Opinião

STF enfim olhou a Medusa e assumiu sua condição de guardião da Constituição

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  • é advogado ex-ministro da Justiça e autor de livros e artigos sobre Direito e Teoria Política publicados no Brasil e no exterior.

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22 de julho de 2024, 15h23

Perseu é o herói grego que, segundo a lenda (ou o mito), decapitou Medusa, olhou a górgona enquanto essa dormia e, de forma dissimulada, localizou-a pelo seu reflexo do seu rosto no escudo polido. Depois do golpe mortal, viu nascerem da vítima duas criaturas o cavalo alado Pegasus e o gigante dourado Crisaor. A vitória de Perseu sobre Medusa foi um ato tanto da inteligência como da força, pois se olhasse diretamente para os olhos da mulher, cujo cabelo era um ninho de víboras, ela iria transformá-lo numa rocha.

Divulgação

O mito grego permite uma parábola sobre a dignidade moral da Justiça, exercitada em momentos de dura pressão política, como aqueles patrocinados pelas mídias tradicionais, quando a “república de Curitiba” forçava e exigia a condenação de Lula — mesmo sem provas —, bem como a eliminação da centro-esquerda como alternativa de poder. Neste mesmo período, a mídia naturalizava as torturas e os torturadores do regime militar, ajudando a “normalizar” Jair Bolsonaro como candidato “aceitável” às eleições presidenciais.

O STF, por um certo tempo, não olhou a Medusa do fascismo nem diretamente nem pelo espelho das suas capas reluzentes e cedeu todos os anéis. Depois, recobrou-se, protegeu os dedos e venceu o medo e a desonra. Assim o Supremo assumiu na prática a sua condição de guardião da Constituição e foi fundamental para que a democracia liberal, por mais um período, se estabilizasse no país, respeitando a livre manifestação das urnas. O STF, na verdade, bloqueou o golpe que a extrema direita vinha preparando de forma pensada e meticulosa.

A fundamentação de uma moral racional, para o Estado exercer o seu domínio e a capacidade de regulação da sociedade, tornou-se uma característica do Estado moderno quando a sua estrutura jurídica institucional separou os interesses vitais que ele, Estado, ou a representar, daqueles interesses singulares dos indivíduos e dos grupos que compõem as “massas” e ou, assim, a considerar como sua missão os interesses abstratos de toda a sociedade, refletidos na Constituição.

Com o monopólio da violência legítima o Estado integrou o individualismo moderno na racionalidade estatal e colocou-se, formalmente, acima dos direitos de casta, de religião e nobreza, inclusive daqueles decorrentes de compromissos parentais e afetivos.

Do mundo antigo até as grandes revoluções que geraram o Estado moderno, a Justiça era diretamente uma expressão inspirada pela força do privado e da religião, pois, para os membros das camadas mais elevadas da sociedade, não era importante seguir princípios formais de “domínio” para governar. No Estado moderno a a ser exigida uma conformação institucional tanto ético-moral como normativa fundamentada racionalmente “para o domínio das massas no Estado”, de forma que ele possa atuar com previsão para coordenar os “interesses vitais”. [1]

O equilíbrio entre a ordem fundada na propriedade privada e a função social da propriedade, por exemplo, é resolvido a partir do Estado moderno como Estado de direito, não pela aplicação direta da força bruta, mas pelo seguimento de normas concretas. Estas são interpretadas segundo uma relação de forças que se dá quando da produção legítima da norma, fora do Estado, processada a partir das relações entre as forças políticas que disputam o sentido que deve ser dado à ordem constitucional concreta.

Presidência com atributo imperial

Spacca

O reconhecimento pelo Estado da visão “bolsonarista” como legítima, tanto das suas relações de família na política, como da outorga de privilégios paras religiões do dinheiro, do direito de propagar a tortura e da Presidência exercida com atributos imperiais, para negar a ciência — causando quase 800 mil mortes —, foi um processo de “exceção continuada” que legitimou, durante certo tempo, a influência que a mídia oligárquica exerceu sobre as decisões do STF.

