Concorrência sucessória no regime de separação de bens de pessoas maiores de 70 anos
30 de dezembro de 2024, 19h53
Um dos mais importantes julgamentos do Supremo Tribunal Federal do ano de 2024 em matéria de Direito Civil foi o Recurso Extraordinário com Agravo 1.309.642, relatado pelo ministro Luís Roberto Barroso, no qual se examinou a constitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil, que determina: “É obrigatório o regime da separação de bens no casamento (…) da pessoa maior de 70 (setenta) anos”. O principal fundamento da decisão foi o de que
“O dispositivo aqui questionado, se interpretado de maneira absoluta, como norma cogente, viola o princípio da dignidade da pessoa humana e o da igualdade. O princípio da dignidade humana é violado em duas de suas vertentes: (i) da autonomia individual, porque impede que pessoas capazes para praticar atos da vida civil façam suas escolhas existenciais livremente; e (ii) do valor intrínseco de toda pessoa, por tratar idosos como instrumentos para a satisfação do interesse patrimonial dos herdeiros. O princípio da igualdade, por sua vez, é violado por utilizar a idade como elemento de desequiparação entre as pessoas, o que é vedado pelo art. 3º, IV, da Constituição, salvo se demonstrado que se trata de fundamento razoável para realização de um fim legítimo. Não é isso o que ocorre na hipótese, pois as pessoas idosas, enquanto conservarem sua capacidade mental, têm o direito de fazer escolhas acerca da sua vida e da disposição de seus bens”.
Não houve, contudo, declaração de inconstitucionalidade do dispositivo legal impugnado. Decidiu o tribunal, por unanimidade, conferir ao artigo uma interpretação conforme a Constituição, “atribuindo-lhe o sentido de norma dispositiva, que deve prevalecer à falta de convenção das partes em sentido diverso, mas que pode ser afastada por vontade dos nubentes, dos cônjuges ou dos companheiros. Ou seja: trata-se de regime legal facultativo e não cogente.” Fixou-se, nessa direção, a seguinte tese de repercussão geral:
“Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do Código Civil pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública”.
Instituiu-se, desse modo, um novo sistema dual de regimes de bens supletivos, incidentes por força de lei na ausência de opção expressa do casal por um determinado regime: (a) sendo ambos os cônjuges ou companheiros menores de 70 anos, aplica-se a regra geral prevista no artigo 1.640 do Código Civil, incidindo supletivamente o regime da comunhão parcial de bens; (b) sendo qualquer dos cônjuges ou companheiros maiores de 70 anos, aplica-se a regra especial do artigo 1.641, II, incidindo supletivamente o regime da separação de bens.
A tese fixada pelo STF indubitavelmente contribui para mitigar uma histórica discriminação legislativa contra pessoas idosas. No entanto, a adoção (agora supletiva, não mais obrigatória) do regime de separação de bens continua assentada na presunção de que o exercício da autonomia privada por pessoas idosas e capazes deve ser tutelado pelo Estado e de que os bens dessas pessoas devem ser preservados em prol dos interesses patrimoniais dos seus descendentes. Não há outra razão que explique a adoção de um regime de bens supletivo para casais integrados por pessoas maiores de 70 anos diverso daquele vigente para os mais jovens.
A possibilidade de alteração de tal regime por meio de declaração formal de vontade não apaga nem confere legitimidade ao critério de distinção eleito pelo legislador. Em outras palavras, é o critério de fixação do regime de separação bens, e não o seu caráter cogente, a razão da contrariedade do artigo 1.641, II, do CC à Constituição da República [1], razão pela qual a interpretação conferida ao dispositivo pelo STF afigura-se ainda insuficiente para eliminar a sua inconstitucionalidade [2].
Aplicação da tese ao caso concreto
Para além da questão constitucional examinada, o ARE 1.309.642/SP suscita uma outra questão relevante ao aplicar a tese fixada ao caso concreto, no qual a companheira do de cujus pleiteava a sua concorrência sucessória com os descendentes deste. Concluiu o STF que, “como não houve manifestação do falecido, que vivia em união estável, no sentido de derrogação do art. 1.641, II, do Código Civil, a norma é aplicável”, restando a companheira afastada da sucessão.

Como se sabe, a concorrência sucessória do cônjuge ou companheiro sobrevivente com os descendentes do de cujus é disciplinada pelo artigo 1.829, I, do Código Civil, que dispõe: “A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares” [3].
Apesar da redação confusa, prevalece o entendimento de que, como regra, “o legislador ordinário afastou a sucessão do cônjuge quando este já se encontra protegido pela meação decorrente do regime de bens adotado no casamento, excluindo dita sucessão nos casos de comunhão universal e de comunhão parcial sem bens particulares, regimes nos quais há bens comuns entre os cônjuges. Daí ser recorrente a afirmação de que, diante do Código Civil, o cônjuge em concorrência com os descendentes, quando meeiro, não é herdeiro” [4].
