Opinião

Lei que revoga incisos do artigo 122 da LEP deve ser declarada inconstitucional

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6 de junho de 2024, 6h07

Da ação direta de inconstitucionalidade

A Associação Nacional da Advocacia Criminal (Anacrim) ingressou no último dia 3 no Supremo Tribunal Federal com ação direta de inconstitucionalidade (ADI) para que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei Federal nº 14.843/2024, que revogou os incisos I e III, do caput do artigo 122 da Lei de Execução Penal (LEP) — Lei 7.210/1984 —, impedindo, assim, as saídas temporárias de presos — pejorativamente apelidada de “saidinhas” — para visitar a família e para participar de atividades que concorram para o retorno ao convívio social.

Antônio Cruz/Agência Brasil

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei, mas vetou os trechos que impediam as saídas temporárias nas hipóteses acima descritas. Contudo, em 28 de maio, o Congresso derrubou o veto presidencial.

Na ADI assinada pelo presidente da Anacrim, James Walker Junior, pelos juristas Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Lenio Luiz Streck, bem como pelos procuradores da entidade Marcio Berti e Victor Minervino Quintiere ressaltam que:

“A Constituição, em seu art. 1º, inc. III, estabelece a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. A revogação dos direitos de visita familiar e participação em atividades sociais dos presos viola diretamente esse princípio”.

Advertem os subescritores da ação que:

“O art. 5º, inc. XLVII, al. “b”, da Constituição, veda a pena de caráter perpétuo, estabelecendo implicitamente a necessidade de mecanismos que favoreçam a reintegração social dos presos…”

Para reforçar a inconstitucionalidade da revogação das saídas temporárias e a defesa dos direitos humanos invocam, ainda, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PID), adotados pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1966 e ratificado pelo Brasil, destacando que:

“1. Toda pessoa privada da liberdade será tratada com humanidade e respeito pela dignidade inerente à pessoa humana.

2. As pessoas privadas de liberdade serão tratadas com humanidade e com respeito pela dignidade inerente ao ser humano.”

Do fundamento da pena

Não se pretende aqui discutir e abordar as diversas teorias da pena (absolutas, relativas, unificadas, funcionalistas etc.), mas tão somente pontuar as contradições da pena (privativa de liberdade), bem como a necessidade de se manter as saídas temporárias como um dos objetivos da ressocialização do condenado.

Uma das questões mais intrigantes referentes às teorias que buscam a legitimação das funções da pena é o fim contraditório atribuído à pena de prisão [1]. Como punir e castigar o preso e ao mesmo tempo reformá-lo? Como ressocializar o preso privando-o da vida em sociedade?

Quanto mais duradoura for a pena privativa de liberdade maiores serão suas contradições e mais distante estará o preso de uma adaptação à vida fora da prisão. Com o decorrer dos anos ocorre o fenômeno da “prisionização” [2], ou seja, à “assimilação dos padrões vigorantes na penitenciária, estabelecidos, precipuamente, pelo internos mais endurecidos, mais persistentes e menos propenso a melhoras. Adaptar-se à cadeia, destarte, significa, em regra, adquirir as qualificações e atitudes do criminoso habitual. Na prisão, pois, o interno mais desenvolverá a tendência criminoso que trouxe de fora do que anulará ou suavizará” [3]. Na prisão, ao contrário do que alguns insistem em afirmar, “os homens são despersonalizados e dessocializados” [4].

Embora sabido, por inúmeras razões, que é praticamente impossível alcançar a ressocialização e reintegração do condenado através da pena privativa de liberdade, [5]necessário salientar, no dizer de Heleno Cláudio Fragoso, que no momento da execução o “escopo da pena é aqui a ressocialização do condenado, ou seja, a finalidade de incorporá-lo à sociedade”. A ressocialização pretendida, prossegue Fragoso, “não se pode fazer sem respeitar a dignidade e autonomia do réu, motivo pelo qual deve ser oferecida (e não imposta), como forma de prevenir a prática de novos crimes, possibilitando ao condenado uma vida adaptada a sociedade” [6].

