Opinião

Panorama judicial tecnológico na investigação patrimonial em execução civil

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  • é defensora pública do estado da Bahia pós-graduada em Direito Público ( Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro) em Direito Constitucional em Processo Civil e em Direito istrativo pós-graduanda em Teoria Geral do Estado e Direito Digital e especialista em execução.

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3 de julho de 2024, 20h40

Vivemos em uma sociedade em constante mutação, de maneira mais acentuada após período pandêmico, quando tivemos que nos (re)adaptar à necessidade de introduzir e aprimorar novas ferramentas tecnológicas que já eram uma realidade da iniciativa privada mais atenta à otimização do trabalho.

Reprodução/CNJ

As inovações tecnológicas no campo jurídico surgiram através de reformulações de métodos tradicionais desde o “nascimento de um processo judicial” até a implementação de tecnologias emergentes à conclusão de prestação jurisdicional eficaz.

Da digitalização de autos, que até então, na realidade dos tribunais brasileiros, ainda se digladiavam com autos físicos empilhados em estantes aguardando o milagre da movimentação processual, à utilização mecanismo de gestão de bots, robôs responsáveis pela distribuição em caixas de intimações de decisões prolatadas para ciência e manifestação, uso de RPA, até ao protocolo eletrônico de documentos comungam à quebra da resistência da virtualização de processos judiciais.

É claro: não se desconhecem das falhas operacionais e dos excessos praticados, mascarando uma ineficiência pontual de alguns operadores jurídicos. Não sejamos inocentes a ponto de não reconhecer, por exemplo, a automatização de atividades que deveriam ser desenvolvidas por seres humanos, estes, dotados de humores que, por muitas vezes, se fazem necessários para a análise de casos concretos frente à lei dura e seca. Mas devemos ter em mente que a modernização é um conjunto de ferramentas com a função primordial de aumentar significativamente a eficiência e reduzir o caminho tortuoso de um processo judicial.

O leitor deve estar a se perguntar: qual seria a relação do tema com esse introdutório e onde isso traria efeito prático de solução aos processos de execução? As relações econômicas, comerciais e concorrências se modificam com tamanha velocidade que o próprio direito sequer consegue acompanhá-las paralelamente. Sequer as entidades governamentais, diante dessa volatilidade, são capazes de se organizar de forma instantânea para estabelecer fiscalização e diretrizes de proteção à sociedade como um todo.

Basta lembrar que, para a istração pública, enquanto agente de estado, possui como limitador o princípio da legalidade: sua atuação deriva de autorização expressa. Nas relações privadas não é bem assim: o princípio da legalidade, sob a ótica do particular, parte da premissa constitucional de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei [1].

Como exemplo dos limites do princípio da legalidade às ações reguladoras do Estado são as criptomoedas. As moedas digitais, criadas em 2008, são depositadas em empresas custodiantes (tecnologia de registro distribuído conhecida como blockchain) não são supervisionadas e/ou controladas pelo Banco Central, Receita Federal [2] ou pela Comissão de Valores Mobiliários, sendo sequer identificáveis pelo sistema SisbaJud. Muito embora dotadas de valor patrimonial, a penhora das criptomoedas conduz à adoção de diligências específicas, o que acarreta, como pesquisados em dezenas de processos, em um indeferimento quase que instantâneo, aparentemente decorrente da falta de conhecimento mais profundo do procedimento e forma.

Sistema de busca de bens

Lançando mão de tentativas de acompanhamento dessa evolução, o Conselho Nacional de Justiça tem lançado e aperfeiçoado ferramentas de busca de ativos e bens íveis de penhora, otimizando o tempo de tramitação de demandas judiciais, com o claro interesse subsidiário em trazer confiança dos jurisdicionalizados na eficiência e definição dos processos de execução.

Essa cadeia de ferramentas é das mais variadas, desde informações de maquinários agrícolas até ao o de informações de negociações imobiliárias. Tanto mediante ordem judicial, como por diligência extrajudicial.

Por exemplo: substituindo o BacenJud, e de forma bem resumida neste artigo, o SisbaJud (Sistema de Buscas de Ativos do Sistema Judiciário) é uma plataforma eletrônica  que a visa modernizar o processo e aumentar a eficiência através de uma interface mais amigável e funcionalidades ampliadas interligando os tribunais ao Banco Central e às instituições bancárias, permitindo que os juízes solicitem informações sobre ativos financeiros de devedores  e efetuem o bloqueio ou desbloqueio de contas bancárias.

Aos mais desatentos, o SisbaJud não se limita apenas à busca dos ativos para bloqueios, mas pode ser utilizado como ferramenta para constituição de prova acerca da movimentação de valores e destino mediante a geração de relatórios detalhados sobre as solicitações e seus resultados, facilitando o acompanhamento e a gestão das ações de execução. Não raramente “a conta bancária é esvaziada” com único intento de não adimplir os débitos existentes com credores, muito embora não se tenha efetivamente uma situação de insolvência ou falência do devedor.

