Como regular o mercado de criptoativos
3 de junho de 2024, 18h29
Baseados em uma conhecida fábula de Esopo, alguns dizem que “muitas pessoas, ao olharem para longe, não veem o que está perto, e ao focarem no que está distante, não percebem o que é certo”.

Este parece ser o caso de muitos juristas que, em todo o mundo, têm se debruçado a investigar sobre como regular o mercado de criptoativos, alguns inclusive no âmbito do Fórum Econômico Mundial, que em 2023 lançou um whitepaper [1] sobre o tema com a seguinte questão:
“Como regular da melhor forma algo que é sem fronteiras, de código aberto, descentralizado e em constante evolução? Esta é a pergunta com a qual legisladores, a indústria e os usuários estão lutando à medida que o ecossistema de ativos criptográficos se desenvolve.”
Ora, a resposta está na própria pergunta, visto que algo que é “sem fronteiras, de código aberto e em constante evolução” certamente não pode e nem nunca será regulado, podendo, no máximo, ser autorregulado.
Nesse sentido, o máximo que pode ser feito é a elaboração de princípios jurídicos de autorregulação, de modo a explorar a regulação by design que já está intrínseca no próprio funcionamento do Bitcoin [2], bem como em alguns dos maiores protocolos de finanças descentralizadas (Defi), como a Uniswap.
Com efeito, se por um lado, de acordo com o princípio “same risks, same regulation [3]“, que governa a regulamentação do sistema financeiro internacional, atividades que causam um mesmo risco devem ser reguladas da mesma forma, por outro lado, os smart contracts, que podem ser compreendidos como a “mente e o coração” do mercado de criptoativos, foram criados pelo jurista e cientista da computação Nick Szabo [4] justamente com o intuito de eliminar os riscos que dão origem à necessidade de regulação.
Por exemplo, um dos principais riscos existentes aos consumidores é o risco de custódia, que é eliminado tanto pelo Bitcoin quanto por protocolos Defi, que funcionam baseados na autocustódia.
Logo, propor a criação de uma norma que punisse por apropriação indébita os responsáveis por trás de uma fundação responsável por um protocolo Defi, por exemplo, não faria qualquer sentido, dado não haver nesses protocolos a prática de atividades restritas às instituições financeiras, como a custódia ou istração de recursos de terceiros.
O que há efetivamente no mercado de criptoativos é a disponibilização de smart contracts aos usuários de modo a que estes possam realizar suas próprias estratégias de investimento, sem renunciar à autocustódia ou à istração dos seus próprios recursos.
É importante notar que esses smart contracts, ao contrário dos servidores das instituições financeiras, podem ser ados por qualquer pessoa com conhecimentos básicos de programação, sem a necessidade de usar algum site oficial fornecido pelos protocolos. Embora tais sites existam, geralmente não são utilizados por profissionais da área de investimentos.

Ou seja, diante do uso dos smart contracts para eliminar os riscos que fundamentam a intervenção regulatória estatal direta na atividade financeira, bem como da consideração que smart contracts, redes P2P e blockchain apenas possuem alguma utilidade tecnológica, caso sejam utilizados para eliminar os pressupostos de fato e de direito causadores de risco aos consumidores, então para responder a questão regulatória proposta pelo Fórum Econômico Mundial, bastaria a proposição de “princípios de autorregulação by design”.
Autorregulação by design
Princípios de autorregulação by design, por sua vez, são princípios relativos à construção e ao uso da própria tecnologia, ou seja, que determinem, por exemplo, padrões mínimos de desenvolvimento de smart contracts, de modo a garantir a autocustódia e inexistência de istração de recursos de terceiros.
Para tanto, o primeiro o é separar o verdadeiro mercado de criptoativos, que segue os princípios da autocustódia e da não istração de recursos de terceiros, caso do Bitcoin e dos protocolos DEFI, da atividade de intermediação financeira tradicional, que inclui no seu portfólio de serviços a custódia e istração de criptoativos de terceiros, como bancos, corretoras de criptoativos e prestadoras de serviços de ativos virtuais, estas criadas no Brasil por meio da Lei 14.478/2022.
O cerne da confusão, inclusive, está na não distinção por alguns reguladores entre o verdadeiro mercado de criptoativos, que opera totalmente baseado em smart contracts, não havendo custódia e istração de recursos de terceiros, do mercado financeiro tradicional que ou a atuar no mercado de criptoativos, inclusive por meio de corretoras.
E aqui, diga-se de agem, não só o regulador, mas a imensa maioria dos consumidores têm sido induzidos a erro, arcando, não raro, com inúmeros prejuízos porque, muito embora as corretoras de criptoativos usem termos como smart contracts e blockchain para atrair consumidores, elas não usam tais tecnologias na prática, servindo-se da mesma estrutura de servidores e banco de dados que as instituições financeiras tradicionais.
Por outro lado, em relação ao verdadeiro mercado de criptoativos, que além do Bitcoin e do Defi pode abranger a tokenização descentralizada de ativos reais (RWA), isto é, o uso de smart contracts para negociação de bens tokenizados no comércio internacional, bastaria a prescrição de diretrizes autorregulatórias de modo a assegurar que tais smart contracts sejam construídos de modo a garantir a autocustódia e a não istração de recursos de terceiros.
Feito isso, o princípio “same risks, same regulation” estaria atendido de modo eficiente, dado a lei estar inserida na própria tecnologia, havendo ainda incentivo por parte do regulador ao uso da tecnologia para diminuição dos riscos aos consumidores, punindo-se com os ônus da regulação tradicional apenas aqueles que atuam como intermediários tradicionais.
Em síntese, o que aqui se propõe é a solução para fomentar a inovação no mercado de criptoativos ao mesmo tempo em que se traz aos consumidores proteção superior, inclusive, àquela advinda do modelo regulatório tradicional, aplicável às instituições financeiras.
[1] Fórum Econômico Mundial. (2023). Pathways to the Regulation of Crypto Assets. Disponível em:https://www3.weforum.org/docs/WEF_Pathways_to_the_Regulation_of_Crypto_Assets_2023.pdf 28/05/2024
[2] LOPES, Fernando. Bitcoin não pode ser regulamentado, porque já é regulamentado. Disponível em: /2020-ago-06/fernando-lopes-regulamentacao-bitcoin/ o 29/05/2024 .
[3] Sobre a máxima same risks, same regulation como princípio orientador da regulação no âmbito do sistema financeiro internacional Cf. LOPES, Fernando; ZORZO, Marcella. O Guia Jurídico da Tokenização. Experience, 2023.
[4] Cf. SZABO, Nick. Smart contracts watch. Disponível em: http://unenumerated.blogspot.com/2007/08/smart-contracts-watch.html, 2007.
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