Opinião

ADIs 7.064 e 7.047: cancelamento da expedição das CVLDs

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14 de julho de 2024, 11h19

Aos 30 de novembro de 2023, o mercado de precatórios foi pego de surpresa pelo julgamento, pelo STF, sobre a constitucionalidade de dispositivos das Emendas à Constituição nº 113 e 114, ambas de 2021, que modificaram parcialmente o regime constitucional dos pagamentos decorrentes de condenações judiciais à Fazenda Pública (precatórios).

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Nessa ocasião, o STF declarou inconstitucional a expressão “com autoaplicabilidade para a União”, contida no § 11 do artigo 100 da CF (com redação dada pela EC nº 113/2021), por força da qual era assegurada aos contribuintes “a oferta de créditos líquidos e certos que originalmente lhe são próprios ou adquiridos de terceiros” com vistas, dentre outras finalidades, à “quitação de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa do ente federativo devedor” (artigo 100, § 11, I, da CF).

Maior ainda foi a surpresa quando, aos 5 de dezembro de 2023, foi disponibilizado no Diário istrativo do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) o texto da Resolução n.º 325/2023 com o novo artigo 26-A, que prescreve o seguinte:

Art. 26-A. Tendo em vista a exclusão da expressão “com auto aplicabilidade para a União” do art. 100, § 11, da Constituição Federal, conforme decidido no julgamento da ADI 7064, fica suspensa a expedição das Certidões de Valor Líquido Disponível – CVLDs – até a edição de lei que regulamente sua utilização para negócios jurídicos com a Fazenda Pública Federal.

As CVLD, a que alude o dispositivo, tratam-se de documentos cujos objetivos são atestar a existência de um valor líquido disponível de um precatório e quantificar, com precisão, o referido valor.

O posicionamento do TRF-4 causou espanto aos agentes do mercado de cessão de créditos e parece pressupor (embora não o afirme expressamente) que as cessões de créditos líquidos e certos para fins de compensação de créditos com a União devem ser obstadas até que venha a edição de lei que a regulamente.

Todavia, esse aparente pressuposto parece não ser correto. Para que essa análise se dê de maneira mais acurada, é preciso antes contextualizar alguns aspectos da discussão, como: os sentidos econômicos para a cessão de créditos; e o panorama legislativo vigente a respeito da cessão de precatórios à época do julgamento.

Spacca

Quanto aos sentidos econômicos, a cessão de créditos inscritos para pagamento por precatório apresenta, de um lado, o titular do crédito a ser pago pelo Estado — denominado “parte cedente” — e, de outro, o sujeito interessado em adquirir, com deságio, o crédito inscrito precatório pelo Estado devedor — a esse outro sujeito dá-se o nome de “parte cessionária”.

O interesse das partes em realizar a transação pode ser explicado nos seguintes termos:

(i) de um lado, a parte cedente tem “pressa” em receber o crédito — tanta pressa que aceita abrir mão de uma parte do valor para receber o pagamento de forma antecipada; e,

(ii) de outro, a parte cessionária não tem a mesma pressa do cedente, mas está capitalizado o suficiente para adquirir o crédito com algum deságio e aguardar alguns meses, ou anos, para receber o pagamento.

Dessa forma, atende-se, concomitantemente, ao interesse do cedente em receber logo o montante devido — ainda que em valor inferior —, e ao interesse do cessionário em receber uma quantia superior ao montante investido — ainda que somente dali a alguns meses ou anos.

Mercado das cessões de crédito

Desse contexto, extrai-se que: existe um interesse particular que origina o mercado das cessões de crédito, que independe da possibilidade de uso desses mesmo créditos na celebração de acordos de transação com entes públicos; e há um interesse público em que esses negócios se deem de forma segura para ambas as partes, em prol da estabilização das relações sociais e jurídicas.

Assim, ainda que fosse correta a aparente pressuposição de que as cessões de créditos líquidos e certos para fins de compensação de créditos com a União devem ser obstadas até que venha a lei regulamentadora, haveria outros interesses subsistentes que justificariam, por si sós, a continuidade da expedição das CVLD. Mas não é só.

Quanto ao panorama legislativo, é possível afirmar que já existia, ao final do ano ado, um conjunto de normas que suficientemente disciplina a cessão de créditos para fins de compensação no âmbito da União, conforme se a a ver.

