Opinião

A maldade jurídica de gente boa

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  • é advogado formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF) professor da Escola de istração Judiciária do TJ-RJ especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais e Direito e istração Pública além de autor do livro 'Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana)' e outras obras.

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27 de julho de 2024, 15h29

É muito angustiante e frustrante ver a situação a que chegou o Direito. A todo o momento, vemos “absurdos legais”. Incrível: quem aplica a lei também desrespeita. Pode isso? É a realidade crua e dura. É assustador!

Será que os causídicos jogaram pedra na cruz? Pois é. Está muito difícil advogar.

Afinal, onde está o real ou verdade verdadeira no Direito?

A Constituição, às vezes, é uma folha de papel, na reflexão de Lassalle. Vale para Francisco (andar de cima), não vale pra Chico (andar de baixo). Ora, a Constituição é a norma fundamental do Estado. Não é folha de papel. Faz tempo, o poeta Bruno Gouveia cantou:

“Aqui embaixo as leis são diferentes.”

Reparem: leis são ignoradas. Pior: o Estado-juiz viola a lei. De certo modo, la loi c’est moi (a lei sou eu). A propósito, a SDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) decidiu que o juiz pode indeferir o depoimento de qualquer das partes.

Como assim, excelências?

Do direito fundamental à produção da prova

A Constituição garante a inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, XXXV), a ampla defesa e o contraditório (artigo 5º LV) e o devido processo legal (artigo 5º LIV), e o C, no artigo 385, é bem claro. Vejamos:

“que cabe à parte requerer o depoimento pessoal da outra parte, a fim de que esta seja interrogada na audiência de instrução e julgamento, sem prejuízo do poder do juiz de ordená-lo de ofício”.

Mas eu e você, leitor, e as pedras da rua sabemos que o tribunal não pode deixar de aplicar leis sem fazer jurisdição constitucional. Não há espaço para discricionaridade e subjetividade.

Logo, há o direito à prova necessária à solução justa do litígio.

Nesse sentido, é o entendimento de um dos juristas mais influentes do Direito, Lenio Streck [1]:

“A decisão pacificadora do TST vai contra a Constituição e o C, que diz, em precisa linha constitucional, no artigo 385, que Cabe à parte requerer o depoimento pessoal da outra parte, a fim de que esta seja interrogada na audiência de instrução e julgamento, sem prejuízo do poder do juiz de ordená-lo de ofício. Daí a pergunta que a doutrina deveria formular: de onde o TST concluiu que esse dispositivo é inaplicável ao direito do trabalho? O direito de inquirir a parte contrária seria um direito menor? Ou um direito imune à jurisdição constitucional? O juiz pode ter tanto poder? Outra pergunta: é o TST que escolhe quais os dispositivos do C são aplicáveis ao direito do trabalho? Já não basta ignorar os artigos 489, 371 e 926 do C? Essa é uma questão interessante, em um país em que os tribunais superiores fazem precedentes pro futuro. (…) A decisão da SDI-1 do TST é ilegal e inconstitucional, uma vez que, por ela, o Judiciário legisla”.

Dos destinatários da prova

Spacca

A prova pertence a todos, ou seja, se destina ao processo pelo princípio da comunhão da prova. Não tem dono. Logo, todos os sujeitos do processo são destinatárias da prova e, sim, têm interesse, querendo, em produzir provas. Por isso, hoje, no processo civil democrático, não é correto dizer que só o juiz é o destinatário da prova.

Conforme leciona o mestre e desembargador Alexandre Câmara [2]:

“A prova possui dois tipos de destinatários: um destinatário direto, o Estado-juiz, e destinatários indiretos, as partes. A prova levada aos autos, pertence a todos, isto é, pertence ao processo, não sendo de nenhuma das partes (o que costuma ser chamado de ‘princípio da comunhão da prova’. (…) Na verdade, a prova tem por destinatários todos os sujeitos do processo (FPPC, Enunciado nº 50: “os destinatários da prova são aqueles que dela poderão fazer uso, sejam juízes, partes ou demais interessados, não sendo a única função influir eficazmente na convicção do juiz”.

Por óbvio, o indeferimento do depoimento pessoal, portanto, caracteriza cerceamento de defesa – vício gerando nulidade absoluta de qualquer decisão.

Da relevância probatória do depoimento pessoal

A principal finalidade do depoimento pessoal, como prova oral, consiste em obter esclarecimentos e/ou a confissão sobre fatos relevantes à solução da causa.

A doutrina do professor Alexandre Câmara, observa [3]:

“Sendo juiz e partes destinatários da prova, a todos eles são reconhecidos a existência de poderes de iniciativa instrutória. Às partes evidentemente caberá postular a produção de provas que lhes pareçam relevantes, pois é delas o direito material em debate e, por isso, são titulares de interesse de produzir prova.” 

Mas o que mais impressiona é o TST negar o direito à prova, como se fosse legislador; atropelando o art. 385 do C e a Constituição!

