Ausência de causa/efeito entre desconsideração da personalidade jurídica e extensão da falência
20 de julho de 2024, 11h22
Em tempos ados, não era incomum os julgadores brasileiros concluírem que, com a desconsideração da personalidade jurídica, ocorreria a extensão automática dos efeitos do decreto falencial para alcançar a pessoa natural dos sócios.

Tal entendimento era consubstanciado pela jurisprudência consolidada no âmbito do STJ (Superior Tribunal de Justiça), empregada normalmente para extensão dos efeitos da quebra a sociedades coligadas, como no REsp 1.034.536/MG, relator ministro Fernando Gonçalves, DJe de 16/2/2009; REsp 228.357/SP, relator ministro Castro Filho, DJ de 19/12/2003; entre outros.
Com base nesses precedentes, o STJ itia também a extensão dos efeitos a sócio ou pessoa física, como se observa no trecho da ementa do REsp 1266666 SP, relatora ministra Nancy Andrighi, DJe de 25/08/2011:
O contador que presta serviços de istração à sociedade falida, assumindo a condição pessoal de , pode ser submetido ao decreto de extensão da quebra, independentemente de ostentar a qualidade de sócio, notadamente nas hipóteses em que, estabelecido profissionalmente, presta tais serviços a diversas empresas, desenvolvendo atividade intelectual com elemento de empresa.
No entanto, a extensão dos efeitos da falência e a desconsideração da personalidade jurídica são instrumentos diversos e que não possuem a relação de causa vs. efeito, sobretudo quando se está diante de uma extensão para atingir os sócios que sejam pessoas naturais. Dessarte, para diferenciar estes institutos, devemos: analisar quando ocorre a extensão desses efeitos e em quais tipos de sociedade; verificar o cabimento da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do processo falimentar, conforme regulamentado pela Lei 11.101/2005 (LREF).
Isso posto, com a sentença que decreta a falência, o devedor, denominado “falido”, altera o seu status jurídico, ando a ser desapossado dos seus bens e afastado de sua atividade, enquanto o sócio com responsabilidade ilimitada apenas sofre os efeitos da falência, do ponto de vista material, ando a ser corresponsável subsidiário pelas obrigações da falida, até que se extingam. [1]
Nessa esteira, o artigo 81 da LREF dispõe que, com a decretação da falência da sociedade, “será acarretada a falência” dos sócios ilimitadamente responsáveis e do sócio que tenha se retirado voluntariamente ou excluído da sociedade há menos de dois anos.
Em síntese, a hipótese do artigo 81 da LREF trata de um concurso falimentar em que o devedor não é necessariamente empresário individual ou sociedade empresária, mas que detém pouca aplicação prática, pois se refere a tipos societários não usuais, como sociedades em nome coletivo, comandita simples (em relação ao comanditado) e por ações (em relação ao acionista-diretor) [2].
Ademais, a redação em testilha poderia ar por uma melhor adaptação, visto que a pessoa natural pode eventualmente sofrer processo civil de insolvência, mas não pode ser submetida à falência, que é um instituto típico de direito empresarial [3]. Enquanto não houver reforma, a doutrina especializada defende que sua interpretação mais adequada é de que apenas se estende os efeitos patrimoniais aos sócios ilimitadamente responsáveis, mas não a decretação de sua falência, o que é mais aproximado do Decreto-Lei 7.661/45, antiga Lei de Falências [4].

No que diz respeito às sociedades empresárias com limitação da responsabilidade dos sócios, a extensão da falência como efeito da desconsideração da personalidade jurídica era uma criação jurisprudencial a fim de instrumentalizar a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do processo falimentar, quando ainda não existia o incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
Extensão dos efeitos
Com a nova redação do C, os juízes deveriam ter afastado de vez o expediente provisório da extensão de efeitos da falência, prestigiando o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, contudo, não foi o que ocorreu. [5]
Essa situação ocasionava alguns questionamentos quanto à pessoa atingida pela extensão dos efeitos da falência, como ressalta Coelho:
Eram falidos também? E se sequer fossem empresários, como poderiam ser falidos? Todos os credores deles deveriam compor uma massa, ter os seus créditos vencidos antecipadamente, concorrer pelo mesmo patrimônio? Se fossem sociedades, deveriam ser também liquidadas? Mas e se fossem sociedades prósperas? Tornavam-se responsáveis solidários pelas obrigações do falido ou de algumas delas, somente? É enorme a quantidade de questões complexas que ficam sem respostas, por conta do precário expediente que uma precipitada jurisprudência gerou. [6]
Sobre a diferenciação entre a desconsideração da personalidade jurídica e a extensão dos efeitos da falência, veja-se lição de Cunha e Dias:
A desconsideração da personalidade jurídica é, também, instituto bastante distinto do da extensão da falência. Isso porque, muito embora possa, assim como o último, ter repercussão do patrimônio do terceiro, do sócio, os pressupostos para configuração de um e de outro são bastante distintos: enquanto, no primeiro, é a existência de abuso da personalidade jurídica, na segunda, basta ser sócio de responsabilidade ilimitada. Ademais, os efeitos da desconsideração circunscrevem-se aos efeitos patrimoniais, não sendo o sócio considerado falido como ocorre na extensão da falência[7].
