Opinião

Análise dos dispositivos legais na Lei 12.651/12 sobre APP em zonas rurais (parte 1)

Autor

  • é advogada consultora jurídica ambiental e professora universitária. Doutora em Direito Internacional do Meio Ambiente pela FD/USP. Mestre em Direito Ambiental pela PUC/SP. Bacharela em Direito pela FDSBC.

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3 de junho de 2024, 17h19

Caro (a) leitor (a), este é o primeiro de dois artigos que objetivam contribuir para a difusão de temas tratados pela Lei Federal nº 12.651/2012 — Código Florestal Brasileiro — sobre áreas de preservação permanente (APP), considerando ainda estarem em andamento, inclusive, discussões judiciais (STF — ADI nº 7.146/2022 [1]) quanto à constitucionalidade da Lei Federal nº 14.285/2021, que alterou a norma federal mencionada anteriormente ao tratar sobre APP urbana e a possibilidade de os municípios imporem novos limites para essas áreas.

Assim, neste primeiro artigo se tratou, a título de introdução, acerca das definições gerais que envolvem o tema para áreas rurais e urbanas. E, depois, se tratou a respeito de algumas peculiaridades dessas áreas, sobretudo acerca dos regimes de proteção diferenciados em pequenas propriedades rurais, áreas rurais consolidadas e às demais propriedades rurais. De modo que, no próximo artigo se pretende abordar as APP localizadas em áreas urbanas, incluindo as discussões judiciais pendentes sobre a constitucionalidade da Lei Federal nº 14.285/2021.

Conceito de área de preservação permanente

De uma forma geral, APP é considerada como um espaço territorialmente protegido em sentido amplo e é legalmente definida como a “área protegida [em zona rural ou urbana — artigo 4º, caput], coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”. (artigo 3º, II, CFloB).

Quais são essas áreas de proteção?

Tais áreas estão previstas no artigo 4º da Lei Federal nº 12.651/2012, incluindo as metragens dos entornos protegidos. As APP dispostas no referido dispositivo legal podem ser denominadas de APP legais e são, didaticamente, subdivididas em áreas interiores úmidas; áreas úmidas associadas ao litoral; e, áreas caracterizadas pelos acidentes topográficos [2], conforme classificação que se segue:

  • Áreas interiores úmidas
  1. Matas ciliares: faixas marginais de qualquer curso d’água perene e intermitente, cujas metragens dependeram da largura do curso d’água e serão de 30 a 500 metros (artigo 4º, I, alíneas ‘a’ a ‘e’), contadas a partir da borda da calha do leito regular;
  2. Entorno de lagos e lagoas naturais: faixa de proteção de 50 metros para corpos d’água com até 20 ha de superfície, acima disso a faixa de proteção marginal será de 100 metros, isso em se tratando de zona rural, considerando o tema deste artigo.
  3. Entorno de reservatórios artificiais, decorrentes de barramento ou represamento de cursos d’água naturais, incluindo aqueles destinados a geração de energia ou abastecimento público: a faixa de proteção será definida na licença ambiental do empreendimento (artigo 4º, II c.c. artigo 4º, §1º e artigo 5º).
  4. Entorno de nascentes e olhos d’água perenes: no raio mínimo de 50 metros (artigo 4º, IV).
  5. Veredas (áreas brejosas): as faixas marginais com largura mínima de 50 metros.
  • Áreas úmidas associadas ao litoral
  1. Restingas (como fixadoras de dunas ou estabilizadores de mangues) e manguezais, a proteção será em suas extensões (artigo 4º, VI e VII).
  • Áreas dos acidentes topográficos
  1. Para as áreas consideradas como acidentes topográficos, as proteções são definidas do seguinte modo: as encostas ou partes destas com declividade superior a 45º , equivalente a 100% na linha de maior declive; as bordas dos tabuleiros ou chapadas, até a linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 metros em projeções horizontais; no topo de morros, montes, montanhas e serras, com altura mínima de 100 metros e inclinação média maior que 25º, as áreas delimitadas a partir da curva de nível correspondente a dois terços da altura mínima da elevação sempre em relação à base, sendo esta definida pelo plano horizontal determinado por planície ou espelho d’água adjacente ou, nos relevos ondulados, pela cota do ponto de sela mais próximo da elevação; as áreas em altitude superior a 1.800 metros, qualquer que seja a vegetação (artigo 4º, V, VIII, IX e X).

