Direito Civil Atual

Um livro e o vocabulário do seu tempo (parte 2)

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15 de julho de 2024, 11h19

continuação da parte 1

Em escrito que sumaria exposição realizada perante a Universidade do Porto, no dia 15 de maio de 2009, García de Enterría [1] ressaltou que a notável qualidade da jurisprudência do Conselho de Estado deu lugar a uma doutrina nova, a qual veio a se chamar justamente direito istrativo, articulada sobre o princípio básico da sujeição da istração à lei, a qual se desenvolve teoricamente desde o começo do século 19.

Não por outra razão que Vicente Pereira do Rego pôs à ribalta das atenções na Segunda Parte do Tomo I dos seus Elementos de Direito istrativo o estudo da istração contenciosa, consistente naquela que “julga as questões de interesse privado que se ligam à acção istrativa” [2].

Delineia os princípios gerais que informam o nosso contencioso istrativo [3], tomando como ponto de partida a delimitação segundo a qual este abrange os reclamos dos istrados decorrentes da violação das obrigações impostas à istração pelas leis e regulamentos. Daí reconhece que a função istrativa envolve dois poderes, sendo um deles o discricionário, inteligente e livre; o outro, de feição iva, achava-se disciplinado pela lei e pelo regulamento, estando, diferentemente do primeiro, submetido à jurisdição [4].

Noutro o, justifica o autor a outorga do mecanismo contencioso à própria esfera istrativa. Não se enveredou pela justificativa dos ses, de cariz histórico [5], centrando-se, por seu turno, na salvaguarda do interesse público, que não poderia ter entorpecida a sua marcha, reclamando uma liberdade e flexibilidade de atuação.

Mas não somente. Outro fator que assim impôs residiu nos traços próprios das leis istrativas, distintas das civis, exigirem critérios que se lastreassem em princípios gerais de outra ordem [6]. Assim, atribuir-se ao Judiciário o contencioso nas relações de direito istrativo implicaria em inconvenientes, por ensejar conflitos incessantes. Neste particular, diversamente, manteve-se uma coincidência com a inspiração sa, ao fixar a baliza de que julgar a istração é também istrar (juger l’istration c’est encore istrer).

Versando sobre a competência da jurisdição istrativa [7], enfatiza que a medida e os limites destas coincidem com os litígios decorrentes de atos, ou mesmo de fatos istrativos. Dessa maneira, descabe àquela a censura dos regulamentos, os quais são antes manifestações de legislação do que de istração. Igualmente, encontrar-se-iam fora do alcance do juiz istrativo os contratos celebrados pela istração, em virtude de sua regência pelas leis do direito privado [8].

Spacca

Averba o autor que as autoridades que, de forma singular ou colegial, possuem competência para dispor contenciosamente sobre a istração são considerados tribunais istrativos [9]. São classificados em tribunais gerais, quando conhecem de matérias variadas e numerosas, como é o caso do Conselho de Estado, dos ministros e presidentes das Províncias, ou especiais, por apreciarem uma só ordem de assuntos, tal como o Tribunal do Tesouro.

Refere-se, com atenção, ao Conselho de Estado [10], oportunidade na qual o autor, ao desenvolver a matéria, mostrou-se assíduo numa comparação com o modelo similar francês. Apontado como tribunal istrativo de última instância, enfatizou, entre nós,  a sua competência, restrita às decisões sobre as matérias seguintes: a) presas e indenizações; b) conflitos entre autoridades istrativas, ou entre estas e as autoridades judiciárias; c) abusos das autoridades eclesiásticas [11].

Quanto às presas, consistentes no direito de captura no mar de um navio inimigo, para haver o seu domínio, bem assim o de sua carga, nos termos do artigo 32 do Regulamento nº 124 de 1842, eram apreciadas pelo próprio governo em primeira e última instância, não impedindo, consoante o autor [12], a anterior audiência ou consulta do Conselho de Estado.

Porém, na hipótese da apreensão de embarcações nacionais, ou estrangeiras, nos portos, ancoradouros ou mares territoriais brasileiros, tendo a seu bordo escravos, ou quando se alegar que os desembarcaram no solo pátrio, a apreciação da matéria, em primeira instância, competia aos auditores da marinha, os quais, obrigatoriamente e de ofício, deveriam submeter a sua decisão ao Conselho de Estado.

Resolução de conflitos

Outra competência era a inerente às resoluções de conflitos [13]. Estes, conforme expôs o autor, consistiam em conflitos de: a) de atribuições, estabelecido entre uma autoridade judiciária e uma autoridade contencioso-istrativa; b) jurisdições, envolvendo órgãos do Poder Judiciário; c) jurisdições istrativas, tendo lugar entre dois órgãos jurisdicionais-istrativos.

