Interesse Público

Relicitação em alta: o recente caso do aeroporto de São Gonçalo do Amarante

Autores

  • é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito istrativo).

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  • é advogado especialista em Direito istrativo (tendo recebido o Prêmio de Direito istrativo Professor Júlio César dos Santos Esteves) em Direito Tributário e em Direito Processual pela PUC Minas em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) e em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (Idde) — conjuntamente com o Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Ius Gentium Conimbrigae) e com a Faculdade Arnaldo.

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18 de janeiro de 2024, 8h00

Na última quinta-feira, dia 11/1/2024, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) emitiu uma ordem de serviço que autorizou o início da assunção paulatina das operações do aeroporto de São Gonçalo do Amarante (Asga) por parte da Zurich Airport, responsável por outros aeroportos no país, como os localizados em Florianópolis e em Vitória. A empresa foi vencedora no leilão promovido em 19/5/2023, pela Anac, certame que integra o procedimento da relicitação, conceituado e disciplinado na Lei nº 13.448/17.

A relicitação significa a extinção amigável dos contratos istrativos de infraestrutura prevista, nos termos expressos da referida lei, para os setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário, cumulada com a celebração de novo ajuste com outro contratado, observadas novas condições, após prévia licitação. É dizer, em face do descumprimento do contrato ou de dificuldade dos contratados de adimplir as obrigações contratuais ou financeiras assumidas, a relicitação surge como interessante alternativa ao processo de caducidade que é, na prática, problemático para ambas as partes contratantes [1].

Spacca

Nesse sentido, segundo a exposição de motivos da Medida Provisória nº 752/16, convertida em Lei nº 13.448/17, um dos objetivos da relicitação seria “reparar problemas e desafios históricos em importantes setores de infraestrutura, buscando viabilizar a realização imediata de novos investimentos em projetos de parceria e sanear contratos de concessão vigentes para os quais a continuidade da exploração do serviço pelos respectivos concessionários tem se mostrado inviável”.

Veja-se, portanto, que o princípio da continuidade e mesmo o da eficiência são norte a justificar e fundamentar a previsão, o que realmente faz sentido, considerando que o processo istrativo de caducidade é, em si, moroso, desgastante e bastante litigioso. A isso se soma que a punição e o rompimento beligerante não resolvem a demanda da sociedade e nem resolvem o problema dos investimentos e da operação.

Com a extinção amigável do contrato istrativo, a retomada dos investimentos e/ou da operação na sua plenitude tende a ser mais célere, ao menos quando comparada ao contencioso processo istrativo de caducidade e às chances de judicialização.

Assim sendo, ao menos em tese, a relicitação é alternativa interessante tanto para a istração pública quanto para o particular inadimplente, bem como para a coletividade.

Para o interesse público porque, ao menos em tese, o novo contrato, formatado a partir de balizas mais atuais e com um novo personagem, estaria mais amoldado ao atendimento das demandas, favorecendo a continuidade, a regularidade e a eficiência [2]. O contratado original não está autorizado a paralisar subitamente a execução dos serviços até que novo contrato seja celebrado, aspecto crucial para a salvaguarda do interesse da coletividade.

A isso se adiciona a transferência para o novo contratado do dever de indenizar o contratado anterior quanto aos valores relativos aos bens não amortizados, depreciados ou reversíveis. Há de se recordar que, mesmo nos casos em que o contratado é o responsável pelo fim prematuro do vínculo, a Lei nº 8.987/95 prescreve o dever de indenizar o privado no que toca a tais parcelas, para não se consolidar uma espécie de confisco (artigo 36 c/c com o §5º do artigo 38). A indenização não obsta a cobrança de multas e outra espécie de sanção e nem inviabiliza que o ente concedente também exija indenizações a seu favor.

E, para o contratado, como dito, porque o instituto evita as drásticas consequências da decretação da caducidade, além da suspensão de obrigações e investimentos a partir da celebração de termo aditivo.

É óbvio, no entanto, que a relicitação não exime de responsabilidades e de prejuízos o inadimplente, realidade que seria um convite à inadimplência. Para além da impossibilidade de participar da relicitação, o referido particular não poderá, por exemplo, de acordo com o artigo 8º, IX, do Decreto nº 9.957/19, até a extinção da parceria: (1) distribuir dividendos ou juros sobre capital próprio e não realizar operações que configurem remuneração dos acionistas; (2) reduzir o seu capital social; (3) oferecer novas garantias em favor de terceiros, exceto se por motivo justificado e com autorização expressa da agência reguladora competente; (4) alienar, ceder, transferir, dispor ou constituir ônus, penhor ou gravame sobre bens ou direitos vinculados ao contrato de parceria, exceto se por motivo justificado e com autorização expressa da agência reguladora competente e (5) requerer falência, recuperação judicial ou extrajudicial da sociedade de propósito específico.

