Interesse Público

Chevron está superado: isso é importante para o Brasil?

Autor

  • é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em istração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito istrativo do Estado do Rio.

    Ver todos os posts

11 de julho de 2024, 8h00

A Suprema Corte Americana vem de decidir, numa maioria de 6 a 3, nos casos Relentless v. Department of Commerce and Loper Bright Enterprises v. Raimondo; pela superação do entendimento fixado em 1984, em Chevron v. Natural Resources Defense Council, conhecido na literatura como o precedente que fixou a premissa da deferência judicial em relação às opções formuladas pelas agências no exercício do poder regulamentar [1].

A matéria em terras norte-americanas ganhava especial importância, tendo em conta o crescimento do chamado Estado istrativo, que na ausência de comando legislativo explícito, avançava na regulamentação de atividades de toda ordem, por intermédio de atos istrativos.

A resposta da corte, à época, foi estabelecer um critério orientador do crivo jurisdicional a ser exercido, que se desenvolveria em dois os. Primeiro, a corte avaliaria se, na lei de criação da agência, o legislador teria sido explícito na delimitação do poder regulamentar daquela estrutura orgânica. Em caso positivo, a corte limitar-se-ia a aplicar o critério fixado pelo Parlamento.

De outro lado, caso se desse o silêncio do legislador, ou ainda ele se valesse de palavras ambíguas; abrir-se-ia espaço para o exercício do poder regulamentar pela agência, superando-se o “o 1” do teste de Chevron. O “o 2” consistiria por sua vez, na análise da issibilidade constitucional da escolha regulatória empreendida pela agência. Em caso de resposta positiva — a escolha era constitucionalmente permissível —; a aproximação judicial haveria de ser deferente para com a opção regulatória da agência, salvo se identificada nesta última, interpretação arbitrária, extravagante ou claramente contrária ao intuito geral da lei [2].

O teste revestia-se, portanto, de um caráter predominantemente formal, sem que a corte reivindicasse para si a prerrogativa de definir qual fosse a melhor solução regulatória para a hipótese. Em decisões subsequentes, a corte acrescentou nuances a este entendimento inicial para enfrentar questões como os limites da interpretação formulada pela agência de seus próprios atos regulamentares, dentre outros. Desimportante o percurso a estes desdobramentos, eis que o precedente objeto de overruling foi tão-somente Chevron v. Natural Resources Defense Council.

O fundamento principal da decisão da Corte — equívoco, a meu sentir, sob todos os ângulos — envolveu a evocação do istrative Procedure Act (APA), em particular o preceito contido na Section 10, (e), que, dispondo sobre a abrangência do exercício do controle jurisdicional em relação aos atos emitidos pelas agências, estabelecia que “a corte revisora deve decidir todas as questões de direito relevantes, interpretar provisões constitucionais e legais, e determinar o sentido e aplicabilidade dos termos de qualquer ação da agência” [3]. A tese vencedora foi aquela segundo a qual o teste de Chevron estaria a suprimir a competência revisional conferida pelo APA em favor do Poder Judiciário, pelo que o precedente teria de ser tido por superado.

Assinalo de já que, na minha compreensão, em nenhum momento o teste de Chevron resultou na supressão da análise judicial sobre o exercício do poder regulamentar da agência. Afinal, o o 1 do teste, versando sobre a existência de delegação — explícita ou presumida — envolvia, evidentemente, uma análise de questão de direito. Também o o 2, perquirindo sobre o alinhamento da solução técnica preconizada pela agência com o texto constitucional traduz evidente exercício de análise de questão de direito, nos exatos termos preconizados pelo APA.

O ponto sensível está na mudança de conceito em relação ao que seja de se desejar da agência no exercício do poder regulamentar — se a busca da solução ótima na perspectiva constitucional e legal; ou se o desenho de uma solução que se repute adequada para o quadro presente de problema público, dentre as várias eventualmente permissíveis ex vi constituitionis.

Spacca

A lógica expressa em Chevron apostava na Corte Constitucional como um veto player; alguém que poderia afastar a alternativa regulamentar por incompatibilidade com o texto fundamental ou por arbítrio, extravagância ou contradição com os objetivos da lei. Não se presumia pudesse a Corte Constitucional identificar sempre qual seja a solução regulamentar apta a alcançar uma espécie de “ótimo constitucional”. Se a escolha da agência se tinha por permissível, o teste de Chevron recomendava a deferência sob a inspiração de que os aspectos fáticos e técnicos seriam melhor conhecidos por esta — e não pelo Judiciário.

Os limites desta coluna não permitem dissecar outros aspectos da decisão de overruling de Chevron — mas o que se prevê, e por isso o alvoroço em terras estadunidenses é um forte incremento do debate em relação aos termos da regulação desenvolvida pelo Estado istrativo. Sob a égide de Chevron, tinha-se um poderoso elemento dissuasório em relação a esse tipo de contestação judicial. O litígio, sempre custoso naquele país, revestia-se ainda de um forte elemento de incerteza, do que resultava o baixo índice de irresignação. Esse o quadro que sofre significativa mudança no cenário americano, com um previsível incremento da incerteza jurídica em relação ao marco regulatório, que agora pode ser atacado em sede judicial com maior probabilidade de êxito.

Consequências no Brasil

Cumpre agora examinar se o overruling de Chevron pode determinar consequências significativas no cenário brasileiro — e já antecipo minha compreensão de que, no rigor da técnica, não deveria.

