Opinião

Inconstitucionalidade na reforma: lei complementar versus norma constitucional

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  • é advogado especialista em Direito Tributário sócio do Binato Junqueira Pestana Aguiar e Frattini Advocacia e Associado da Associação Brasileira de Direito Tributário (Abradt).

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18 de janeiro de 2024, 7h13

O brasileiro e o mundo acompanharam a aprovação da reforma tributária em dezembro ado. Foi sem dúvida um grande marco para a sociedade brasileira como um todo, pois a tributação ará por uma mudança substancial.

Às pessoas que não estão habituadas à linguagem jurídica cabe uma breve contextualização.

A reforma tributária, considerando o fato de que no Brasil existe um sistema hierárquico de normas jurídicas, primeiro precisou ar por uma mudança na Constituição de 1988, o que significa dizer que houve a aprovação de uma emenda constitucional.

Trata-se da Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, cujo preâmbulo fala por si só: “altera o sistema tributário nacional”.

A partir de agora, a norma constitucional precisará de regulamentação por meio da legislação complementar, mas ela também já possui ampla aplicabilidade em termos de alguns conceitos gerais e até mesmo considerando o conteúdo de algumas de suas normas.

O novo sistema tributário do consumo e parcialmente do patrimônio apresenta as principais mudanças que a seguir enumero:

  1. Extinção gradativa do IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISSQN;
  2. Criação do IS, da CBS e do IBS;
  3. Os novos tributos IBS e CBS não comporão suas bases de cálculo;
  4. O ITCMD será progressivo;
  5. O IPTU poderá ter sua base de cálculo atualizada por decreto;
  6. Os benefícios fiscais aos poucos serão extintos e proibidos, com o objetivo de evitar guerra fiscal entre os Estados, principalmente;
  7. A tributação será no destino, em regra;
  8. Em 10 anos haverá a extinção dos tributos antigos e implementação dos novos em suas alíquotas máximas, ou seja, 5.568 leis de ISSQN deixarão de viger e 27 leis de ICMS deixarão de viger;
  9. Foi inaugurado o conceito de competência tributária compartilhada;
  10. A competência do STJ foi ampliada para incluir na sua esfera de atuação: “os conflitos entre entes federativos, ou entre estes e o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços”;
  11. Novos princípios tributários foram positivados: simplicidade, transparência, justiça tributária, cooperação e defesa do meio ambiente;
  12. E muitas outras mudanças significativas, que ficarão para detalhamento noutro momento.

A par dessas mudanças nucleares, há uma norma que muito me intrigou.

Trata-se do artigo 149-C, que assim estabelece:

“Art. 149-C. O produto da arrecadação do imposto previsto no art. 156-A e da contribuição prevista no art. 195, V, incidentes sobre operações contratadas pela istração pública direta, por autarquias e por fundações públicas, inclusive suas importações, será integralmente destinado ao ente federativo contratante, mediante redução a zero das alíquotas do imposto e da contribuição devidos aos demais entes e equivalente elevação da alíquota do tributo devido ao ente contratante.

§ 1º As operações de que trata o caput poderão ter alíquotas reduzidas de modo uniforme, nos termos de lei complementar.

§ 2º Lei complementar poderá prever hipóteses em que não se aplicará o disposto no caput e no § 1º.

§ 3º Nas importações efetuadas pela istração pública direta, por autarquias e por fundações públicas, o disposto no art. 150, VI, “a”, será implementado na forma do disposto no caput e no § 1º, assegurada a igualdade de tratamento em relação às aquisições internas.”

Chamou minha atenção para o campo da inconstitucionalidade o caput do artigo e o seu parágrafo segundo.

Explico.

O caput da norma possui classificação específica por tratar-se de uma norma constitucional, afinal, não foi aprovada uma norma vulgar, mas uma modificação na nossa lei maior.

Cabe observar que a norma é praticamente auto-executável, dependendo, lógica e unicamente, da criação por lei complementar dos tributos previstos nos artigos 156-A e 195, V da CRFB/1988, respectivamente, o IBS e a CBS.