Há que se destacar também que existem as APP istrativas, as quais são declaradas de interesse social por ato do chefe do Poder Executivo (municipal, estadual ou federal), áreas estas cobertas com florestas ou outras formas de vegetação, que tenham finalidades específicas, tais como proteção de restingas ou veredas, proteger várzeas, conter erosão do solo, dentre outras, nos termos do artigo 6º da Lei Federal nº 12.651/2021.

A seguir, tratou-se acerca dos regimes de proteção das APP, com destaque para os regimes protetivos diferenciados em pequenas propriedades rurais; e, áreas rurais consolidadas.

Regimes de proteção das áreas de preservação permanente

Como regra, apenas pode haver intervenção ambiental em APP em hipóteses de utilidade pública, interesse social e atividades eventuais ou de baixo impacto [3], nos termos do artigo 8º do Código Florestal, de modo que a vegetação em APP “(…) deverá ser mantida pelo proprietário da área, possuidor ou ocupante a qualquer título, pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado” (artigo 7º — Código Florestal), o que se aplica, de modo geral, para todas as APP localizadas em zonas rurais e urbanas.

Importante considerar, porém, algumas situações que podem ser consideradas como exceções a essa regra em casos envolvendo pequenas propriedades rurais e áreas rurais consolidadas, conforme abordagem a seguir.

  • Pequenas propriedades rurais

Pequena propriedade ou posse rural familiar, é definida pelo Código Florestal como “aquela explorada mediante o trabalho pessoal do agricultor familiar e empreendedor familiar rural, incluindo os assentamentos e projetos de reforma agrária, e que atenda ao disposto no art. 3º da Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006 [4]” (artigo 3º, V).

Em propriedades com essas características é possível, por exemplo:

  1. Exploração agroflorestal sustentável, classificada como atividade de interesse social, desde que não descaracterize a cobertura de vegetação existente e que não cause prejuízos à função ambiental da área — artigo 3º, IX, b;
  2. Retirada de produtos oriundos das atividades de manejo agroflorestal sustentável, respeitados os procedimentos estabelecidos pelos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama) — artigo 3º, X, ‘a’ e artigo 31, §6º;
  3. O plantio de culturas temporárias e sazonais de vazante de ciclo curto na faixa de terra que fica exposta no período de vazante dos rios ou lagos, desde que não implique supressão de novas áreas de vegetação nativa, seja conservada a qualidade da água e do solo e seja protegida a fauna silvestre — artigo 4º, §5º.

Nota-se, com isso, alguma flexibilização quanto ao regime de proteção florestal em pequenas propriedades rurais, sem, contudo, minimizar as metragens marginais protetivas previstas como APP no artigo 4º, da Lei Federal nº 12.651 ou autorizar supressão de vegetação nativa de novas áreas.

Feitas essas considerações sobre as pequenas propriedades rurais, a-se à abordagem quanto às áreas rurais consolidadas.

  • Áreas rurais consolidadas

Áreas rurais consolidadas possuem um regime de proteção ambiental diferenciado, sobretudo ao se falar em APP, considerando o objeto deste artigo.

Por meio do artigo 3º, IV do Código Florestal Brasileiro, esse tipo de área é definida como “área de imóvel rural com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008, com edificações, benfeitorias ou atividades agrossilvipastoris, itida, neste último caso, a adoção do regime de pousio”.

Apenas a título de conhecimento, essa data tão específica está relacionada à data de criação do Decreto Federal nº 6.514/2008, o qual trata a respeito das infrações e sanções istrativas ao meio ambiente e estabelece o processo istrativo federal para apuração dessas infrações.

Nas APP de áreas rurais consolidadas, é possível a “(…) continuidade das atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural (…)” e a manutenção de residências e infraestrutura associadas às referidas atividades, “(…) desde que não estejam em área que ofereça risco à vida ou à integridade física das pessoas” (artigo 61-A, caput e §12).  e, ainda, possuem metragens protetivas distintas das que se abordou anteriormente.

Nessa linha, para áreas rurais consolidadas, as faixas protetivas estão condicionadas à recomposição, mediante a adesão ao Programa de Regularização Ambiental — PRA (artigo 59) e possuem metragens menores do que as disposições legais para áreas rurais posteriores a 22/07/2008 (acerca das quais se tratou no capítulo 1, item 1.1., acima), estando previstas do seguinte modo:

