Dino e Ainda Estou Aqui: como Argentina e Uruguai enfrentaram os crimes das ditaduras
18 de dezembro de 2024, 8h00
Em recente decisão [1] (tomada no agravo interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão do TRF da 1ª Região, que não itia um recurso extraordinário), o ministro Flávio Dino recolocou a discussão sobre os efeitos e alcances da Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79) no cenário dos debates judiciais. Na decisão, o ministro Dino propõe que seja reconhecido o caráter constitucional da controvérsia e a repercussão geral no tema, para discutir se a Lei de Anistia alcança o crime de ocultação de cadáver, em razão da natureza permanente desse crime. Isto é, mesmo que o crime tenha se iniciado antes da vigência da lei, a sua consumação se prolonga no tempo, inclusive para um período futuro, não abrangido pelo hiato criado na Lei de Anistia [2] ou pela EC 26/85 [3].
O debate sobre o alcance e os efeitos da Lei de Anistia nos crimes chamados de “terrorismo de Estado”, ou seja, crimes cometidos pelos agentes do Estado contra os cidadãos, em épocas de ditadura, não é um tema novo na América do Sul. Ouso dizer que é um assunto que une de forma intransponível a região [4]. Na agem entre os anos de terror e ditadura e o processo de transição para democracias, foram utilizadas, pelos países que cooperavam na Operação Condor, “leis de anistia” para crimes de motivação política, que vendiam a ideia de que uma redemocratização só seria possível se houvesse um pacto pelo esquecimento e o perdão dos crimes por motivação política.
Essa agem envolve uma discussão social sobre o sentido da ditadura e seu impacto na política e na ordem jurídica nacional, bem como, das consequências disso para construção da democracia e respeito as instituições jurídicas.
No Brasil são conhecidas as ações ADPF 153 e ADPF 320 (ainda pendente de julgamento), nas quais se discute a compatibilidade da Lei de Anistia com a Constituição Federal de 1988 (CF/88) e com todo o Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos (SIDH). No caso da responsabilidade perante o SIDH o Brasil já foi condenado em duas oportunidades pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) a não utilizar a Lei de Anistia como obstáculo jurídico para não apurar responsabilidades e processar os responsáveis pelos crimes cometidos pelos agentes do Estado na ditadura. Refiro-me precisamente aos casos Gomes Lund vs Brasil (2010) e Herzog vs Brasil (2018). O primeiro caso, justamente, tem como fato de fundo a Guerrilha do Araguaia. Além disso, está em andamento na Corte IDH um novo caso, também vinculado a tortura, morte e ao desaparecimento do corpo (ocultação de cadáver) de Eduardo Collen Leite, no qual o Brasil defende-se argumentando que o STF em 2010, na ADPF 153, julgou que a Lei de Anistia era compatível com a CF/88 [5].
Os casos de Argentina e Uruguai
O debate no Brasil ficou sempre centrado nas disputas sobre validade da jurisdição internacional e nacional sobre o tema, debate que a decisão do ministro Dino voltou a aquecer.
No entanto, Argentina e Uruguai também se debruçaram sobre o problema, com soluções que são diferentes das nossas e merecem ser levadas em consideração nos debates público e jurídico, pois ainda está aqui o fantasma do não enfrentamento judicial de tais responsabilidades.
Em relação à Argentina, é possível verificar uma série de acontecimentos relevantes no sistema de justiça que marcam essa discussão. A primeira questão se refere à recuperação do sistema democrático e de direitos humanos no ano de 1983. Logo em seguida, a instauração e atuação da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, que funcionou entre 1983 e 1984; e o julgamento e condenação das Juntas Militares pela justiça civil, em 1985.
Esse processo histórico de reconhecimento da responsabilidade dos agentes do Estado argentino no cometimento de crimes de terrorismo de Estado, levado a cabo na redemocratização, logo foi seguido pela aprovação das Leis 23.492 (Punto Final) e 23.521 (Obediencia Debida) nos anos de 1986 e 1987.
A Lei de Punto Final (23.492) foi promulgada em 24 de dezembro de 1986 e estabeleceu a suspensão dos processos judiciais iniciados em 1985 contra os acusados de terem cometido o crime de desaparecimento forçado de pessoas durante a ditadura militar. Já a Lei da Obediencia Devida (23.521) foi promulgada em 4 de junho de 1987 e estabeleceu uma presunção iuris et de iure (ou seja, não ite prova em contrário) em relação aos crimes cometidos por membros das Forças Armadas, bem como considerou que eles não eram puníveis por terem agido em virtude da chamada “obediência devida”, um conceito militar segundo o qual os subordinados estão limitados a obedecer às ordens de seus superiores.

