrição de sua ividade – “mole como uma marionete” – remete à ideia de uma defesa psicológica, um mecanismo de sobrevivência em situações de violência.
Essa agem demonstra de forma clara um problema recorrente no Direito Penal, onde o consentimento é frequentemente objeto de debates.

No Direito Penal, o conceito de consentimento desempenha um papel central na caracterização de diversos crimes, sendo essencial para distinguir condutas lícitas de ilícitas. Juarez Tavares ressalta que, apesar de sua importância, a análise do consentimento carece de uniformidade teórica. Parte da doutrina tradicional, fundamentada em concepções como a causal, neokantiana ou finalista, trata o consentimento como causa de justificação, o que exige diferenciá-lo da concordância.
Enquanto o consentimento estaria vinculado a normas permissivas e, portanto, à antijuridicidade, a concordância seria aplicável a tipos penais que pressupõem, em sua configuração típica, a ausência de anuência do titular do bem jurídico (Fundamentos de Teoria do Delito).
Abordagens mais recentes, contudo, interpretam o consentimento como causa de exclusão da tipicidade, destacando seu papel na configuração da própria conduta típica. Paulo Busato reforça essa controvérsia ao apontar que o consentimento pode ser real ou presumido. O consentimento presumido, amplamente aceito pela doutrina como causa de justificação, decorre de situações em que a própria norma presume a anuência do titular do bem jurídico. Já o consentimento real é objeto de maior debate.
Quando se trata de anuência ou concordância em crimes que exigem o dissentimento da vítima, como o constrangimento ilegal, o consentimento é considerado excludente do tipo, pois elimina a própria descrição normativa do injusto típico, configurando ausência de prejuízo. Por outro lado, em situações onde o dissentimento da vítima não integra a descrição típica, o consentimento é tratado como excludente da antijuridicidade, uma vez que, mesmo consentindo, persiste um prejuízo jurídico ao titular do bem.
No caso específico do crime de estupro, o consentimento deve ser entendido como causa de exclusão de tipicidade, e não de antijuridicidade, conforme defendem autores contemporâneos. Para ser juridicamente válido, o consentimento precisa ser anterior ao ato, esclarecido, consciente e livre de quaisquer vícios de vontade. Esses requisitos garantem que a manifestação da vítima seja compatível com a autonomia necessária para afastar a tipicidade da conduta.
Além disso, Mariana Leite ressalta que gestos de medo ou expressões de repulsa já são suficientes para demonstrar dissentimento, sem que a vítima precise oferecer resistência física ativa. Ela também destaca que situações de intimidação ou entorpecimento comprometem a capacidade da vítima de agir em defesa de sua autonomia, o que não deve invalidar o dissentimento (Consentimento Como Fator Elementar e Comprobatório do Crime de Estupro). Essa visão está alinhada com a Recomendação Geral nº 35 do Comitê da Cedaw, que enfatiza a ausência de livre consentimento como critério central para caracterizar crimes sexuais, independentemente da presença de violência física ou grave ameaça.
Falta de resistência é efeito de coação
Do ponto de vista internacional, tratados como a Convenção de Istambul reforçam que o consentimento deve ser livre e inequívoco, considerando as circunstâncias coercitivas que anulam a autonomia da vítima. No Brasil, embora o Código Penal ainda dependa da presença de violência ou grave ameaça como elementos nucleares do crime de estupro, a doutrina e jurisprudência têm avançado no sentido de reconhecer que a ausência de consentimento basta para configurar o delito (Cedaw, Recomendação nº 35, p. 6; Convenção de Istambul, artigo 36).
A falta de resistência ativa de Melanie, como descrito por Coetzee, não pode ser confundida com aceitação. À luz das condições necessárias para a validade do consentimento, a submissão de Melanie deve ser compreendida como resultado de um contexto de coação e desigualdade de poder. Nesse cenário, a autonomia de sua vontade está completamente anulada, caracterizando a ausência de um consentimento esclarecido e livre, elementos indispensáveis para afastar a antijuridicidade.
A vulnerabilidade de Melanie torna-se ainda mais evidente ao se considerar que sua falta de resistência não deriva de uma escolha consciente, mas sim de uma incapacidade de reagir às circunstâncias impostas por Lurie. Sua postura iva reflete um estado de coerção psicológica que compromete o requisito essencial de ausência de vícios de vontade no consentimento.
Coetzee não poupa o leitor ao retratar a introspecção de Lurie após o ato: “um erro, um grande erro”. Esse momento de autoconsciência do agressor evidencia que até mesmo ele reconhece a ilicitude de seu ato. Contudo, o dano já está feito, e Melanie, em sua tentativa de “se limpar” da experiência, reforça a dimensão traumática do evento.
Desonra não é apenas uma obra literária, mas um espelho crítico que nos leva a questionar as normas e interpretações jurídicas relacionadas ao consentimento. A narrativa sublinha a importância de uma abordagem humanista no Direito Penal, que considere as circunstâncias e dinâmicas de poder em sua totalidade, protegendo a dignidade e a autonomia de todas as pessoas.
Referências bibliográficas
BUSATO, Paulo César. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2017.
COETZEE, J.M. Desonra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
LEITE, Mariana. Consentimento Como Fator Elementar e Comprobatório do Crime de Estupro: Análise Prática a partir de um Caso da Jurisprudência. Disponível em: [indicar o local ou repositório, se aplicável].
TAVARES, Juarez. Fundamentos de Teoria do Delito. Valência: Tirant Lo Blanch, 2017.
CEDAW. Recomendação Geral nº 35 sobre Violência de Gênero contra Mulheres. Nações Unidas, 2017.
CONVENÇÃO DE ISTAMBUL. Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica. Conselho da Europa, 2011.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!