ADPF 1.011: legitimidade para cobrar sanções aplicadas pelos Tribunais de Contas
15 de julho de 2024, 21h38
O arranjo institucional erguido pela Constituição da República de 1988, em matéria de controle externo da istração pública, atrelou à função de fiscalização financeira e orçamentária dos Tribunais de Contas a competência para imputar sanções patrimoniais aos es de dinheiros, bens e valores públicos, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, conforme previsão legal (artigo 71, VIII, da CRFB/88). Nada obstante, a efetivação dessa atribuição cominatória logo despertou controvérsias a respeito da legitimidade para cobrança executiva dos acórdãos condenatórios dos Tribunais de Contas, mormente quando uma corte estadual impõe penalidade a agente público de outra esfera federativa.

Visando a pacificar as divergências em torno dessa questão, o plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 1.003.433/RJ, Tema 642 da repercussão geral, em 13 de outubro de 2021, seguindo o voto prolatado pelo ministro relator Alexandre de Moraes, fixou tese nos termos da qual cabe ao município prejudicado a legitimidade para a execução de crédito decorrente de multa aplicada pelo Tribunal de Contas estadual a agente público municipal, em razão de danos causados ao erário.
Interpretações dúbias e o julgamento da ADPF 1.011
A tese assentada pela Suprema Corte, todavia, não eliminou interpretações dúbias pelas instâncias inferiores do Poder Judiciário. A falta de rigor terminológico quanto às distintas modalidades de responsabilidade levadas a efeito no âmbito dos processos de controle externo, bem assim a ausência de delimitação da natureza jurídica das sanções impostas pelos órgãos de contas, abriu ensejo a leituras equivocadas acerca da abrangência da compreensão refletida no Tema 642.
Assim, multiplicaram-se decisões de tribunais judiciários estendendo a aplicação do precedente a todas as espécies de sanções pecuniárias aplicadas por cortes de contas estaduais a agentes públicos municipais, alocando sempre no município a legitimidade para ignição do processo executivo. Esse foi o caso do Tribunal de Justiça de Pernambuco, que, em diferentes oportunidades, reconheceu a ilegitimidade do ente estadual para executar, em juízo, multas simples aplicadas pelo TCE-PE, invocando o entendimento consagrado do RE nº 1.003.433/RJ.
Contra esse conjunto de decisões, o governador do estado de Pernambuco propôs a ADPF 1.011, cuja apreciação se deu em 1 de julho último, ocasião em que o plenário da Corte Suprema acompanhou à unanimidade a linha de compreensão do relator, ministro Gilmar Mendes. Em seu voto, o ministro sustentou que a ação de controle abstrato não consubstanciara pretensão de revisitar o entendimento assentado no Tema 642, que se limitou a examinar a controvérsia sob o ângulo firmado pela decisão recorrida, senão a intenção de explicitar a sua abrangência no que tange às distintas modalidades de responsabilidade financeira e das respectivas espécies de sanções patrimoniais impostas pelos Tribunais de Contas estaduais.

Em outros termos, ao examinar o caso concreto subjacente ao RE nº 1.003.433/RJ, a Corte Suprema deixou de expandir o debate para analisar, de forma ampla e exaustiva – à exceção do voto prolatado pelo próprio ministro Gilmar Mendes naquela oportunidade – todas as nuances envolvendo as sanções patrimoniais provenientes do controle externo, fazendo os agrupamentos devidos e decidindo acerca de todas as hipóteses e a concernente legitimidade para execução a depender da modalidade sancionatória.
Inspiração no Direito português
Tendo essa lacuna interpretativa em vista, e apoiado na matriz constitucional inscrita no artigo 71, inciso VIII, da CRFB/88, o voto do relator identificou duas modalidades de responsabilização financeira, cuja inspiração remonta ao Direito português (notadamente os artigos 65 e 66 da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas de Portugal).
Uma reintegratória, relacionada à reposição de fundos públicos, objeto de desvio, pagamento indevido ou falta de cobrança ou liquidação nos termos da lei, correspondendo à imputação de débito. No âmbito federal, reconduz à hipótese de responsabilidade por débito preconizada no artigo 19, da Lei nº 8.443/1992 (Lei Orgânica do TCU), cuja redação é reproduzida na maior parte das legislações subnacionais.
Outra sancionatória, que consiste na aplicação de sanções pecuniárias em razão de determinadas condutas previstas em lei. Na esfera federal, os comportamentos que sujeitam o infrator à punição estão descritos nos artigos 57 e 58 da Lei nº 8.443/1992 e, para todos os entes federativos, as hipóteses veiculadas no artigo 5º da Lei nº 10.028/2000, que versa sobre as infrações istrativas contra as finanças públicas.
Tipos e natureza das sanções
Com base em tal dualidade de regimes, à luz do parâmetro fornecido pela LOTCU, seria possível agrupar as sanções patrimoniais de acordo com as seguintes modalidades de responsabilidade financeira: (1) imposição do dever de recomposição do erário (artigo 19 da LOTCU); (2) multa proporcional ao dano causado ao erário, que decorre diretamente – e em razão – do prejuízo infligido ao patrimônio público (artigo 57 da LOTCU) e; (3) multa simples, aplicada em razão da inobservância de normas financeiras, contábeis e orçamentárias (artigo 58, incisos I a III da LOTCU), ou como consequência direta da violação de deveres de colaboração (obrigações órias) que os agentes fiscalizados devem guardar em relação ao órgão de controle, a exemplo do dever de atender às diligências expedidas pelo relator do processo no órgão de contas (artigo 58, incisos IV a VII da LOTCU).