Especialmente quanto à primeira e terceira hipóteses (conflito de atribuições e de jurisdições istrativas), a sua suscitação cabia aos presidentes das Províncias ou ao Procurador da Coroa na Corte, cabendo, em ambos os casos, a sua solução àqueles, com a sua posterior apreciação pela seção do Conselho de Estado, competente em razão da matéria [14].

Em se cuidando de conflito negativo, pela circunstância de as autoridades judiciária e istrativa envolvidas se julgarem incompetentes, a matéria deveria ser submetida ao parecer da seção correspondente do Conselho de Estado.

Já quanto à competência para apreciar os abusos das autoridades eclesiásticas, o autor [15], atento a uma possível incompatibilidade entre o Regulamento nº 124 de 1842 e a Lei n º 234 de 1841, afirmou que os arts. 30 e 32 daquele deviam ser compreendidos em harmonia com o artigo 7º, §5º, desta. Por essa razão, tocava o exame de tais questões em primeira instância aos presidentes das Províncias, com a possibilidade de a decisão ser submetida ao Conselho de Estado.

Ainda mencionou o autor caber às partes recorrer das decisões dos presidentes das províncias em negócios contenciosos para o Conselho de Estado, o que devia ser feito em dez dias, mediante arrazoado a demonstrar os motivos do gravame que se impugnava [16].

Enunciou características do processo perante o Conselho de Estado [17], para o qual, no dizer do autor, como se verificava em França, somente podiam postular advogados em número certo, sendo, no caso brasileiro, limitado a dez.

É possível se observar que, à época, não se encontrava o ordenamento alheio ao princípio da verdade material [18], aludindo o autor o respeito às disposições processuais tendentes a contribuir para a descoberta da verdade, o que foi reforçado pela previsão de postulação probatória perante a correspondente Seção do Conselho de Estado, conforme o Regulamento nº 124 de 1842 [19].

E, o que se afigura de denso interesse, consistiu na singularidade de que, no modelo de jurisdição istrativa em comento, dependiam da aprovação do Imperador os pareceres do Conselho de Estado, justamente “porque não tendo este uma jurisdicção propria, devem as suas decisões ser confirmadas pelo Chefe de Estado” [20].

Discorreu-se ainda sobre os tipos processuais dos incidentes e dos embargos [21]. Os primeiros retratavam as causas suspensivas do processo, consistente no falecimento da parte ou do seu patrono, juntamente com a arguição de falsidade documental ou de testemunho. Os segundos, por seu turno, dirigiam-se à suscitação de invalidade processual da resolução imperial que aprovara o parecer do Conselho de Estado.

O autor [22], frisando a então inexistência de um Tribunal de Contas no Brasil [23], devota sua atenção para o Tribunal do Tesouro, instituído pelo artigo 170 da Constituição Imperial [24], tendo a Lei de 04 de Outubro de 1831 versado sobre sua organização e funcionamento. Atuava, em correspondência as Tesourarias das Províncias, competindo-lhe “regular e verificar as contas de receita e despeza publicas, e na fiscalisação, contabilidade ou escripturação d’ellas”.  Discorre sobre a sua atividade fiscalizatória, o método de escrituração, os seus órgãos, especialmente a Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda e da Diretoria-Geral de Contabilidade, bem como as suas atribuições [25].

Evidenciou-se interessante que, para uma melhor compreensão por parte do leitor sobre o Tribunal do Tesouro, o autor, previamente [26], explicitou singularidades inerentes à função e natureza do Tribunal de Contas, fazendo-o fundado no modelo francês.

Assim, frisou que o Tribunal de Contas, a despeito do nome, juntamente pelo seu objeto, desenvolvia uma jurisdição de ordem istrativa, portanto: “A sua forma é judiciária, mas a sua essência é istrativa” [27].

E, em complemento, ressaltou que o Tribunal de Contas – e, do mesmo modo, o Tribunal do Tesouro – “não póde conhecer das questões d’estado que se suscitarem por ocasião das contas, por pertencer esse genero de questões exclusivamente á competencia judiciaria” [28].

 

* esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

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[1] La formación y el desarrollo em Europa de la jurisdición contencioso-istrativa. Su adquisición definitiva de un status de jurisdicción plena y efectiva, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano VI, 2009, p. 76.

[2] Elementos de direito istrativo brasileiro (§129). Manteve-se aqui – e nas demais agens onde é transcrita a obra em análise – a grafia constante do texto original.

