O ano do Supremo Tribunal Federal
18 de dezembro de 2024, 7h00
O ano de 2024 deve figurar como um daqueles em que o Supremo Tribunal Federal mais atuou na defesa da nossa democracia e dos poderes constituídos em face de aventuras autoritárias e golpistas.
Nosso guardião da Constituição merece, sem favor algum, o reconhecimento do seu invulgar papel na defesa da democracia. A extrema-direita de matriz bolsonarista vinha, como nunca, valendo-se do medo, do ódio e da mentira como capital político. A gradual fragilização dos espaços e dos sentidos da democracia e da relação de pertencimento à sociedade ocorreu através de específicos artifícios enfraquecedores do pacto civilizatório e das instituições democráticas.
Entretanto, para além de mera estratégia política de reprodução e dissipação, o bolsonarismo foi muito além. Atos de violência visaram, para além do mero inconformismo com o processo eleitoral que elegeu o presidente Lula, implementar um golpe de Estado, abolindo nosso Estado Democrático de Direito. Tudo isso foi desnudado pela sob os auspícios do Supremo e da relatoria do ministro Alexandre de Moraes.
Além do relevante papel do Supremo no desnudamento, e respectiva responsabilização, dos atos antidemocráticos mais desafiadores e contundentes desde o golpe militar de 1964, o ano de 2024 deve figurar, ainda, como singular para a trajetória da nossa jurisdição constitucional por diversos outros aspectos, elencados a seguir.

Em abril, o Supremo decidiu que a missão institucional das Forças Armadas na defesa da pátria, na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem não acomoda o exercício de um poder moderador entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (ADI 6.457/DF). No mesmo mês, o tribunal decidiu que a busca pessoal sem mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física (HC 208.240/SP).
Em maio, decidiu-se que constitui assédio judicial comprometedor da liberdade de expressão atentatório à atividade jornalista o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa (ADI 6.792/DF e ADI 7.055/DF). No mesmo mês, o tribunal decidiu que é inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, proibindo-se eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou o modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais (ADPF 1.107/DF).
Em junho, o tribunal decidiu que não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta (Tema 506 RG).
Em setembro, decidiu-se que a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada (Tema 1.068 RG). No mesmo mês, o Supremo decidiu que é permitido ao paciente, no gozo pleno de sua capacidade civil, recusar-se a se submeter a tratamento de saúde por motivos religiosos. A recusa a tratamento de saúde, por razões religiosas, é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, inclusive quando veiculada por meio de diretivas antecipadas de vontade (Tema 1.069 RG).

Pedro Serrano, constitucionalista
Em outubro, o Supremo decidiu que o Ministério da Saúde, em observância aos direitos à dignidade da pessoa humana, à saúde e à igualdade, deve garantir atendimento médico a pessoas transexuais e travestis, de acordo com suas necessidades biológicas, e acrescentar termos inclusivos para englobar a população transexual na Declaração de Nascido Vivo de seus filhos (ADPF 787/DF).
Improbidade culposa, contratação direta de serviços advocatícios e revogação do artigo 39/CF
No mesmo mês, o tribunal decidiu que o dolo é necessário para a configuração de qualquer ato de improbidade istrativa, sendo inconstitucional a modalidade culposa de ato de improbidade istrativa prevista na Lei de Improbidade de 1992.
Ademais, o Supremo, nesse mesmo julgamento, decidiu que a contratação direta de serviços advocatícios pela istração pública, por inexigibilidade de licitação, além demandar procedimento istrativo formal, requer notória especialização profissional, natureza singular do serviço, inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do poder público, cobrança de preço compatível com a responsabilidade profissional, observado, igualmente, o valor médio cobrado pelo escritório de advocacia contratado em situações similares anteriores (Tema 309 RG, RE 656.558/SP).
Em novembro, o Supremo decidiu que é constitucional, por não ter violado o devido processo legal legislativo, a revogação, pela Emenda Constitucional nº 19/1998, da redação original do artigo 39 da Constituição, que previa, no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, a instituição de regime jurídico único para os servidores da istração pública direta, das autarquias e das fundações públicas (ADI 2.135/DF).
Referidos precedentes, meramente exemplificativos, evidenciam que o Supremo, na condição de guardião da Constituição, vem cumprindo, com louvor, as elevadas e desafiadoras missões institucionais a ele atribuídas. Discordâncias pontuais em face de produtos decisórios específicos não devem, jamais, implicar, para além de singela contribuição à revisitação e ao novo debate, em qualquer fragilização desse que, seguramente, figura como uma das maiores apostas realizadas pela Constituição em todas as suas condições e possibilidades.
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