Opinião

Porte de maconha para uso próprio na apuração de ato infracional

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  • é promotor de Justiça do Ministério Público de Sergipe titular da 2ª Promotoria de Justiça da Infância e Adolescência de Aracaju pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Sergipe ex-juiz de Direito e autor de artigos jurídicos.

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12 de julho de 2024, 18h26

O sistema jurídico foi recentemente comunicado da decisão do egrégio Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 635.659, do qual foi conhecido apenas o extrato do seu dispositivo, do qual transcreve-se a parte considerada relevante:

“1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (art. 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, III);

2. As sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28 da Lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta;

3. Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em Juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do art. 28 da Lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença;

4. Nos termos do § 2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito;

5. A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes; (…)” [1].

Ilicitude da conduta e reflexos na apuração do ato infracional

O STF estabeleceu uma presunção de fato relativa da condição de uso pessoal da posse da substância nominada (maconha) e de quantidade inferior a 40 gramas, criminalizando, inclusive o ato de classificação do delito como tráfico pela autoridade policial no exercício do seu mister constitucional previsto no artigo 144, da Carta.

Como assinalou o Supremo, a conduta continua ilícita, mas sujeita às sanções do artigo 28, da Lei nº 11.343/06, do qual lhe fui suprimida a natureza penal por via de interpretação.

Diante desse aspecto seria possível indagar a existência de repercussão do julgamento do RE 635.659 aos procedimentos de apuração de ato infracional e de execução de medida socioeducativa.

Nos termos do artigo 228 da Constituição, o menor de 18 anos não comete crime, razão pela qual fica sujeito às normas da legislação especial, senão vejamos:

“Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.”

Pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), legislação especial referida na Constituição, a conduta delitiva praticada por adolescente, pessoa com idade entre 12 e 18 anos incompletos, é caracterizada como ato infracional:

“Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.

 Art. 104. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei.

Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I – advertência; II – obrigação de reparar o dano; III – prestação de serviços à comunidade; IV – liberdade assistida; V – inserção em regime de semi-liberdade; VI – internação em estabelecimento educacional; VII – qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.”

Assim, no caso de ato infracional, as sanções aplicáveis também já não apresentam natureza ou caráter penal, posto que são de natureza ou espécie reeducativa ou socioeducativa, conforme a doutrina e jurisprudência sempre repetem:

“as medidas sócio-educativas enumeradas no art. 112 do Estatuto são, portanto, medidas jurídicas de conteúdo pedagógico, porém, também de caráter sancionador, cuja eleição deve atender a três elementos: capacidade do adolescente para cumprir a medida, circunstâncias e gravidade da infração” [2].

“(…) 4. A medida socioeducativa não representa punição, senão mecanismo de proteção ao adolescente e à sociedade, de natureza pedagógica e ressocializadora. (…)” [3].

Então, a questão suscitada aponta no sentido que o julgado do RE 635.659, nas hipóteses mencionadas da posse para uso de determinada quantidade do entorpecente, também se aplica integralmente ao processo de apuração de ato infracional, impedindo sua deflagração ou continuidade, ainda que as sanções aplicáveis não apresentem natureza penal.

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Assim, uma vez que a posse de 40 gramas ou menos de maconha, e congêneres, em circunstâncias que autorizem concluir que seja para uso, deixa de se considerado crime, por conseguinte, deixa também de ser considerada ato infracional análogo ao crime por força da decisão referida, bem como em consonância com a normativa internacional, já incorporado ao ordenamento jurídico nacional:

“A) CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA – UNICEF (Aprovada pelo Decreto Legislativo de 28, de 14 de setembro de 1990 e Promulgada pelo Decreto 99.710 de 21 de novembro de 1990):

ARTIGO 40 (…)

2. Nesse sentido, e de acordo com as disposições pertinentes dos instrumentos internacionais, os Estados Partes assegurarão, em particular: a) que não se alegue que nenhuma criança tenha infringido as leis penais, nem se acuse ou declare culpada nenhuma criança de ter infringido essas leis, por atos ou omissões que não eram proibidos pela legislação nacional ou pelo direito internacional no momento em que foram cometidos; (…)

ARTIGO 41. Nada do estipulado na presente Convenção afetará disposições que sejam mais convenientes para a realização dos direitos da criança e que podem constar: a) das leis de um Estado Parte; b) das normas de direito internacional vigentes para esse Estado.

Resumo – Respeito por Padrões Estabelecidos. O princípio de que se houver um padrão na legislação nacional ou em outro instrumento internacional aplicável mais alto que os estabelecidos nesta Convenção, o padrão mais alto será utilizado.”