[3] Elementos de direito istrativo brasileiro (§130).

[4] A distinção, presente na atualidade, é de enorme valia para a delimitação dos poderes do juiz da istração Pública. Ver o Código de Processo nos Tribunais istrativos de Portugal, a explicitar: “Artigo 3.º Poderes dos tribunais istrativos 1 – No respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes, os tribunais istrativos julgam do cumprimento pela istração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua actuação. (…)”. Disponível em: www.diariodarepublica.pt.

[5] É sabido que os revolucionários, para excluir dos juízes a apreciação dos atos da Revolução, levaram em consideração a circunstância de que os membros dos parlamentos ses (tribunais e não órgãos legislativos) possuíam uma vinculação com o Antigo Regime. Essa constatação é perceptível em Marcelo Caetano: “Havia, para mais, a necessidade de confiar as funções públicas a partidários da Revolução, sem os tropeços de uma legalidade ultraada e que agissem como um só corpo em comunhão com os órgãos políticos a quem se reservava exclusiva competência para julgar da regularidade do procedimento das autoridades e dos funcionários (CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais do direito istrativo. Rio de Janeiro, 1977, p. 487). Do receio resultou a Lei da Assembleia Constituinte de 16-24 de agosto de 1790, ratificada pela Constituição de 1791 (Título III, Capítulo V, artigo 3), com a proclamação de que as funções judiciais são separadas das funções istrativas, sendo defeso aos juízes interferir nas operações dos corpos istrativos, bem assim processar os es em face de suas funções.

[6] Foram as palavras do autor: “As leis istrativas são inteiramente distinctas das leis civis; exigem estudos especiais, e assentam em princípios gerais d’outra ordem. Para applicâ-las com discernimento é estar iniciado nas exigencias dos negocios publicos, e havê-los tido entre mãos” (Elementos de direito istrativo brasileiro, § 130, p. 161).

[7] Elementos de direito istrativo brasileiro (§§ 136 e 137).

[8] Assim expôs Pereira do Rego: “A derradeira classe dos actos istrativos compreende os contractos da istração com os particulares. Por via de regra os actos d’esta especie, ainda que celebrados na fórma istrativa, são regidos pelas leis civis, e todas as dificuldades a que pódem dar lugar, são da alçada judiciaria; salva as excepções formaes que o legislador tenha julgado conveniente estabelecer” (Elementos de direito istrativo brasileiro, § 137, p. 169).   

[9] Elementos de direito istrativo brasileiro, § 134.

[10] A Constituição Imperial de 1824 (Título V, Capítulo VII, arts. 137 a 144) previu um Conselho de Estado, formado por conselheiros vitalícios, num total de dez. A Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834 (Ato Adicional), suprimiu-o. A sua restauração sucedeu mediante a promulgação da Lei nº 234, de 23 de novembro de 1841, sendo, em seguida, o seu regimento aprovado pelo Regulamento nº 124, de 05 de agosto de 1842. Compunha-se de doze conselheiros ordinários e até doze extraordinários, nomeados em caráter vitalício pelo Imperador, que poderia dispensá-los das suas funções por tempo definido. Consoante Octaciano Nogueira, a extinção do Conselho de Estado pelo Ato Adicional de 1834 decorreu pela visão dos liberais de que tal órgão constituiu um fator para o agravamento do absolutismo de D. Pedro I (NOGUEIRA, Octaciano. 3ª ed. Brasília: Senado Federal, 2012, p. 37).

[11] Para uma melhor compreensão, ver a redação da Lei nº 234, de 23 de novembro de 1841: “Art. 7º Incumbe ao Conselho de Estado consultar em todos os negocios, em que o Imperador Houver por bem ouvi-lo, para resolvê-los; e principalmente: 1º Em todas as occasiões, em que o Imperador se propuzer exercer qualquer das attribuições do Poder Moderador, indicadas no artigo cento e um da Constituição. 2º Sobre declaração de guerra, ajustes de paz, e negociações com as Nações estrangeiras.3º Sobre questões de presas, e indemnisações. 4º Sobre conflictos de jurisdicção entre as Autoridades istrativas, e entre estas, e as Judiciarias. 5º Sobre abusos das Autoridades Ecclesiasticas. 6º Sobre Decretos, Regulamentos, e Instrucções para a boa execução das Leis, e sobre Propostas, que o Poder Executivo tenha de apresentar á Assembléa Geral” (disponível em: www.planalto.gov.br). Vê-se do teor do preceito que ao Conselho de Estado foram atribuídas outras competências, de natureza não jurisdicional. Aqui, bem assim nas demais referências às regras jurídicas vigentes durante o Império, também se adotou a grafia de então, conforme consta no sítio eletrônico donde recolhidas.