Por isso, a Lei 14.112/2020 modificou o artigo 82-A da LREF, para pôr “pá de cal” no assunto da extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos es da sociedade falida, ando a prever a sua vedação, ressalvando-se a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica:
Art. 82-A. É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos es da sociedade falida, itida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)
Parágrafo único. A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), não aplicada a suspensão de que trata o § 3º do art. 134 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil). (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)
Segundo o dispositivo em comento, é itida a desconsideração da personalidade jurídica, mas limita-se aos aspectos patrimoniais, nos limites da atuação e dos prejuízos causados à massa falida, sem equiparação como falido. Ademais, adotou-se a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, cuja principal característica é a ênfase à excepcionalidade desse instrumento, em respeito à autonomia patrimonial, e cujos pressupostos materiais estão previstos no artigo 50 do Código Civil, quais sejam, desvio de finalidade ou confusão patrimonial, devendo-se atingir somente bens particulares de es ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
Além disso, sobre o procedimento a ser adotado, serão os mesmos do incidente de desconsideração da personalidade jurídica tratado Código de Processo Civil, com exceção da necessidade de suspensão do processo com a instauração desse incidente. Ressalta-se também que, como o dispositivo foi incluído pela Lei 14.112/2020, aplica-se apenas às falências decretadas após o início de sua vigência, como dispõe o § 1º, III, de seu artigo 5º, nesse sentido: TJ-SP – Agravo de Instrumento: 2269440-65.2023.8.26.0000 São Paulo, relator: Cesar Ciampolini, data de julgamento: 11/01/2024, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 11/01/2024.
A propósito, a nova redação do artigo 82-A surtiu efeito positivo da jurisprudência do STJ, como se observa no julgado ementado abaixo:
FALÊNCIA. RECURSO ESPECIAL. DECRETO-LEI N. 7.661/45. CONSTRIÇÃO DOS NOMES DOS DIRETORES JUNTO AO CARTÓRIO EXTRAJUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. SOCIEDADE ANÔNIMA. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. NECESSIDADE DE SEPARAÇÃO DA FIGURA DO SÓCIO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA. PRECEDENTES. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS DIRETORES NÃO APURADA EM PROCESSO AUTÔNOMO. VIOLAÇÃO DO ART. 6º DO DECRETO-LEI N. 7.661/45. EXTENSÃO DOS EFEITOS DA FALÊNCIA AOS SÓCIOS DIRETORES. IMPOSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE LIMITADA. RESTRIÇÃO DA MENÇÃO DOS NOMES DOS DIRETORES NA SENTENÇA QUE DECLAROU A FALÊNCIA. EXIGÊNCIA DO ART. 14, I DO DECRETO-LEI N. 7.661/45. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Nas sociedades empresárias vigora a responsabilidade subsidiária, não podendo a personalidade civil da pessoa física do sócio ser confundida com a personalidade jurídica da pessoa jurídica sob pena de se estabelecer confusão patrimonial acerca das obrigações contraídas, em especial daquelas oriundas do procedimento falimentar. 2. “A autonomia patrimonial da sociedade, princípio basilar do direito societário, configura via de mão dupla, de modo a proteger, nos termos da legislação de regência, o patrimônio dos sócios e da própria pessoa jurídica (e seus eventuais credores).” (AgInt no AREsp n. 1.868.007/SP, relator Ministro Raul Araújo, relatora para acórdão Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 14/3/2023, DJe de 30/3/2023.) 3. A responsabilidade solidária e a extensão dos efeitos da falência ao sócio diretor de sociedade anônima somente é itida mediante declaração em sentença prévia proferida em processo autônomo que se tenha assegurado o contraditório e a ampla defesa reconhecendo a prática de atos que resultem na quebra da pessoa jurídica (art. 6º do Decreto-Lei n. 7.661/45).4. A exigência de registro da sentença que reconheceu a falência de sociedade empresária (art. 14, p.u., I, do Decreto-Lei n. 7.661/45) não implica, sem a prévia constatação de responsabilidade pelos atos de quebra, na determinação de anotação dos nomes dos sócios diretores, es e responsáveis no cartório extrajudicial competente.5. Recurso especial provido.
(STJ – REsp: 1833445 RJ 2019/0249216-8, Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Julgamento: 20/06/2023, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/06/2023)
Resumidamente, a legislação atual visa a eliminar dúvidas sobre a impossibilidade de extensão automática dos efeitos da falência devido à desconsideração da personalidade jurídica, prática antes respaldada por precedentes da corte superior.
Muito embora se trate de uma mudança relativamente recente na LREF, ela repercute o princípio da separação patrimonial, que é consagrado no direito comercial desde o surgimento das primeiras sociedades com responsabilidade limitada, na época da Companhia das Índias Orientais, e consiste em um importante instrumento de alocação do risco empresarial, sobretudo intensificado quando se está diante de um cenário de quebra.
Por isso, almeja-se que a jurisprudência pátria se adeque à nova previsão, tornando, assim, o contexto judicial brasileiro mais propício à salvaguarda dos interesses e direitos dos empreendedores, que têm repercussão positiva na economia nacional como um todo.
[1] PUGLIESI, Adriana Valéria. A responsabilidade patrimonial do falido, a extensão dos efeitos da falência e a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida. “Dez anos da Lei nº 11.101/2005: estudos sobre a Lei de Recuperação Judicial.” Coord. Sheila C. Neder Cerezetti e Emanuelle Urbano Maffioletti. São Paulo: Almedina, 2015, p. 502/503.
[2] COELHO, Fabio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 14.a revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2021.
[3] BEZERRA FILHO, Manoel Justino; SANTOS, Eronides A. Rodrigues dos (co-autoria especial sobre Insolvência Transnacional). Lei de recuperação de empresas e falência [livro online]: Lei 11.101/2005: comentada artigo por artigo. 15. ed. rev., atual.e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.
[4] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 4. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2023.
[5] COELHO, Fabio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 14.a revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 386.
[6] COELHO, Fabio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 14.a revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 387.
[7] Fernando CUNHA, Antônio Maia da; DIAS, Maria Rita Rebello Pinho. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência, SãoPaulo: Editora Contracorrente, 2022, p. 520.
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