“B) REGRAS MÍNIMAS DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ISTRAÇÃO DA JUSTIÇA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE (REGRA DE BEJING):

3. Ampliação do âmbito de aplicação das regras 3.1 As disposições pertinentes das regras não só se aplicarão aos jovens infratores, mas também àqueles que possam ser processados por realizar qualquer ato concreto que não seria punível se fosse praticado por adultos.”

“C) DIRETRIZES DAS NAÇÕES UNIDAS PARA PREVENÇÃO DA DELINQUÊNCIA JUVENIL -DIRETRIZES DE RIAD. 54. Com o objetivo de impedir que se prossiga a estigmatização, à vitimização e à incriminação dos jovens, deverá ser promulgada uma legislação pela qual seja garantido que todo ato que não seja considerado um delito, nem seja punido quando cometido por um adulto, também não deverá ser considerado um delito, nem ser objeto de punição quando for cometido por um jovem” [4].

Situação de risco

Então, pelo que ficou decidido, em decorrência da nova hermenêutica constitucional conferida no RE 635.659, não será mais possível aplicar qualquer medida socioeducativa, desde a simples  advertência…

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Por outro lado, não vemos como possível chancelar o uso de entorpecentes por menores de 18 anos, sob qualquer pretexto ou argumentação. Ou será que mesmo o usuário menor de 18 anos possui autonomia ou protagonismo para aderir ao consumo de tais substâncias? Realmente vamos chegar tão longe?

Ao tratar da criança, do adolescente e também do jovem, a Constituição, no seu artigo 227, estabeleceu que os mesmos fossem colocados sob salvaguarda de toda a forma de negligência,  discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, e balizando, dentre as cláusulas protetivas, justamente que:

“§ 3º. O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

(…)

VII–programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins.”

Embora não seja possível aplicar ao adolescente qualquer medida socioeducativa na posse de entorpecente para uso, da mesma forma, no caso de criança ou adolescente, mais do que mera ilicitude, a conduta caracteriza situação de risco.

Pelos mesmos aspectos considerados pelo STF na aludida decisão, embora a ilicitude da conduta da posse para uso do entorpecente não mais autorize a aplicação de medida socioeducativa, caracteriza evidente situação de risco do adolescente sujeitando o mesmo às equivalentes medidas protetivas do artigo 101, V e VI, do ECA, que, com toda certeza, serão devidamente aplicadas e fiscalizadas com o rigor necessário:

“Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:

(…)

V – requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;

VI – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;”

Neste aspecto, o princípio da intervenção precoce, positivado no parágrafo único, incisos VI e VIII do artigo 100, do ECA [5], tem por finalidade garantir a sua contemporaneidade da atuação diante das causas ou fatores determinantes da conduta ou situação de risco.

Neste aspecto, cabe ao Juízo da Infância e Adolescência com competência diversa para conhecimento do ato infracional, onde houver unidade judiciária específica, ou comum, quando a competência for cumulativa, para aplicação apenas das medidas protetivas pertinentes.

Assim, mesmo afastado o caráter criminal, o ilícito referente ao porte de entorpecente para uso persiste, restando pertinente, em se tratando de adolescente, a aplicação das medidas protetivas pertinentes ao caso, que, com toda certeza, terão o pleno sucesso doravante!

Diante das considerações iniciais sobre a repercussão do julgado, lembramos de Pablo Neruda: “Se cada dia cai dentro de cada noite, há um poço onde a claridade está presa. Há que sentar-se na beira do poço da sombra e pescar luz caída com paciência” [6].

 


[1] Fonte: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4034145

[2] ROSSATO, Luciano Alves et all. In Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, RT, 2010, pg. 321.

[3] STJ, AgRg no HABEAS CORPUS Nº 722.607 – SC, Rel. Min. Olindo Menezes, julgado em 05/04/2022.

[4] CURY, Munir; GARRIDO de Paula, Paulo Afonso & MARÇURA, Juranair Norberto. 2002, p. 252/254, 261/262, e 295, respectivamente.

[5] Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.

Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação das medidas: (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)

VI – intervenção precoce: a intervenção das autoridades competentes deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)

(…)

VIII – proporcionalidade e atualidade: a intervenção deve ser a necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o adolescente se encontram no momento em que a decisão é tomada;(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)

[6] Últimos Poemas, L&PM Editores, 1997, pg. 55.

Autores

  • é promotor de Justiça do Ministério Público de Sergipe, titular da 2ª Promotoria de Justiça da Infância e Adolescência de Aracaju, pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Sergipe, ex-juiz de Direito e autor de artigos jurídicos.

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