Em todos os casos, é importante notar que o artigo 71, §3º, da CRFB/88, confere às decisões condenatórias dos Tribunais de Contas a natureza de título executivo extrajudicial, cuja cobrança dar-se-á perante o Poder Judiciário, mediante a iniciativa do órgão ou entidade legitimada. Aí está o cerne da questão.
Legitimidade para cobrança
Quanto à primeira forma de expressão do regime de responsabilidade financeira, referente à recomposição de fundos públicos (imputação de débito), a jurisprudência do Supremo Tribunal se consolidou, ao menos desde o julgamento do RE nº 580.943 AgR/AC, em 2013, no sentido de que a legitimidade para a execução do acórdão condenatório da Corte de Contas recai sobre o ente federativo lesado, que detém, portanto, a titularidade do crédito a ser restituído. Afastou-se, nesta medida, a legitimidade do próprio TC, do Ministério Público junto ao órgão de contas ou mesmo do Ministério Público Estadual, para requerer a cobrança.
No que tange à multa proporcional ao dano causado ao erário, haja vista cuidar-se de pena ória (decorrência direta do dano causado ao erário), deve seguir a mesma sorte da responsabilidade reintegratória, na forma do artigo 98 do Código Civil – princípio da gravitação jurídica – cumprindo a sua execução ao ente prejudicado. Essa, vale dizer, foi a hipótese levada à apreciação no âmbito do RE nº 1.003.433/RJ, objeto do Tema 642 de repercussão geral, atribuindo ao município prejudicado pela prática de atos lesivos ao erário a legitimidade ativa para a execução do crédito fiscal decorrente da multa de até 100% do valor do prejuízo causado, aplicada pelo Tribunal de Contas estadual (no caso, o TCE-RJ).
Por fim, relativamente à cominação de multa simples, aplicada em razão da inobservância de normas sobre gestão fiscal, ou como consequência da violação dos deveres de colaboração com o órgão controlador, trata-se, segundo argumentou o ministro relator, de modalidade autônoma em relação ao dever de recomposição ao erário (e da respectiva multa proporcional), porquanto não detém função retributiva, mas punitiva e de prevenção geral contra futuras infringências, além de operar como ferramenta de reafirmação da autoridade das decisões ou diligências determinadas pelos tribunais.
Basta ver, a este propósito, que a dosimetria da multa simples independe de qualquer consideração acerca do eventual prejuízo causado ao erário. Em vez disso, o legislador traça parâmetros fixos para o arbitramento do valor da punição pecuniária, o que ganhou novos contornos com os §2º e 3º da Lindb, acrescentados pela Lei nº 13.655/2018.
Neste caso, sobressai o interesse direto dos Tribunais de Contas na imposição e cobrança de sanções patrimoniais dedicadas a reafirmar e cobrar força normativa à validade e eficácia das regras de Direito Financeiro. Daí porque entendeu-se natural atribuir ao ente político que o Tribunal de Contas – que aplica a multa simples – integra a legitimidade para cobrança das multas derivadas da inobservância das regras de gestão pública. Ao Estado, portanto, caberia provocar a cobrança judicial das sanções pecuniárias imputadas aos agentes municipais.
Convém abrir um parêntese para dizer que o STJ já procedia alguma diferenciação entre os casos de débito e multa para efeito de legitimidade para execução de acórdãos das Cortes de Contas, como se nota do AgRg no REsp nº 1.181.122/RS, relator ministro Mauro Campbell Marques. Todavia, mesmo em tais situações, a classificação não considerava a autonomia das multas simples em relação à multa proporcional ao débito, tratando-as sob uma mesma configuração.
Distinção e pacificação
No desfecho proposto pelo ministro Gilmar, na ADPF 1.011, e acolhido à unanimidade pelo Plenário do STF, considerou-se indevida a aplicação do Tema 642 ao caso sob exame no RE nº 1.003.433/RJ. Sem embargo dessa distinção (distinguishing) às hipóteses de multa simples, em vista do ponto de conexão temático entre as matérias tratadas no RE e na APDF, o relator propôs incorporar à tese fixada no tema 642 o seguinte item: “2. Compete ao Estado-membro a execução de crédito decorrente de multa simples, aplicadas por Tribunais de Contas estaduais a agentes públicos municipais, em razão da inobservância das normas de direito financeiro ou, ainda, do descumprimento dos deveres de colaboração impostos, pela legislação, aos agentes fiscalizados”.
Além de parecer inovador somar à tese fixada em processo de índole subjetiva (RE), nada obstante o regime de repercussão geral, a compreensão firmada em outro de caráter objetivo (ADPF), a fim de elucidar o entendimento da corte sobre o assunto, é bem de ver que, finalmente, essa longeva controvérsia tende a encontrar sossego na jurisprudência da Suprema Corte.
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