O Código Tributário Nacional, promulgado em 1966, já previa, em seu artigo 170, que “[a] lei pode […] autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito ivo contra a Fazenda Pública”.

Nessa esteira, aproximadamente trinta anos depois, o artigo 74 da Lei nº 9.430/96 previu que “o sujeito ivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição istrado pela Secretaria da Receita Federal, ível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições istrados por aquele Órgão” [1].

Nesses casos, fez-se as ressalvas de que não podem ser objeto de compensação “os débitos relativos a tributos e contribuições istrados pela Secretaria da Receita Federal que já tenham sido encaminhados à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional para inscrição em Dívida Ativa da União” (artigo 74, § 3º, III, da Lei nº 9.430/96) e que não há compensação nas hipóteses em que o crédito utilizado for de terceiro (artigo 74, § 12, II, a, da Lei nº 9.430/96).

Vê-se, então, que, até 1996, apesar de a compensação de créditos do contribuinte com tributos istrados pela Secretaria da Receita Federal ser possível, havia limitações: os créditos inscritos em dívida ativa não poderiam ser utilizados em compensação; e créditos adquiridos de terceiros, por meio de cessão, tampouco poderiam ser utilizados para compensar tributos.

Esse panorama sofreu modificações ao longo dos anos. Com a EC nº 94/2016, o artigo 105 do ADCT ou a prever que, durante a vigência do regime especial de pagamento de precatórios, os seus credores teriam direito a utilizá-los em compensação “com débitos de natureza tributária ou de outra natureza que até 25 de março de 2015 tenham sido inscritos na dívida ativa dos estados, do Distrito Federal ou dos municípios, observados os requisitos definidos em lei própria do ente federado”.

Aqui, então, vê-se as diferenças com o regime do artigo 74 da Lei nº 9.430/96 no que diz respeito ao precatório objeto de compensação: com a EC nº 96/2017, os débitos inscritos em dívida ativa aram a ser objeto de compensação pelo uso de precatórios — embora essa possibilidade estivesse limitada aos estados, aos municípios e ao Distrito Federal e, ainda, às inscrições realizadas até 25 de março de 2015.

Em 2020, com o advento da Lei nº 13.988, os precatórios aram a poder ser utilizados também na compensação de créditos inscritos em dívida ativa da União, no âmbito de transações resolutivas de litígios, conforme artigos 1º, § 4º, II, e 11, V, daquela Lei:

Art. 1º […] § 4º Aplica-se o disposto nesta Lei: […] II – à dívida ativa e aos tributos da União, cujas inscrição, cobrança e representação incumbam à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional [omissis]

Art. 11 A transação poderá contemplar os seguintes benefícios: […] V – o uso de precatórios ou de direito creditório com sentença de valor transitada em julgado para amortização de dívida tributária principal, multa e juros.

Somente em 2021, com a EC nº 113, ou a constar expressamente do texto constitucional a possibilidade de “oferta de créditos líquidos e certos que originalmente lhe são próprios ou adquiridos de terceiros reconhecidos pelo ente federativo ou por decisão judicial transitada em julgado para: I – quitação de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa do ente federativo devedor, inclusive em transação resolutiva de litígio”.

Ou seja, já havia uma regulação, em lei ordinária, do uso de precatórios na celebração de acordos de transação, antes mesmo da superveniência da EC nº 113/2021. Nos anos seguintes, apenas as etapas da regulamentação da lei aram a ser inauguradas pelos órgãos competentes — e foi nesse contexto que surgiu a figura da CVLD.

Sobre o ponto, ao final de 2022, sobrevieram as alterações correspondentes na Resolução CNJ nº 303/2019 — que versa sobre “gestão dos precatórios e respectivos procedimentos operacionais no âmbito do Poder Judiciário” —, pelas quais se reproduziu, no artigo 45-A [2] daquela resolução, o teor do § 11 do artigo 100 da CF, com a redação dada pela EC nº 113/202.

Nesse conjunto de alterações, a Resolução CNJ nº 303/2019 ou a tratar, de forma inédita, da Certidão do Valor Líquido Disponível (CVLD) do crédito, a ser expedida para as diversas finalidades para as quais o precatório viesse a ser utilizado.