Exceção a esta lógica verifica-se justamente no regime da separação obrigatória de bens, em que, mesmo inexistindo meação, o legislador afasta a sucessão do cônjuge ou companheiro sobrevivente. Aqui, optou a lei por, em atenção às razões de ordem pública que supostamente justificariam a obrigatoriedade do regime de separação de bens nas hipóteses listadas no artigo 1.641 do CC, projetar a incomunicabilidade do patrimônio inclusive para após a morte de uma das partes, reputando que “eventual herança poderia acabar por fazer tabula rasa da separação dos patrimônios imposta pelo legislador” [5]. Assim, ao considerar que, na ausência de derrogação da separação obrigatória pelas partes, seria esse o regime incidente no caso concreto, o STF excluiu da concorrência sucessória a companheira supérstite.
Ocorre que, se a negativa da concorrência sucessória do cônjuge ou companheiro sobrevivente assenta no caráter de ordem pública associado ao regime de separação obrigatória, a requalificação do regime de separação imputado às pessoas maiores de 70 anos, que deixa de ser cogente e torna-se facultativo, deveria refletir-se sobre a regra aplicável em sede sucessória. Em outras palavras, se as partes podem escolher entre se manter ou não no regime de separação de bens, não mais pode incidir uma regra sucessória fundamentada na cogência da segregação patrimonial.
O novel regime de separação supletiva de bens criado pelo STF aproxima-se muito mais da separação convencional que da separação obrigatória de bens, pois pressupõe uma espécie de vontade tácita do casal de submeter-se ao regime de separação de bens, ao optar por não modificá-lo. E, diversamente do que se a com a separação obrigatória de bens, a sucessão legítima no regime de separação convencional de bens dá-se com a concorrência do cônjuge ou companheiro sobrevivente com os descendentes do falecido, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça [6]. Com efeito, inexistindo meação entre as partes e ausente qualquer razão de ordem pública a justificar a separação obrigatória dos bens e o consequente afastamento da sucessão, aplica-se a regra geral acima exposta, verificando-se a concorrência sucessória.
Ora, se nem mesmo a expressa opção das partes em vida pelo regime da separação convencional de bens, afastando a comunhão patrimonial no curso da relação, justifica a exclusão da concorrência do cônjuge ou companheiro com os descendentes, com muito mais razão deve-se preservar tal concorrência quando a separação patrimonial decorrer de uma disposição meramente supletiva, aplicável diante do silêncio do casal, conforme estabeleceu o Supremo para as pessoas maiores de 70 anos.
Em suma, o cônjuge ou companheiro sobrevivente que vivia em relação regida pelo regime da superação supletiva de bens concorre com os descendentes do de cujus, não estando configuradas quaisquer das exceções previstas no artigo 1.829, I, como aptas a excluir a concorrência, especialmente diante da diversidade de ratio entre o novo regime da superação supletiva de bens e o tradicional regime da separação obrigatória de bens [7].
Ocorre que o próprio STF decidiu de modo diverso no ARE 1.309.642, concluindo, como visto, que, na ausência de declaração de vontade modificativa do regime de bens, deveria haver a exclusão da concorrência sucessória da companheira sobrevivente. Deve-se ponderar, no entanto, que o tema não foi objeto de reflexão mais detida pelos ministros na fundamentação da decisão, tendo-se considerado a exclusão sucessória como uma consequência óbvia e automática do silêncio dos companheiros acerca do regime de bens a ser observado. Ainda mais relevante é o fato de que, não tendo as partes do processo como antever a tese que seria fixada, parece razoável supor que não houve um efetivo contraditório acerca dos efeitos da aplicação da tese sobre o caso concreto.
Além disso, a decisão do STF deve ser tida como vinculante exclusivamente no tocante à questão constitucional debatida, qual seja, a conformidade constitucional do artigo 1.641, II, do CC. Já a exegese sistemática do artigo 1.641, II (agora interpretado conforme a Constituição), com o artigo 1.829, I, do CC, consiste em interpretação da legislação federal, matéria que compete ao Superior Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 105, III, da Constituição. Parece possível, portanto, que a questão da concorrência sucessória no novo regime de separação supletiva de bens seja revisitada pelo STJ, nada obstante a conclusão a que chegou o STF no ARE 1.309.642.
Vale destacar, por fim, que, na hipótese de o casal optar por regime diverso da separação de bens por meio de escritura pública, tal qual lhe faculta a decisão do STF, a definição da concorrência sucessória deverá observar a regra aplicável ao específico regime de bens concretamente eleito pelas partes. Assim, na hipótese de adoção do regime de comunhão parcial de bens, por exemplo, o cônjuge ou companheiro sobrevivente “concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares. A referida concorrência dar-se-á exclusivamente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do de cujus” [8].
