Direito Civil Atual

Um livro e o vocabulário do seu tempo (parte 1)

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3 de junho de 2024, 8h00

A polêmica em torno do primeiro livro publicado na América do Sul, em formato de compêndio, versando sobre o direito istrativo, teve os seus argumentos disputados, mas que, ao final, prevaleceram em favor do Brasil [1].

Isso porque Benjamin Basavilbaso, istrativista argentino, em seu tratado, ao historiar a evolução da disciplina, atribuiu a façanha a Santiago Prado, chileno, que, em 1859, trouxe à luz do público o livro “Principios Elementares de Derecho istrativo Chileno”.

Numa postura desafiadora, Caio Tácito [2] questionou essa prioridade cronológica, fazendo-o sob o argumento de que Vicente Pereira do Rego, regente da cadeira de direito istrativo na Faculdade de Direito do Recife, publicou, em 1857, aproximadamente dois anos de antecedência, os seus “Elementos de Direito istrativo Brasileiro, comparado com o Direito istrativo Francês, segundo o método de P. Pradier-Foderé”, cuja edição coube à Tipografia Universal, sita à rua do Colégio, nº 18, Recife.

Seguindo a moda do seu tempo, a influência sa foi inevitável. Isso não só culturalmente [3], mas também porque a Constituição de 1824 se encontrou fortemente inspirada pelo modelo constitucional francês de 1814, igualmente outorgada pelos Bourbons restaurados [4].

Spacca

Numa explicação aos leitores [5], Perreira do Rego narra que tudo teve início quando, após um ano na regência da cadeira de direito istrativo, propôs à congregação formada pelos lentes da Faculdade de Direito do Recife, que servisse de texto base à disciplina o resumo de direito istrativo francês P. Pradier-Foderé.

Mas, a despeito da excelência da doutrina nele ministrada, com pouco tempo, o autor observara que, ao tratar da nossa organização e legislação istrativa, as lições sas se revelaram inçadas de dificuldades e embaraços, comprometendo o aproveitamento dos alunos. Daí a ideia de se elaborar um compêndio mais apropriado ao ensino nestas plagas.

Compõem a obra dois tomos, de 228 e 219 páginas, respectivamente, divididos em três partes, compartimentando o desenvolvimento das matérias em 334 parágrafos. Restou adotada a fonte sa para a estrutura da ordem das matérias, mas igual e principalmente por ser onde se poderia colher os princípios gerais do nosso modelo. Em adição, compilou-se a suma das mais relevantes leis istrativas pátrias.

À busca de um lugar para a função istrativa no organismo estatal, optou o autor por uma definição residual, extremando-a da legislação e da justiça, afirma que a istração, sendo o governo do país, provê, pela execução das leis de interesse geral, a segurança do Estado, a manutenção da ordem pública e a satisfação das necessidades da sociedade [6].

Formulou uma definição do direito istrativo, como sendo consistente na “sciencia da acção e competencia do poder central, das istrações locaes, e dos tribunaes istrativos em suas relações com os direitos e interesses dos istrados, e com o interesse geral do Estado” [7].

A façanha se revelou sobremodo útil para a delimitação do seu âmbito de estudo, a abranger o estudo das leis e das autoridades istrativas, englobando nas primeiras todas as leis sociais, exceto as que servem de fundamento à organização constitucional ou que dizem respeito ao domínio judiciário [8].

Logo em seguida, procurou o autor delinear uma divisão das funções das autoridades istrativas no âmbito da própria istração, de maneira que, a partir da tríade “obrar, consultar e deliberar”, tem-se a tripartição da istração em ativa, consultiva e contenciosa [9].

O objeto principal — e legitimador — do istrar, qual seja o interesse público, restou descortinado sob a denominação de utilidade pública, com a decomposição dos seus traços notabilizadores atuais, seja quanto à sua indicação pelo sistema jurídica, a sua variabilidade e indeterminação prévia, bem assim vinculação às necessidades não do Estado, mas da sociedade.

Compulsória a transcrição da agem seguinte, preservada a grafia de então:

“Quanto á utilidade publica, é esta determinada pelo complexo da legislação;  mas ella gyra n’um circulo elastico, que o interesse geral, ora amplia, e ora restringe.” [10]

Tratando dos órgãos gerais da istração ativa, o autor, após situar o Imperador no seu cume, põe em evidência a função política daquele, mediante a prática de atos de governo, enumerando três espécies [11].

Classifica os atos normativos da istração, bipartindo-os, entre os regulamentos em orgânicos, destinados à organização dos ramos da istração Pública, e os regulamentares, voltados a regular os pormenores da execução de uma lei, não antes sem poupar o acréscimo de um terceiro espécime [12].

Este é representado justamente por aqueles expedidos na forma dos regulamentos da istração Pública [13], consistentes nos de objeto menos geral, por versarem sobre matérias que não interessam à universalidade dos cidadãos, mas apenas a segmentos de istrados, tais como os regulamentos dos diversos serviços públicos.

São enumerados os instrumentos de garantia de que dispõe o cidadão contra dos atos da istração Pública, distinguindo-os como os meios gracioso e contencioso [14]. Numa correspondência ao presente, já percebia o autor que a tutela jurisdicional do istrado, conforme o caso, poderia dizer respeito a defesa de interesses e direitos subjetivos, respectivamente.

O autor nos brinda com uma exposição acerca dos demais órgãos gerais incumbidos da istração ativa, quais sejam o Conselho de Estado, e os Ministros de Estado, especialmente o Ministério dos Negócios do Império, o Ministério dos Negócios da Justiça e dos Estrangeiros e o Ministério da Fazenda [15]. Destaca a responsabilidade ministerial prevista pelo artigo 133 da Constituição de 1824 [16].