Essas duas leis, embora não seja tecnicamente leis de anistia, mas leis de caducidade, podem ser lidas como verdadeiras anistias, ainda que seletivas, pois constituem ato do poder público que declara impuníveis delitos praticados até determinada data, por motivos políticos ou penais, ao mesmo tempo que anula condenações e suspende diligências persecutórias, embora na doutrina argentina exista resistência em considerar as leis como anistia em razão de sua seletividade, de modo genérico pode-se dizer que elas tiveram em alguma medida essa função.
Portanto, embora a Argentina tenha impulsionado, no início da sua redemocratização, os processos de responsabilização dos agentes do Estado pelos crimes cometidos, esses processos foram paralisados (ou extintos) em razão das leis de caducidade estabelecidas em favor dos agentes.
Ocorre que, com a reforma da Constituição da Argentina de 1994, estabeleceu-se a hierarquia constitucional dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, na forma do novo artigo 75,22, entre eles a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH). Com base nisso, em 1997 foi aprovada a Lei 24.820 dando hierarquia constitucional à Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, e em 2003 a Lei 25.778 outorgou hierarquia constitucional à Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade.
Em razão da inauguração dessa nova ordem constitucional foi promulgada no ano de 2003 a Lei 25.779, que anulou por incompatibilidade com a Constituição reformada as Leis de Punto Final e Obediencia Debida. Em razão da anulação das leis que agiam como obstáculo jurídico, foram retomados os julgamentos por crimes contra a humanidade.
No julgamento do caso “Simón” foi suscitada a discussão sobre a constitucionalidade da Lei 25.779, tendo a Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina reafirmado a constitucionalidade da lei e, em consequência, autorizando a continuidade dos julgamentos.
Por sua vez, o caso uruguaio é de extrema relevância para apoiar a tese de que o constitucionalismo regional sul-americano é marcado inexoravelmente pela discussão da responsabilidade dos agentes de Estado, que cometeram crimes contra os cidadãos nas ditaduras que compunham a Operação Condor.
Em fevereiro de 2011 o Uruguai foi condenado pela Corte IDH, no caso Gelman Vs Uruguai, pelo desaparecimento forçado de Maria Claudia Gelman e sua filha nascida em cativeiro, Macarena Gelman, durante a ditadura. Na condenação estabeleceu também que o Uruguai deveria remover todos os obstáculos jurídicos que pudessem impedir a responsabilização dos agentes do Estado uruguaio pelos crimes cometidos na ditadura. Dessa maneira, considerou que a lei uruguaia 15.848, de 1986, de caducidade da pretensão punitiva do Estado por esses crimes era carente de efeitos jurídicos, dada a sua incompatibilidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos e Convenção Interamericana sobre desaparecimento forçado de pessoas.
O Uruguai, que havia aprovado a Lei 15.848/1986, com respaldo de consultas populares diretas, resolveu, por meio da Lei 18.831/2011, revogar a lei de caducidade e restabelecer o exercício da pretensão punitiva do Estado para responsabilização dos agentes pelas violações de direitos humanos na ditadura.
Assim, tanto Argentina como Uruguai decidiram de forma legislativa revogar o arcabouço normativo que impedia a responsabilidade jurídica pelos crimes cometidos por seus agentes nas respectivas ditaduras. Aos respectivos judiciários restou chancelar a compatibilidade da decisão parlamentaria com o sistema de democracia constitucional, aderente ao respeito as instituições de garantia dos direitos humanos, nacionais e internacionais.
O Brasil, por sua vez, segue empurrando o debate para os tribunais, na batalha de teses normativas sobre a validade ou incompatibilidade da Lei de Anistia, em sofisticadas teses sobre alcance e significado normativo do problema. Enquanto isso os esqueletos seguirão no armário, os corpos desaparecidos e a marca autoritária do período ainda estará aqui.
[1] A decisão foi proferida no ARE 1.501.674/PA e se refere aos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia.
[2] A forma do art. 1º da Lei 6.683/79 foi concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais
[3] Na forma do art. 4º , § 2º, da EC 25/86 a anistia abrange os que foram punidos ou processados pelos atos de exceção, institucionais ou complementares., praticados no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
[4] Tenho defendido que o marco de integração da América do Sul para massiva violação de direitos humanos e que uniu os países do Cone Sul foi a Operação Condor, que representou como defende J.Patrice McSherry, um verdadeiro Sistema Interamericano Clandestino ou, nas palavras de Samantha Viz Quadrat o “Mercosul do Terror”. A discussão aprofundada faço em CYRILLO. Carolina. Quatro ensaios sobre o Constitucionalismo Sul-americano. Rio de Janeiro: NIDH, 2024.
[5] A defesa oral do Brasil pode ser conferida na audiência pública na Corte IDH ocorrida em 05 de julho de 2024 e está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=awy2dB0OK1o
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