Toda essa discussão parece confirmar o entendimento de que “à corte suprema do país não compete redesenhar, em cada decisão, todo o sistema jurídico” [9]. Com efeito, não é conveniente, ou mesmo possível, que questões jurídicas complexas e com diversas repercussões sistemáticas sejam decididas “de uma só tacada” pelo Poder Judiciário. Tais questões vão amadurecendo e, por vezes, revelando novas facetas com a progressiva reflexão da doutrina e da jurisprudência sobre elas. A prudência emerge, nesse contexto, como virtude capaz de conduzir a soluções jurídicas mais técnicas e mais justas.
[1] Em sentido próximo, v. Patricia Novais Calmon e Vitor Almeida, Regime de bens e etarismo presumido velado: breve análise da decisão do Supremo Tribunal Federal no ARE 1.309.642, publicado em 5.2.2024 no site do IBDFAM.
[2] Mais que isso, a decisão do ARE 1.309.642/SP parece se inserir em uma preocupante tendência verificada na jurisprudência do STF de, em nome de uma suposta deferência ao Poder Legislativo, optar pelo recurso à técnica da interpretação conforme a Constituição mesmo diante de preceitos legais para os quais não há exegese possível que os conforme aos valores constitucionais. Um outro exemplo desta tendência tem-se no julgamento das ADIs 6.050, 6.069 e 6.082, que impugnavam diversos pontos do regime jurídico do dano extrapatrimonial, inserido na CLT na reforma trabalhista operada pela Lei 13.467/2017. Embora o §1º do art. 223-G estabeleça tetos indenizatórios com base no “último salário contratual do ofendido”, em previsão flagrantemente inconstitucional, a validade da norma foi mantida pelo STF, interpretando ser possível “o arbitramento judicial do dano em valores superiores aos limites máximos dispostos nos incisos I a IV do §1º do artigo 223-G, quando consideradas as circunstâncias do caso concreto e os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade”. Sobre o tema, seja consentido remeter a Rafael Mansur, Paradoxo hermenêutico da quantificação do dano extrapatrimonial trabalhista, publicado em 19.8.2023 neste Consultor Jurídico.
[3] Embora o dispositivo se refira exclusivamente ao cônjuge, deve ele ser aplicado também às uniões estáveis por força do princípio da isonomia, conforme decidido pelo STF no RE 878.694/MG, rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 10.5.2017, no qual se declarou a inconstitucionalidade do regime especial de sucessão dos companheiros previsto no art. 1.790 do CC. Para uma defesa dos fundamentos desta decisão, v. Rafael Mansur, O Argumento da Liberdade no Debate sobre a Constitucionalidade do Regime Sucessório do Companheiro: notas ao RE 878.694/MG, in Revista da EMERJ, v. 19, n. 4, set./dez. 2017, pp. 137-160.
[4] Ana Luiza Maia Nevares, A Sucessão do Cônjuge e do Companheiro na Perspectiva do Direito Civil-Constitucional, 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2015, p. 102.
[5] Anderson Schreiber, Manual de Direito Civil Contemporâneo, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2020, p. 1031.
[6] “No regime de separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes do falecido. A lei afasta a concorrência apenas quanto ao regime da separação legal de bens prevista no art. 1.641 do Código Civil.” (STJ, 2ª Seção, REsp 1.382.170/SP, red. p/ acórdão Min. João Otávio de Noronha, j. 22.4.2015).
[7] Na mesma direção, Flávio Tartuce, A decisão do STF sobre o regime da separação obrigatória de bens e os caminhos possíveis da reforma do CC, publicado em 28/2/2024 no Migalhas: “Como se pode notar, é afastada a concorrência sucessória dos descendentes com o cônjuge ou convivente do de cujus no ‘regime da separação obrigatória de bens’. Porém, como defendi neste texto, não há mais uma autêntica separação obrigatória no caso do inciso II do art. 1.641, pois os cônjuges ou conviventes podem convencionar em sentido contrário, o que traz a conclusão pela concorrência em casos tais, assim como se dá na separação convencional de bens”.
[8] STJ, 2ª Seção, REsp 1.368.123/SP, red. p/ acórdão min. Raul Araújo, j. 22.4.2015.
[9] Diagnóstico traçado diante de outra decisão do STF em matéria de direito de família – o Recurso Extraordinário 898.060, no qual se reconheceu a tutela jurídica da multiparentalidade – por Anderson Schreiber, STF, Repercussão Geral 622: a Multiparentalidade e seus Efeitos, publicado em 26.9.2016 na Carta Forense.
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