Esse triste episódio do TST me remete a outro. Trago à baila pelo simbolismo. É crítica doutrinária. É claro: a instituição sempre tem que ser preservada. Ocorreu o seguinte: na condição de advogado, em pleno exercício profissional, aguardava o depoimento pessoal.

Ao iniciar o depoimento, a magistrada alegou que não havia nenhuma necessidade da oitiva da parte. Às favas com o devido processo legal.

Como assim, doutora?  Ponderei que, sim, havia relevância em esclarecer e jogar luz em fatos importantes.

Então, a magistrada disse: “eu sou a presidente do processo”. Já quis dar uma “carteirada”. Eu respondi: sou advogado essencial à Justiça. Ao menos é o que diz a Constituição, não é? Ficou um silencio na sala. O Ministério Público, como fiscal da lei, fez cara de paisagem.

Ca pra nós: o nome dessa postura da julgadora, em tentar não permitir o depoimento pessoal, é “juizite”. Esse autoritarismo e arrogância, infelizmente, por vezes, ocorre no Judiciário.

Por sinal, a microfísica do poder, na expressão de Foucault, é toda feita para que os juízes se sintam deuses ou semideuses. Eles se sentam em uma cadeira mais alta. Usam vestes talares (toga). Trabalham em prédios suntuosos.

Alerta Fernando Pessoa: “Arre, estou farto de semideuses!”

Alguns se sentem acima do bem e do mal, das leis e da Constituição. Até dizem: quem não gostar da minha decisão que recorra. São as peculiaridades de quem detém o poder. É a picada da mosca azul. Leandro Konder tem razão ao afirmar:

“A picada da mosca azul inocula nas pessoas doses concentradas de ambição de poder. A pessoas, então, são mais receptoras ao veneno da mosca quando vivem situações nas quais dispõem, de fato, de possibilidades mais concretas de exercer um poder maior. Isto é, quando as condições objetivas são favoráveis aos impulsos que estão sendo estimulados no plano subjetivo”.

O mestre de todos nós, o genial Lenio Streck [4] responde com sua ironia machadiana, na sua obra:

Juiz não é Deus (Juge n’est pas Dieu).

Que coisa: temos que a toda a hora repetir obviedades óbvias. É sinal de que algo vai muito mal…

Voltando: mas teve o depoimento pessoal. Ao final, conseguimos pegar as contradições. O que demostrou que as coisas não se deram como constava na narrativa na petição inicial.

Por quê? Porque a autora tinha superfaturado os gastos dos filhos menores, para induzir o juízo em erro, na revisão de pensão.

Ah, a demandante fez uma “malandragem jurídica”. Tudo isso viola a boa-fé e a lealdade processual (art. 5º NC).

Decido de acordo com o livre convencimento

De novo: não é fácil. São inúmeras as “maldades jurídicas” que assumem ares de verdade. Chama atenção especial o voto condutor, no Agravo em Recurso Especial nº 2.184.064/RJ: “cabe ao magistrado decidir a questão de acordo com o seu livre convencimento” [5].

Misericórdia!

Livre convencimento? Como assim? Pode uma decisão ser “fundamentada” no livre convencimento? Procurei no NC. Não encontrei nada. No artigo 371 do NC não existe a palavra livre. Será que o STJ está aplicando o artigo 131 do C/73?

Decidir de acordo com o livre convencimento não é decidir conforme a Constituição e a Lei. Em nome da ficção do livre convencimento milhares de pessoas estão perdendo direitos!

O órgão julgador não está obrigado a examinar todos os argumentos das partes

A “maldade jurídica” é infinita. Incrível: a Constituição e a lei dizem X e o STJ diz Y. Nossa: é o Tribunal da Cidadania que está descumprindo o inciso IX do artigo 93, da CF, e os artigos 11 e 489 § 1º, IV, do C. [6]

É o triste vale-tudo: decido primeiro, fundamento depois! Decido como acho.

Contem outra, senhores!

Até quando a omissão da doutrina?

Enquanto isso, a doutrina, em regra, é omissa! Não mete o dedo na ferida. Mas para que serve a doutrina? A doutrina não serve a nenhum poder. Serve para constranger.

A doutrina faz das “maldades jurídicas” algo de vergonhoso!!!

Diante desse quadro dramático, é crucial não fecharmos os olhos para esses arbítrios. Senão, sim, seremos cúmplices de violadores de direitos.

O compositor e poeta Chico César está certo: “Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa, da bondade de gente ruim”.

Que tempos jurídicos!

 


Referências

[1] STRECK, Lenio , /2024-mai-23/tst-legisla-e-tj-sp-explica-prisao-de-170-anos-por-livre-convencimento/

[2] [3] CÂMARA, Alexandre Freitas, Manual de Direito Processual Civil, 2023, p.416/417, Gen/Atlas)

[4] STRECK, Lenio : Juiz não é Deus (Juge n’est pas Dieu), 2016, Juruá Editora;

[5] [6]  FERRAZ, Renato,  /2023-jul-13/renato-ferraz-triste-vale-tudo-arbitrio-judicial/

Autores

  • é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de istração Judiciária do TJ-RJ, especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais e Direito e istração Pública e autor do livro Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana).

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