Nesta linha, as saídas temporárias, notadamente para visita à família e para as atividades que concorram para o retorno ao convívio social, é instrumento de suma importância para os fins de reintegração e ressocialização do preso que tem no discurso oficial da pena uma de suas finalidades, além da punição.

Da dignidade humana

Como já dito alhures e bem assinalado na ADI proposta pela Anacrim, a dignidade da humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e do Estado democrático de Direito.

Além da carga de fundamentação e legitimação, a dignidade humana é, no dizer de Helena Regina Lobo da Costa, “norma jurídica, sendo essencial ressaltar que ela não se restringe a uma declaração ou postulado filosófico, possuindo força normativa concreta”. Mais adiante, assevera a autora, que “o postulado normativo da dignidade humana como metanorma, indicando como devem ser interpretadas e aplicadas outras normas. O principal âmbito de aplicação da dignidade como postulado normativo são os direitos fundamentais, não se excluindo, todavia, as demais normas constitucionais e infraconstitucionais” [7].

Como princípio aplicável ao direito penal, a dignidade humana, segundo a pesquisador e professora Helena Regina Lobo da Costa, “determina, diretamente, a adoção de certos comportamentos, tais como a absoluta proibição da tortura pelo sistema penal, além de constituir princípios de maior concretude, que intermedeiam sua aplicação. Entre eles, os de maior importância para o direito penal são o princípio da culpabilidade e da humanidade das penas” [8].

Conclusão

Não é demais martelar que as condições das penitenciárias brasileiras são degradantes e desumanas que levou o STF em decisão unânime reconhecer o estado inconstitucional de coisas.

A criminóloga Lola Aniyar de Castro assegura que a realidade na América Latina, nos séculos 20 e 21 caracteriza-se por apresentar os mais elevados índices históricos de violência carcerária, trata-se de “um barril de pólvora sempre preste a explodir”. A construção de novas prisões, sempre proposta como solução para o problema da superpopulação carcerária, levará a mais encarceramento, posto que “mais espaço disponível tem como resultado mais confinamento”. [9]

Assim sendo, é preciso reconhecer que as saídas temporárias funcionam, também, como uma válvula de escape para esse “barril de pólvora” prestes sempre a explodir, além de contribuir, sobremaneira, para amenizar os incomensuráveis dramas da prisão e para a buscada ressocialização.

Não resta dúvida que o direito só faz sentido quando está a serviço do ser humano, ou melhor, da sua dignidade. Diante da formulação kantiana que tem o homem como fim em si mesmo. Quando o direito (instrumento de poder) desvirtua de sua principal finalidade, qual seja a proteção do indivíduo frente ao poder estatal, a sociedade a a ser controlada pelo arbítrio e pelo autoritarismo do Estado. Não havendo nenhum equivoco em afirmar que é através do Direito Penal que o braço repressor e violento do Estado se faz presente.

 


[1] Sobre o tema ver THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

[2] Alessandro Baratta se refere ao processo de socialização ao qual é submetido o preso, sob um duplo ponto de vista: da “desculturação” (desadaptação às condições necessárias para a vida em liberdade) e o da “aculturação” ou “prisionização”.  Este último, trata-se, segundo ele, “da assunção das atitudes, dos modelos de comportamento, dos valores característicos da subcultura carcerária…”  (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 184).

[3] THOMPSON, Augusto. Ob. cit., p. 95-96.

[4] HULSMAN, Louk. Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niteróis, RJ: Luam Ed,1993 p. 63.

[5] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral, 12ª ed., rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 279.

[6] FRAGOSO, op. cit., p. 278.

[7] COSTA, Helena Regina Lobo da. A dignidade humana: teorias de prevenção geral positiva. São Paulo Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.34 e 38.

[8] Idem, op. cit. p. 62.

[9] CASTRO, Lola Aniyar. Matar com a prisão, o paraíso legal e o inferno carcerário: os estabelecimentos “concordes, seguros e capazes” in Depois do grande encarceramento. Organização Pedro Vieira Abramovay, Vera Malaguti Batista. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

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