Além disso, segundo o artigo 15 da Lei nº 13.448/17 [3], a relicitação será condicionada à celebração de termo aditivo com o atual contratado, documento do qual constarão, para além da demonstração da conveniência e da oportunidade da adoção do instituto: a renúncia do contratado ao prazo para corrigir eventuais falhas previsto no artigo 38, §3º, da Lei Geral de Concessões; a declaração formal quanto à intenção do particular de aderir, de maneira irrevogável e irretratável, ao processo de relicitação do contrato de parceria; bem como a concessão, pelo particular, das informações necessárias à realização do processo de relicitação. Vale notar, portanto, que o contratado original tem o dever, no âmbito da relicitação, de cooperar com a istração pública no tocante ao desenvolvimento do novo processo istrativo relicitatório.

De outra ponta, é evidente que o poder concedente deve motivar a sua escolha. Não só porque o dever de motivação é inerente ao agir istrativo, mas porque o artigo 17 da Lei nº 13.448/17 [4] determina que o poder público promoverá estudo técnico necessário de forma precisa, clara e suficiente para subsidiar a relicitação, objetivando assegurar sua viabilidade prática e econômica.

Importa consignar, ainda, que a relicitação, por envolver uma extinção amigável do contrato istrativo, dialoga com a consensualidade istrativa, tão falada no âmbito do paradigma da istração pública dialógica. Trata-se, nessa toada, de mais um mecanismo moderno que corrobora que, muitas vezes, a consecução do interesse público repousa não na atuação unilateral forte de tempos outros, mas no agir concertado e coparticipado; o que inclusive suaviza a teoria clássica dos contratos istrativos, que tem nas cláusulas exorbitantes e na relação extremamente verticalizada notas distintivas [5].

No caso em comento, a antiga concessionária, Inframerica, solicitou a relicitação, alegando o impacto no tráfego de ageiros causado pela crise econômica. O aeroporto, situado em área turística, teria experimentado número muito aquém de ageiros (2,3 milhões) diante da expectativa quando do procedimento licitatório (4,3 milhões). De se destacar o fato de que a operação pela referida empresa teve início em 2014 e cuidava-se do primeiro aeroporto privatizado no país. Vale dizer, a primeira relicitação é também reflexo do primeiro processo de privatização no setor.

Em 2020, a empresa obteve a anuência do governo federal, por meio do Decreto Federal nº 10.472/20. A licitação ocorreu em 2023, precedida que foi de estudos, consulta pública e controle pelo Tribunal de Contas da União.

O TCU aprovou por unanimidade a relicitação, mas exigiu, dentre outras determinações, que a Anac, antes de efetivar o futuro contrato de concessão, encaminhasse ao tribunal o cálculo da indenização certificado por empresa de auditoria independente [6]. O valor da arrematação atingiu o montante de R$ 320 milhões, com ágio de 41% . O lance mínimo equivaleu a R$ 226,9 milhões.

O fato é bastante relevante: seja porque o instituto é relativamente recente no ordenamento jurídico brasileiro, seja porque a sua utilização prática é inaugural no país.

Ante o exposto, é essencial acompanhar de perto as decorrências da relicitação do aeroporto de São Gonçalo do Amarante, a fim de verificar se o instituto, na prática, gerará os resultados em tese esperados. Confirmados os pressupostos teóricos, certo é que o instituto sedimentar-se-á como sendo uma alternativa mais adequada à decretação da caducidade.

 


[1] Conforme já desenvolvemos em oportunidade precedente: Nesse sentido, Cristiana Fortini, ao analisar o instituto da relicitação, já reforçou: “A maior novidade, contudo, na nossa avaliação, é a relicitação, idealizada como forma de solução amigável de conflitos entre contratado e poder público, via celebração de termo aditivo. Em síntese, a relicitação tem lugar quando o particular confessadamente reconhecer falhas na execução do contrato ou demonstrar incapacidade de adimplir obrigações contratuais ou financeiras antes assumidas. Aposta-se na relicitação como alternativa ao processo de caducidade, rotulado na exposição de motivos como moroso e capaz de ensejar longas discussões judiciais durante as quais os usuários permaneceriam penalizados com a prestação insatisfatória do serviço (…) A relicitação é apresentada como via alternativa, fruto de composição das partes, permitindo que novo parceiro assuma o contrato, após licitação a isso destinada.” Conferir: FORTINI, Cristiana. Prorrogação e relicitação na MP 752/16: soluções para o gargalo da infraestrutura? Revista eletrônica Consultor Jurídico, 25 de maio de 2017.