Por depender ainda da normatização, no nosso sentir, se trata de norma constitucional de eficácia contida, ou seja, para que ela seja aplicável os tributos precisam ser criados, mas seu conteúdo como um todo é executável de imediato.

Veja-se o ensinamento do professor José Afonso da Silva sobre o tema:

15. Normas de eficácia contida, portanto, são aquelas em que o legislador constituinte regulou suficientemente relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do Poder Público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nelas enunciados [1].

Até este ponto não existem problemas a serem apontados no tocante à técnica da norma, a qual privilegia a contratação com o poder público, fomentando a economia e as relações público-privadas.

Todavia, o seu parágrafo segundo nos causou enorme preocupação: “§ 2º Lei complementar poderá prever hipóteses em que não se aplicará o disposto no caput e no § 1º”.

O que a norma do parágrafo segundo estabelece é a possibilidade de uma lei complementar afastar o núcleo essencial de uma norma constitucional de eficácia contida.

A hermenêutica constitucional jamais deve ser construída de modo a permitir que a hierarquia normativa brasileira seja deixada de lado. A existência de uma hierarquia constitucional é exatamente o que proporciona o mínimo de segurança jurídica que um país necessita para se desenvolver.

Em um sistema jurídico como o brasileiro, cuja produção legislativa é amplamente acelerada em matéria tributária, e de cujos conflitos o Brasil ainda não se despediu e provavelmente não se despedirá tão cedo, a hierarquia das normas, tendo como ápice a própria Constituição, é parte integrante do sistema federativo e, por via de consequência, do próprio Estado democrático de direito.

Negar a hierarquia normativa da Constituição é no mínimo desarrazoado, para não dizer que se trata de um verdadeiro descaso com as normas constitucionais.

Na Subseção II — Da Emenda à Constituição — artigo 60 da Constituição é específico:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

[…]

§ 2º. A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

Por outro lado, o artigo 69 estabelece:

Art. 69. As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta.

Como podemos perceber a emenda constitucional inaugurou uma hipótese no mínimo incomum, a desafiar os mais agudos dos hermeneutas, quiçá o próprio Hermes.

O que estamos presenciando é a Constituição autorizando que uma lei complementar, a ela inferior, portanto, a altere. A carta magna não pode ser tratada pelo Parlamento com este desdém, pois ela é o elo entre o Estado Democrático de Direito organizado e a barbárie.

Os contribuintes estão sendo relegados a uma relativização da Constituição para si mesma, e isto não pode ar sem crítica.

Que o Brasil necessita de uma reforma tributária é inquestionável, pois em um país que de 1988 a 2022 produziu mais de 460 mil normas em matéria tributária, conforme estudo do IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação), já citado pela ConJur, não é possível mais continuar por muito tempo com tamanho caos no âmbito tributário, o que atrasa o sadio desenvolvimento econômico do país e também a própria prestação de serviços públicos, devido o altíssimo custo com o contencioso fiscal.

Porém, a reforma tributária jamais poderia criar hipóteses de relativização de conceitos da Constituição, especialmente no que diz respeito a princípios sensíveis, como a segurança jurídica.

Uma norma constitucional que autoriza sua alteração por lei complementar (na prática é exatamente o que estabelece o §2º do artigo 149-B da CRFB/1988) viola completamente o núcleo essencial da segurança jurídica, inaugurando uma técnica de produção de normas que confronta a estabilidade jurídica do país.

A hermenêutica constitucional contemporânea, apesar de sua necessária modernização, não pode servir para a construção semântica do que chamo de malabarismos constitucionais. itir este comportamento do poder constituinte reformador é itir a negação da própria Constituição, transformando o Brasil em um país sem estabilidade e sem segurança jurídica.

Portanto, a inconstitucionalidade do parágrafo segundo do artigo 149-B da Constituição é uma realidade, tanto quanto a própria aprovação da EC 132. Evidentemente que o tema merece maior aprofundamento, mas não poderíamos deixar de fazer essa provocação, pois, afinal, a reforma tributária irá afetar do mais pobre brasileiro ao mais abastado, e a Constituição não é coadjuvante neste filme chamado Brasil. Seu papel de atriz principal há de ser respeitado sempre!

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