O dispositivo que trata da CVLD está inserido no Título III da Resolução e consta, nesse mesmo Título, do Capítulo III, que recebeu o nome de “Da utilização dos créditos em precatórios”. No que interessa ao objeto deste texto, convém destacar o disposto no artigo 46-A da Resolução CNJ nº 303/2019:

Art. 46-A. A pedido do beneficiário, o tribunal expedirá Certidão do Valor Líquido Disponível para fins de Utilização do Crédito em Precatório – CVLD, de forma padronizada, contendo todos os dados necessários para a completa identificação do crédito, do precatório e de seu beneficiário, providenciando o bloqueio total do precatório no prazo de validade da CVLD, sem retirá-lo da ordem cronológica, efetuando-se o provisionamento dos valores requisitados, se atingido o momento de seu pagamento. (incluído pela Resolução n. 482, de 19.12.2022)

No ano seguinte, o Conselho da Justiça Federal (CJF) editou a Resolução n.º 822/2023, que trata também da CVLD em seu Capítulo IV. Seu artigo 27, fundamentalmente, reproduz o conteúdo do supracitado artigo 46-A da Resolução CNJ nº 303/2019.

Aqui, fica claro, como antecipado anteriormente, que as compensações não são a única finalidade possível para a utilização dos precatórios e das CVLD: o próprio nome dado à CVLD já revela que pode ser destinada a outras finalidades distintas da compensação: “[a] pedido do beneficiário, o tribunal expedirá Certidão do Valor Líquido Disponível para fins de Utilização do Crédito em Precatório (CVLD), de forma padronizada”.

Mais ainda: de tudo o que se acaba de expor, verifica-se que já há não apenas uma regulação, em nível de lei ordinária, mas também uma regulamentação [3], perfeitamente suficiente, relativa à utilização dos precatórios ou dos créditos líquidos e certos para fins de compensação de créditos com a União.

Assim, parece incorreto o entendimento de que o julgamento das ADI nº 7.064 e nº 7.047 repercute na possibilidade, ou não, de expedição de CVLD.

Esse destaque se faz relevante também por suas consequências, na medida em que a indevida suspensão da emissão das CVLD pode acarretar insegurança jurídica nas transações que envolvam a cessão de créditos judiciais.

De modo especial, esse entendimento pode comprometer, ainda, a arrecadação fiscal, que tem crescido nos últimos anos precisamente em virtude dos acordos de transação em que é itido o uso de precatórios para fins de amortização do crédito [4].

Convém, assim, que os tribunais brasileiros apliquem com precisão o entendimento firmado pelo STF no julgamento das ADI nº 7.064 e nº 7.047, a fim de que o direito constitucional vigente, pronunciado pela Corte Constitucional, não repila o bem comum e a segurança jurídica até aqui proporcionados por institutos compatíveis com esse mesmo Direito.

 


[1] Trata-se da sistemática dos pedidos de restituição e de declaração de compensação – PER/DCOMP (art. 74, § 1º, da Lei n.º 9.430/96).

[2] “Art. 45-A. É facultada ao credor do precatório, na forma estabelecida pela lei do ente federativo devedor, a utilização de créditos em precatórios originalmente próprios ou adquiridos de terceiros para: I – quitação de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa do ente federativo devedor, inclusive em transação resolutiva de litígio, e, subsidiariamente, débitos com a istração autárquica e fundacional do mesmo ente; (incluído pela Resolução n. 482, de 19.12.2022) [omissis]”.

[3] Apenas para não deixar de mencionar, há ainda o Decreto n.º 11.249/2022 e as Portarias da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional – PFGN n.º 6.757/2022 e n.º 10.826/2022, que tratam de disciplinar aspectos relativo ao uso de precatórios.

[4] Nesse sentido, vide as notícias “https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/noticias/2023/pgfn-alcanca-r-39-1-bilhoes-em-valor-arrecadado-em-2022” e “PGFN alcança R$ 21,9 bilhões em valor recuperado no primeiro semestre”. Disponíveis, respectivamente, em <https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/noticias/2023/pgfn-alcanca-r-39-1-bilhoes-em-valor-arrecadado-em-2022> e <https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/noticias/2023/pgfn-alcanca-r-21-9-bilhoes-em-valor-recuperado-no-primeiro-semestre>. o em 5 abr 2024.

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