Hitler foi além, dotado de uma perversidade intrínseca, se permitiu montar — com o seu grupo político — dois Estados paralelos e integrados: um, o formal, que funcionava com um mínimo de previsibilidade burocrática; e outro — o Estado real paralelo — cuja uma materialidade absorvia o estado formal e cuja previsibilidade era forçada pelos regulamentos  do partido nazista e da ideologia nazista. A força bruta desta comunhão fazia do Estado um “Estado total”.

Pelos vasos comunicantes, entre as suas duas construções transitivas, ava aquela perversidade intrínseca do líder, pois o paranoico no poder sempre representa a paranoia de um grupo, que deve ser mais temido do que o líder, cujo caráter das suas políticas de Estado eram formativas dos dois estados. Assim, foi negada a da existência, na Alemanha nazista, de um sistema de um “direito”, situação reconhecida pelos mais importantes juristas do mundo, que incitou  juristas como Kelsen e Radbruch, em tempos diferentes, a condená-lo como uma dogmática da barbárie.

A separação do Estado de direito formal daquela moralidade medieval, que bloqueava o “amálgama” de uma sociedade burguesa constitucionalizada, está já bem exposta na visão de Napoleão sobre o povo espanhol, quando o Imperador, na “carta iracunda (que mandou) a Davout, seu governador geral em Hamburgo, em 2 de dezembro de 1811, denomina o espanhóis como povo de assassinos: “supersticioso, desorientado por 300 mil monges, um povo que não deve ser comparado aos alemães aplicados, trabalhadores e razoáveis….” [2]. Essa impressão fora adquirida pelo imperador, face aos ataques dos grupos de combate irregulares dos espanhóis contra os ocupantes ses.

Na falta de coincidência do Estado formal com o regime político concreto, determinado no âmbito do “Estado paralelo”, cria-se uma situação de desequilíbrio entre as duas instâncias (a formal e a informal) do Estado, que é resolvida pela exceção permanente, base da regra combinatória prevista (“o Führer comanda o direito”) pela ideologia nazista ou fascista, que se estende para negação da cidadania democrática moderna:

“Apesar da declarada concepção racial da ‘comunidade do povo’ as categorias das pessoas equiparadas aos povos racialmente inferiores foram muito variadas. O artigo 21 da Lei da Cidadania no Reich, inspirada na ideologia da ‘comunidade do povo’ estabelecia: Cidadão do Reich (Reichsbürger) é somente o súdito do estado (Staatsangehöriger) de sangue alemão ou similar, que através das sua conduta (normatizada, lembro!) demonstre que está disposto e é capaz de servir com  lealdade o Reich alemão.” [3]

Hoje se pode dizer com segurança que a sequência de ações excepcionais do governo Bolsonaro na clandestinidade, onde esboçava um governo paralelo e fora da lei, formou o quadro para um regime de exceção em aperfeiçoamento para a sua realização plena, posteriormente, através de um golpe de Estado no 8 de Janeiro. Nunca o Supremo fez tanto pelo país, como nesta reação contra o golpe  que poderia — mais cedo ou mais tarde — arrastar o país para uma guerra civil.

 


[1] HORKHEIMER, Max; Traducción de Agapito Maestre y José Romagosa. Materialismo, metafísica y moral. Madrid:Editorial Tecnos S.A.p.103

[2] SCHMIT1966, T, Carl. Teoría Del Partisano: concepto del Político. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, p. 63.

[3] CAMPDERRICH, Ramón. La Palabra De Behemoth. Derecho, Política Y Orden Internacional En La Obra De Carl Schmitt.Madrid:Editorial Trotta, 2005, p. 94

Autores

  • é ex-ministro da Justiça, doutor honoris causa da Universidade Federal de Pelotas, autor de livros e artigos de Teoria do Direito e Teoria Política.

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