Prosseguindo, discorre-se sobre os órgãos das províncias (presidentes e Assembleias Provinciais), das autoridades istrativas dos municípios (juízes e câmaras municipais), bem assim no que diz respeito aos órgãos especiais da istração Pública [17] (estabelecimentos de instrução pública, polícia, tribunais do comércio, Exército e força naval e organização eclesiástica [18]).

Eis, em suma, a abordagem constante da primeira parte da obra.

* esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

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[1] De fato, é importante se restringir a disputa à América do Sul, pois, antes, em 1852, em terras mexicanas, foi editado, pela Imprenta de Ignacio Cumplido, Lecciones de Derecho istrativo, de autoria de Teodoro Lares. A afirmação consta de Hidemberg Alves de Frota (Qual a primeira obra de direito istrativo da América Latina. Disponível em: https://tematicasjuridicas.wordpress.com). O texto integral se encontra em pdf disponível em: https://revistas-colaboracion.juridicas.unam.mx/index.php/gaceta-mexicana/article/view/24985.

[2] O primeiro livro de direito istrativo na América Latina, Revista de Direito istrativo, vol. 27, p. 428-429, 1952.

[3] Na sua curta proeza como comentarista político, Machado de Assis, em crônica de 13 de dezembro de 1896, publicada pela Gazeta de Notícias, mesmo sem há muito tempo não frequentar teatros, anotou que tal arte aqui praticada não era “propriamente brasileira, nem estritamente sa”, devendo ser denominada por um vocábulo composto, qual seja arte franco-brasileira. Quanto à sua linguagem, constatou uma mescla, pois: “A língua de que usa dizem-me que não se pode atribuir exclusivamente a Voltaire, nem inteiramente a Alencar; é uma língua feita com partes de ambas, formando um terceiro organismo, em que a polidez de uma e o mimo de outra produzem nova e não menos doce prosódia” (ASSIS, Machado de. O velho Senado. Brasília: Senado Federal, 2004, p. 76).

[4] Esse traço consta da observação de BONAVIDES: “Dominada pelas sugestões constitucionais provenientes da França, a Constituição Imperial do Brasil foi a única do mundo, salvo notícia em contrário, que explicitamente perfilhou a repartição teradimensional de poderes, ou seja, trocou o modelo de Montesquieu pelo de Benjamin Constant, embora de modo mais quantitativo e formal do que qualitativo e material” (BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 190).

[5] Elementos de Direito istrativo Brasileiro (p. I e II)

[6] Elementos de Direito istrativo Brasileiro (§§ 3º e 4º).

[7] Elementos de Direito istrativo Brasileiro (§ 5º).

[8] Elementos de Direito istrativo Brasileiro (§5º).

[9] Nesse particular, o esboço do século XIX influenciou o desdobramento da doutrina do presente (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito istrativo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 373-374).

[10] Elementos de Direito istrativo Brasileiro (§ 7ª).

[11] Elementos de Direito istrativo Brasileiro (§ 14). A consideração de uma função política no contexto das funções estatais é visualizada como uma característica de atualidade (DAL POZZO, Augusto Neves; ROCHA, Sílvio Luís da. Curso de direito istrativo. São Paulo: Thompson Reuters, 20224, p. 48-49).

[12] Elementos de Direito istrativo Brasileiro (§§ 15 a 18). Mais uma vez, o reflexo dos tempos que correm se projeta numa dualidade compreensiva das técnicas inerentes ao regulamento de execução, conforme expostas por García de Enterría e de Tomás-Ramón Fernández, ao se reportarem à remissão normativa e à deslegalização, estando a última mais próxima das tarefas de organização istrativa (ENTERRÍA, Eduardo García; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de derecho istrativo. 10ª ed. Madri: Civitas, 2000. Vol. I, p. 265-277).

[13] Embora contemplando normatividade setorial, o qualificativo “na forma dos regulamentos expedidos pela istração Pública” expressava a necessidade de prévia audiência do Conselho de Estado para a sua edição, nos termos da Lei nº 234, de 21 de novembro de 1841, a saber: “Art. 7º Incumbe ao Conselho de Estado consultar em todos os negocios, em que o Imperador Houver por bem ouvi-lo, para resolvê-los; e principalmente: (…) 6º Sobre Decretos, Regulamentos, e Instrucções para a boa execução das Leis, e sobre Propostas, que o Poder Executivo tenha de apresentar á Assembléa Geral” (disponível em: www.planalto.gov.br).

[14] Elementos de Direito istrativo Brasileiro (§ 20).

[15] Elementos de Direito istrativo Brasileiro (§§ 21 a 44).

[16] “Art. 133. Os Ministros de Estado serão responsáveis I. Por traição. II. Por peita, suborno, ou concussão. III. Por abuso do Poder. IV. Pela falta de observancia da Lei. V. Pelo que obrarem contra a Liberdade, segurança, ou propriedade dos Cidadãos. VI. Por qualquer dissipação dos bens públicos” (Disponível em: www.planalto.gov.br).

[17] Elementos de Direito istrativo Brasileiro (§§ 45 a 128).

[18] Pode parecer estranho, mas a referência a uma detida disciplina da organização eclesiástica (Elementos de Direito istrativo Brasileiro, §§ 118 a 128), incluídos os bens eclesiásticos, justificava-se como imprescindível à medida que a Constituição de 1824 perfilhar a religião católica como oficial do Estado brasileiro (art. 5º), ao elencar as competências do Imperador, enquanto titular do Poder Executivo, assim dispunha: “Art. 102. O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado. São suas principaes attribuições (…) II. Nomear Bispos, e prover os Beneficios Ecclesiasticos” (Disponível em: www.planalto.gov.br)”.

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