Primeiro ponto a se destacar é que a doutrina Chevron não encontra incidências significativas na casuística do Supremo Tribunal Federal, figurando como precedente mais relevante em que a matéria foi agitada, a ADI 4.874, de relatoria da ministra Rosa Weber [4], onde se impugnava ato regulatório expedido pela Anvisa que vedava a comercialização, dentre outros produtos, de cigarros saborizados e/ou aromatizados.

Categoria que não se confunde com a doutrina Chevron, mas que tem alguns pontos de contato, é aquela atinente à capacidade institucional da estrutura istrativa autora do ato regulamentar. Esta, curiosamente, encontra maior número de incidências na jurisprudência do Supremo; frequentemente a partir de relatoria do ministro Luiz Fux [5]. Traz-se à consideração as referências a esta categoria, porque quando de seu manejo, frequentemente se extrai a consequência de que seja devida uma deferência judicial para com as escolhas empreendidas por estruturas institucionais revestidas de determinadas características [6].

Observe-se que mesmo nestes casos, em que o STF alude a aproximação judicial deferente, não se tem na matriz de decisão, qualquer semelhança com o precedente fixado em Chevron, e agora superado. As episódicas vezes em que o STF entende deva se mostrar deferente para com a escolha istrativa, ele o faz a partir pura e simplesmente da presença da estrutura institucional “x” ou “y”; sem qualquer análise em relação à existência de uma potencial delegação legislativa expressa ou implícita (o 1 do teste de Chevron), ou ainda à permissividade constitucional, ou ao caráter não arbitrário, extravagante ou claramente contrário ao intuito da lei (o 2 do teste de Chevron).

Não se identifica, portanto, na crônica das decisões judiciais brasileiras, influência dos termos da doutrina Chevron, que possa ser impactada pela sua agora superação.

Mais do que isso.

Em síntese, o que resulta do overruling de Chevron, é a ampliação em terras estadunidenses, dos limites do exercício do controle jurisdicional sobre atos regulamentares editados pelas estruturas do Poder Executivo.  Tenha-se em conta ainda que essa ampliação, nos termos contidos na decisão, segue sendo em relação às questões específicas de direito — e não àquelas de fato, por exemplo. É certo que essa proclamação traduz uma novidade no cenário jurídico daquele país, mas não traz qualquer elemento novo em relação ao que já se a no sistema brasileiro.

Já de há muito se tem por superado em terra brasilis, o cânon segundo o qual o controle judicial de atos istrativos, mesmo os regulamentares, devesse se limitar à análise de legalidade em sentido estrito. Estabelecidos os compromissos axiológicos do Estado pela Constituição de 1988, o resultado foi desde então, exigir-se do poder político organizado a observância da juridicidade — no que se inclui o alinhamento com esses mesmos objetivos constitucionais. Disso resultou a ampliação do espectro possível de análise do Poder Judiciário, inclusive com a proclamação pelo STF de que lhe caiba inclusive empreender à formulação de políticas públicas. Nestes termos, a reivindicação de espaço decisório empreendida pela Suprema Corte Americana no overruling de Chevron já foi formulada pelo Judiciário brasileiro há muito tempo.

Resta saber se o overruling de Chevron pode significar, para julgadores menos avisados, a proscrição em definitivo, da possibilidade do critério de deferência judicial para com escolhas istrativas — e a resposta, mais uma vez é de ser negativa.

Vale resgatar o significado de deferência — que no léxico significa atitude de respeito ou consideração; ou ainda, interesse pelos assuntos alheios. Disso não resulta qualquer limitação à garantia constitucional de o à Justiça, ou qualquer apequenamento do Poder Judiciário. Ao contrário; tem-se nisso o indicativo de prestígio judicial às decisões istrativas adequadamente construídas [7], conduta que tem importante valor de indução ao aperfeiçoamento do exercício da função regulamentar.

Se algum efeito se pode extrair do overruling de Chevron, é a tematização da importância de uma doutrina brasileira de deferência que tenha esse condão indutor do aprimoramento das deliberações do Poder Executivo. So be it.

 


[1] Vale lembrar que no direito estadunidense, a figura das agências não se confunde com o que no Brasil se identifica como agência reguladora; o melhor sinônimo, consideradas as características do direito brasileiro, seria órgão.

[2] Para conhecer a evolução histórica da categoria da deferência na crônica da jurisprudência americana, consulte-se DO VALLE, Vanice Regina Lirio. Deferência judicial às escolhas regulatórias: o que podemos aprender com standards aplicados pela Suprema Corte estadunidense. Revista de Direito istrativo, v. 280, n. 2, p. 137-164, 2021.

[3] Section 10 (e) – the reviewing court shall decide all relevant questions of law, interpret constitutional and statutory provisions, and determine the meaning or applicability of the of any agency action.

[4] ADI 4874, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 01-02-2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-019  DIVULG 31-01-2019  PUBLIC 01-02-2019.

[5] Consulte-se, a título de ilustração, a SL 1425 AgR, Relator(a): LUIZ FUX (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 24-05-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-105  DIVULG 01-06-2021  PUBLIC 02-06-2021)

[6] Os precedentes de relatoria do Min. Luiz Fux frequentemente envolvem o CNJ e CNMP.

[7] Na matéria, leia-se DO VALLE, Vanice Regina Lírio. Deferência judicial para com as escolhas istrativas: resgatando a objetividade como atributo do controle do poder. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, v. 25, n. 1, p. 110-132, 2020.

Autores

  • é professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em istração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito istrativo do Estado do Rio.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!