[2] Nesse sentido, o art. 2º, I, do Decreto nº 9.957/19, que regulamenta o procedimento para relicitação dos contratos de parceria nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário de que trata a Lei nº 13.448/17. O dito dispositivo assevera que são diretrizes do processo de relicitação a “continuidade, regularidade e eficiência na prestação dos serviços contratados aos usuários.”

[3] Segundo a Lei nº 13.448/17: “Art. 15. A relicitação do contrato de parceria será condicionada à celebração de termo aditivo com o atual contratado, do qual constarão, entre outros elementos julgados pertinentes pelo órgão ou pela entidade competente: I – a aderência irrevogável e irretratável do atual contratado à relicitação do empreendimento e à posterior extinção amigável do ajuste originário, nos termos desta Lei; II – a suspensão das obrigações de investimento vincendas a partir da celebração do termo aditivo e as condições mínimas em que os serviços deverão continuar sendo prestados pelo atual contratado até a do novo contrato de parceria, garantindo-se, em qualquer caso, a continuidade e a segurança dos serviços essenciais relacionados ao empreendimento; III – o compromisso arbitral entre as partes com previsão de submissão, à arbitragem ou a outro mecanismo privado de resolução de conflitos itido na legislação aplicável, das questões que envolvam o cálculo das indenizações pelo órgão ou pela entidade competente, relativamente aos procedimentos estabelecidos por esta Lei.”

[4] Segundo a Lei nº 13.448/17: “Art. 17. O órgão ou a entidade competente promoverá o estudo técnico necessário de forma precisa, clara e suficiente para subsidiar a relicitação dos contratos de parceria, visando a assegurar sua viabilidade econômico-financeira e operacional. §1º Sem prejuízo de outros elementos fixados na regulamentação do órgão ou da entidade competente, deverão constar do estudo técnico de que trata o caput deste artigo: I – o cronograma de investimentos previstos; II – as estimativas dos custos e das despesas operacionais; III – as estimativas de demanda; IV – a modelagem econômico-financeira; V – as diretrizes ambientais, quando exigíveis, observado o cronograma de investimentos; VI – as considerações sobre as principais questões jurídicas e regulatórias existentes; VII – o levantamento de indenizações eventualmente devidas ao contratado pelos investimentos em bens reversíveis vinculados ao contrato de parceria realizados e não amortizados ou depreciados.”

[5] Nesse sentido, concordamos com Carolina de Oliveira: “o reconhecimento da prorrogação antecipada e a instituição da relicitação representam uma mudança de paradigma na teoria das contratações públicas por compreenderem a consensualidade, negociação e eficiência (…) Configura-se, como se teve oportunidade de observar, um importante instrumento de renegociação que leva à extinção do ajuste, itindo no seu transcorrer a transferência organizada da parceria sem que haja prejuízos aos usuários e para a sociedade (…) O novo diploma e os instrumentos nele previstos refletem, assim, a mudança pela qual a o Direito istrativo: a busca por soluções flexíveis e consensuais que levem à istração a ocupar outra posição nos contratos públicos. Transfere-se o eixo da verticalização, per se, das relações envolvendo o Poder Público, para o desenvolvimento de soluções acordadas entre as partes, que, efetivamente, sejam eficientes diante do interesse geral perseguido (…) Não há dúvidas que os instrumentos representam, tal como antecipado, um importante o na alteração das diretrizes clássicas do Direito istrativo. A consensualidade, a negociação e a eficiência vão gradativamente ganhando o espaço da supremacia, imperatividade e unilateralidade.” Conferir: OLIVEIRA, Carolina Zaja Almada Campanate. Contratos istrativos complexos e de longo prazo: a prorrogação antecipada e a relicitação na teoria dos contratos públicos. Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, 2018.

[6] Conferir: <https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-aprova-concessao-do-aeroporto-de-sao-goncalo-do-amarante-rn-com-condicionantes.htm> o em 16/1/2024.

Autores

  • é advogada, presidente do Instituto Brasileiro de Direito istrativo (IBDA), vice-presidente jurídica da Cemig, doutora em Direito istrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora da graduação, mestrado e doutorado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do mestrado da Faculdade Milton Campos, professora visitante da Università di Pisa, visiting scholar pela George Washington University e especialista em mediação, conciliação e arbitragem pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (IDDE).

  • é advogado, graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em Direito istrativo (tendo recebido o Prêmio de Direito istrativo Professor Júlio César dos Santos Esteves), em Direito Tributário e em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), especialista em Direito Tributário e em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes, especialista em advocacia pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (IDDE), em Direito istrativo, em Direito Público, em Direito Processual e em Direito Constitucional pela Faculdade de Estudos istrativos de Minas Gerais (Fead-MG), em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Arnaldo e em Direito Público pela Escola Brasileira de Direito (Ebradi).

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