[12] Elementos de direito istrativo brasileiro, § 167.

[13] Elementos de direito istrativo brasileiro, §§ 168 a 177.

[14] Segundo o art. 1º do Regulamento de 1842, o Conselho de Estado encontrava-se dividido em quatro seções, conforme dissessem respeito aos negócios do Império, da Justiça e dos Estrangeiros, da Fazenda e Guerra e Marinha.

[15] Elementos de direito istrativo brasileiro, § 178.

[16] Elementos de direito istrativo brasileiro, § 165. Nesse sentido, o art. 45 do Regulamento nº124 de 1842: “Art. 45. Das resoluções dos Presidentes das Provincias em negocios contenciosos poderão as partes interpor recurso dentro de dez dias por petição munida dos precisos documentos, que manifeste as razões do gravame soffrido; e os Presidentes a remetteráõ com informação, ou seis ella, á respectiva Secretaria de Estado” (disponível em: www2.camara.leg.br).

[17] Elementos de direito istrativo brasileiro, §163.

[18] De relevância para o direito istrativo dos dias que correm, tanto que é objeto de proposta de acréscimo do art. 68 – A à Lei nº 9.784/99 pelo Substitutivo ao Projeto de Lei nº 2.481/2022, ora em tramitação no Senado Federal, a verdade material impõe que “a istração deve buscar aquilo que é realmente a verdade, com dispensa do que os interessados hajam alegado e acordado, embora este princípio não autorize a istração a se afastar da prova produzida, sob o argumento de que os fatos foram diferentes” (DAL POZZO, Augusto Neves; ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Curso de direito istrativo. São Paulo: Thompson Reuters, 2024, p. 311).

[19] “Art. 31. Em geral serão observadas todas as disposições do processo actual, que, contribuindo para descobrimento da verdade, sem prejuizo da celeridade indispensavel á marcha istrativa, forem issiveis neste processo, e não se oppuzerem ás determinações do presente Regulamento.
(…) Art. 33. No processo istrativo se observará em geral o seguinte: a parte apresentará na respectiva Secretaria de Estado petição acompanhada dos documentos, com que pretende justificar sua intenção” (disponível em: www2.camara.leg.br).

[20] Elementos de direito istrativo brasileiro, p. 201. O modelo perfilhado no Brasil Imperial foi unicamente o da jurisdição reservada, o qual, inclusive, era ainda o praticado na França quando escrita a obra em comento, pois a autonomia da justiça istrativa neste país somente adveio com a Lei de 1872, quando já instalada a Terceira República, a qual implantou a jurisdição delegada ou independente. Um traçado evolutivo da jurisdição istrativa na França consta de François Grazier (GRAZIER, François. O Conselho de Estado francês. Cadernos de istração Pública, v. 29. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1955, p. 5-9).

[21] Elementos de direito istrativo brasileiro, §§ 163 a 166.

[22] Elementos de direito istrativo brasileiro, § 151.

[23] Narra Cretella Júnior que, à época do Império, a ideia de Tribunal de Contas, mesmo não implementada, chegou a ser delineada no ano de 1826, mediante projeto apresentado ao Senado por Felisberto Caldeira Brant Pontes Oliveira Horta e José Inácio Borges, e, posteriormente, em 1845, quando também assim propôs Alves Branco, então ministro de Estado. Porém, a instituição do órgão de fiscalização financeira somente adveio com a República, por força do Decreto nº 966 – A, de 07 de novembro de 1890, resultante da pena de Rui Barbosa (CRETELLA JÚNIOR, José. Natureza das decisões do Tribunal de Contas, Revista de Direito istrativo, v. 166, p. 9-10, outubro/dezembro de 1986).

[24] “Art. 170. A Receita, e despeza da Fazenda Nacional será encarregada a um Tribunal, debaixo de nome de ‘Thesouro Nacional” aonde em diversas Estações, devidamente estabelecidas por Lei, se regulará a sua istração, arrecadação e contabilidade, em reciproca correspondencia com as Thesourarias, e Autoridades das Provincias do Imperio” (disponível em: www.planalto.gov.br).

[25] Elementos de direito istrativo brasileiro, §§ 155 a 159.

[26] Elementos de direito istrativo brasileiro, §§ 149 e 150.

[27] Elementos de direito istrativo brasileiro, §150, p. 185.

[28] Elementos de direito istrativo brasileiro, §150, p. 186.

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