Mas se observa, conforme pesquisa em acervo de 103 processos judiciais que tramitam/tramitavam nos mais diversos tribunais (títulos judiciais e extrajudiciais), na base de 67 arquivados sem o adimplemento do crédito perseguido, 89% se limitavam às buscas mais triviais e/ou a nítida desistência da “batalha” executiva.

Veja: não se critica o uso das plataformas e ferramentas mais utilizadas (SisbaJud, InfoJud, RenaJud, Sniper etc..), mas a forma de utilização limitada. É perfeitamente possível, mediante olhar mais acurado, o cruzamento de informações fornecidas para visualizar parâmetros e indicativos de fraudes, por exemplo.

Dentre os processos judiciais que serviram de base de pesquisa, destacamos um processo [3] em que a executada é empresa varejista ainda em funcionamento que, mesmo com IDPJ [4] acolhido e incluídos os sócios, nenhum bem ou ativo financeiro foi encontrado. O processo foi arquivado sem localização de bens ou ativos financeiros. Típico caso de blindagem patrimonial.

Ora, a executada continua em pleno funcionamento. Ainda que não se tenha localizado no processo os pedidos de busca de bens e ativos mais alternativos, haveria ainda a possibilidade de rastreio de operações financeiras, inclusive através de atos notariais.

O Censec é operado pelos Cartórios de Notas, sendo um banco de dados que registra atos notariais como escrituras, procurações e testamentos realizados em todo o Brasil. Por muitas vezes, empresas relacionadas às holdings, possuem operações e registros de atos notariais que podem desencadear na descoberta da cadeia sucessiva chegando ao responsável pelas operações de istração efetiva da empresa.

Adaptação dos profissionais

Enquanto as ferramentas como o SisbaJud revolucionam o processo de execução, é essencial também entender como os profissionais do direito estão se adaptando a essas mudanças e quais desafios práticos eles encontram. E, à medida que a tecnologia redefine o panorama jurídico, é imperativo que também consideremos como nossas leis e nossas práticas sociais devem evoluir para acompanhar essas mudanças.

Ainda devemos lembrar que as ferramentas tecnológicas não são um fim em si mesmas. Elas requerem que os operadores do direito não apenas se atualizem tecnicamente, mas também desenvolvam uma compreensão crítica sobre suas limitações e possibilidades que essas tecnologias oferecem. Não basta unicamente pedir. Por muitas vezes, a incompreensão do julgador vem da ausência de argumentação dos elementos jurídicos, assim como a impertinência do uso no tempo devido.

Vale observar que expansão tecnológica de alcance ao credor não se setorizou exclusivamente no judiciário. A proliferação de sites de mapeamento, armazenamento e pesquisa de informações, mediante ferramentas de cruzamento [5] de dados fornecidos por órgãos oficiais, dentre outros, desaguam o encurtamento ao alcance dos profissionais da área jurídica (algumas ferramentas são exclusivas de uso dos advogados) de informações até então disponíveis por determinação judicial.

Esse encurtamento do tortuoso caminho de um processo de execução tem se mostrado tão eficaz quanto as decisões judiciais para cruzamento de elementos, inclusive para instrução probatória de pedidos mais complexos de expropriação de bens do devedor.

Na verdade, em meio à rápida evolução tecnológica, o sistema judiciário brasileiro tem feito esforços significativos para incorporar novas ferramentas e práticas que promovam a agilidade, a precisão na execução de decisões judiciais e a superação dos desafios tradicionais derivados de um processo de execução. Nada mais é que uma jornada de modernização do sistema judiciário contínua e dinâmica.

No entanto, enfrentamos desafios significativos que vão desde a segurança cibernética até a resistência cultural. É fundamental que continuemos a entender as implicações dessas inovações, sempre com o olhar voltado para a proteção dos direitos fundamentais e a manutenção da integridade do judiciário como um todo. A tecnologia deve ser vista como uma aliada, mas não como substituta do julgamento humano, garantindo que as inovações sejam implementadas de maneira responsável e eficaz.

De fato, a tecnologia tem transformado a execução civil, mas como vimos, ela também apresenta desafios que exigem uma colaboração contínua entre desenvolvedores, juristas e a sociedade para que não apenas acompanhem as mudanças, mas também as antecipe e as molde para garantir que sejam usadas de forma eficiente e ágil na resolução de processos judiciais.

 


[1] Artigo 5º, inciso II da Constituição Federal.

[2] RF: Instrução Normativa 1.888/2019.

[3] Processo que tramitou na comarca da capital, hoje está arquivado. Manteremos os dados de identificação em sigilo, muito embora seu o seja livre aos advogados.

[4] Incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

[5] Serviços não gratuitos

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  • é defensora pública do estado da Bahia, pós-graduada em Direito Público ( Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro), em Direito Constitucional, em Processo Civil e em Direito istrativo, pós-graduanda em Teoria Geral do Estado e Direito Digital e especialista em execução.

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