  • Áreas interiores úmidas
  1. Matas ciliares: faixas marginais de qualquer curso d’água perene e intermitente, cujas metragens dependeram da metragem da propriedade rural, contada a partir de módulos fiscais, e serão de cinco  a 100 metros (artigo 61-A, §§1º a 4º), medidas a partir da borda da calha do leito regular;
  2. Entorno de lagos e lagoas naturais: faixa de proteção variando de cinco a 30 metros, a depender da metragem da propriedade, contada a partir de módulos fiscais (artigo 61-A, §6º);
  3. Entorno de reservatórios artificiais, destinados a geração de energia ou abastecimento público, a faixa de proteção da APP será avaliada sob o aspecto de terem sido registrados ou obtido “(…) seus contratos de concessão ou autorização assinados anteriormente à Medida Provisória nº 2.166-67/24-08-2001 (…)”, cuja distância protetiva será “(…) entre o nível máximo operativo normal e a cota máxima maximorum” (artigo 62);
  4. Entorno de nascentes e olhos d’água perenes: no raio mínimo de 15 metros (artigo 61-A, §5º);
  5. Veredas (áreas brejosas): as faixas marginais protetivas serão de 30 metros para imóveis rurais com área de até quatro módulos fiscais e de 50 metros para imóveis rurais com área superior a quatro módulos fiscais (artigo 61-A, §7º);
  • Áreas dos acidentes topográficos
  1. Para as áreas consideradas como acidentes topográficos, previstas no 4º, V, VIII, IX e X, isto é, encostas ou partes destas com declividade superior a 45º; as bordas dos tabuleiros ou chapadas; no topo de morros, montes, montanhas e serras, com altura mínima de 100 metros e inclinação média maior que 25º; as áreas em altitude superior a 1.800 metros, se localizadas em áreas rurais consolidadas as faixas protetivas se mantém as mesmas indicadas no artigo 4º e incisos respectivos, porém com a possibilidade de “(…) manutenção de atividades florestais, culturas de espécies lenhosas, perenes ou de ciclo longo, bem como da infraestrutura física associada ao desenvolvimento de atividades agrossilvipastoris, vedada a conversão de novas áreas para uso alternativo do solo”, mediante a execução práticas conservacionistas (artigo 63, caput e §§1º e 2º), o que, obviamente, deverá ser abordado no âmbito do PRA.
  2. Para as bordas dos tabuleiros ou chapadas, de áreas rurais consolidadas de até quatro módulos fiscais, é permitida “(…) a consolidação de outras atividades agrossilvipastoris, ressalvadas as situações de risco de vida”, as quais deverão ser tratadas no âmbito do PRA a partir de boas práticas agronômicas e de conservação do solo e água e serão deliberadas pelos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente (artigo 63, §3º).

Desse modo, se verifica uma evidente diferenciação quanto ao regime de proteção das APP para áreas rurais consolidadas frente às metragens estabelecidas para as APP localizadas em demais zonas rurais e urbanas do artigo 4º da Lei Federal n. 12.651, aquelas compreendidas como áreas de imóveis rurais com ocupação antrópica preexistente a 22/07/2008, nos termos da legislação ora avaliada.

Considerações finais

Como visto, buscou-se concentrar neste artigo, primeiro, uma perspectiva introdutória sobre APP localizadas em zonas rurais e urbanas (conceito e objeto, identificando quais são essas áreas — subdividindo-as entre áreas interiores úmidas; áreas úmidas associadas ao litoral; e, área dos acidentes topográficos) (capítulo 1).

Depois, ao abordar o tema dos regimes de proteção das APP, destacando, inclusive, que a intervenção em APP (rural ou urbana) apenas pode ocorrer, legalmente, em hipóteses de utilidade pública, interesse social e atividades eventuais ou de baixo impacto; foram trazidas peculiaridades sobre regimes de proteção para pequenas propriedades rurais; e, áreas rurais consolidadas (capítulo 2).

Em momento posterior, como mencionado no início, será publicada a Parte 2 deste conjunto de dois artigos, o próximo, então, tratará sobre APP localizada em zona urbana.

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Referências

BRASIL. Lei Federal n. 12.651, de 25 de maio de 2012. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/L12651compilado.htm, o em 01/12/2023.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI n. 7146/2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6387022, o em 28/05/2024.

MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. – 10. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

[1] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6387022, o em 01/12/2023.

[2] MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. – 10. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 1314.

[3] Essas hipóteses estão previstas no art. 3º, VIII, IX e X do Código Florestal.

[4] Lei Federal nº 11.326/2006 que estabelece diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. O art. 3º prevê: “Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos: I – não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais; II – utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; III – tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento; III – tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo; IV – dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família. (…)”.

Autores

  • é advogada, consultora jurídica ambiental e professora universitária. Doutora em Direito Internacional do Meio Ambiente pela FD/USP. Mestre em Direito Ambiental pela PUC/SP. Bacharela em Direito pela FDSBC.

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