Opinião

PEC da 'privatização' das praias é inútil e inoportuna

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  • é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros e ex-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

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8 de junho de 2024, 6h33

A tramitação de PEC nº 3/2022 [1] no Senado tem dado margem à muita polêmica sobre a “privatização” das praias brasileiras. O tema é muito relevante e merece ser esclarecido. Inicialmente, cabe registrar que as inúmeras organizações não governamentais (ONGs), que estão expressando suas opiniões sobre o tema, em redes sociais e no espaço público em geral, não têm qualquer obrigação de abordar a matéria do ponto de vista técnico-jurídico. Como agentes sociais revelam preocupações políticas legítimas. Aliás, é, certamente, em função da problematização feita pelas ONGs que o assunto se tornou público, destacando-se pela sua alta relevância.

Reprodução/Agência Senado

A proposta de emenda constitucional não trata diretamente das praias, muito embora possa ter grande influência na gestão delas. Veiga Cabral, em sua clássica obra [2], arrola entre o domínio do Estado, “as Marinhas” e “As matas, e os arvoredos à borda da costa” e “os rios navegáveis”. As “marinhas” são os terrenos banhados pelo mar, ou rios navegáveis até a distância de 15 braças [3] craveiras para a parte de terra, contados desde os pontos, a que chega o preamar médio, pertencem igualmente à nação, ou ao Estado”.

As “marinhas” não são os terrenos de marinha, mas as praias. As praias, conforme a tradição emanada do direito romano, sempre foram consideradas como bens de uso comum do povo: “São certamente comuns a todos, pelo direito natural, o ar, a água corrente, o mar e, por meio dele, a costa marítima.” “A miguem, portanto,  proibido é ter o ao litoral marítimo para pescar, desde que respeite a propriedade de casas, construções e monumentos porque não são do direito das gentes, como é o  mar. (…) “ [4]

A Lei nº 7.661/1988, em seu artigo 10, § 3º dispõe que: “[e]ntende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subsequente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema”.

As praias, conforme a Constituição, são bens de propriedade da União (artigo 20, IV), classificados como de uso comum do povo [5], devendo a lei determinar “as características e as modalidades de o que garantam o uso público das praias e do mar.” O direito brasileiro, portanto, segue a milenar tradição do direito romano, no sentido de que as praias são bens públicos e de livre o a todos. Elas são consideradas como recurso natural. [6]

Assim como as praias, os terrenos de marinha e seus acrescidos são bens de propriedade da união (C.F, artigo 20, VII). É importante observar que, desde a colônia, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro dava áreas em aforamento [7].

O Decreto-Lei nº 9.760/1946 em seu artigo 2º estabelece que: “[s]ão terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trina e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831” (a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés e (b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés. A influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de cinco centímetros pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.

A Lei nº 8.987/1982 — relativa à alienação de imóveis de propriedade de União —, no parágrafo único do artigo 1º, autorizou à dação em aforamento ao extinto BNH (Banco Nacional da Habitação), “a título oneroso ou gratuito, terrenos de marina suscetíveis de aproveitamento para fins de construção de moradias populares (…)”. A mesma lei, em seu artigo 7º e §§ autorizou a regularização da ocupação dos terrenos de marinha “por pessoas ou empresas que neles tenham moradia ou neles exerçam atividade econômica”.

A Lei nº 9.636/1998 — relativa à regularização, istração e aforamento de bens imóveis de domínio da União —, artigo 16-C, § 1º autoriza a alienação dos terrenos de  marinha e acrescidos, exceto quando forem (a) áreas de preservação permanente, na forma do inciso II do caput do artigo 3o da Lei no 12.651, de 25 de maio de 2012; ou  (b) áreas em que seja vedado o parcelamento do solo, na forma do artigo 3o e do inciso I do caput do artigo 13 da Lei no 6.766, de 19 de dezembro de 1979.

íveis de alienação

Os terrenos de marinha íveis de alienação devem ser localizados em área urbana consolidada que, para as finalidades da lei, necessitam: (a) estar incluída no perímetro urbano ou em zona urbana pelo plano diretor ou por lei municipal específica; (b) sistema viário implantado e vias de circulação pavimentadas; (c) estar  organizada em quadras e lotes predominantemente edificados; (d) ser de uso predominantemente urbano, caracterizado pela existência de edificações residenciais, comerciais, industriais, institucionais, mistas ou voltadas à prestação de serviços; e (e) possuir, no mínimo, três dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados: a) drenagem de águas pluviais; b) esgotamento sanitário; c) abastecimento de água potável; d) distribuição de energia elétrica; e e) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos.

Como se vê, a legislação vigente, autoriza a alienação dos terremos de marinha e acrescidos, observadas algumas condições. Não há, portanto, necessidade da PEC neste particular. A PEC 03/2022 revoga o inciso VII do artigo 20 da Constituição e o § 3º do artigo 49 do ADCT [8].

A PEC é reprodução de normas já existentes no ordenamento jurídico brasileiro, desde longa data. As leis devem ser interpretadas conforme a Constituição; todavia, a Constituição também deve ser interpretada conforme as leis. A legislação infraconstitucional permite a transferência do domínio pleno para os ocupantes dos terremos de marinha, inclusive os de baixa renda. Se a intensão da PEC é extinguir o foro e o laudêmio, ela é desnecessária, pois a medida pode ser tomada por legislação ordinária. É de se reconhecer que ambas as cobranças são resquícios de uma época ada que não corresponde mais aos dias atuais.

Em relação às áreas de expansão urbana, o que se observa é que a PEC 03/2022 induz à reprodução do atual modelo de ocupação do litoral; ora, nada impede que as áreas de expansão urbana se instalem atrás dos terrenos de marinha e não sobre eles. Nas condições de mudanças climáticas, elevação dos mares e redução de praias, os terrenos de marinha podem servir de zona tampão, protegendo as cidades e as pessoas.

A PEC 03/2022 não trata de privatização das praias, o que seria  inconstitucional, pois vedaria ao cidadão comum, a fruição do direito ao meio ambiente equilibrado, em um de seus aspectos.  Acresce que, o livre o às praias é, certamente, um direito incorporado ao patrimônio jurídico-existencial de cada cidadão brasileiro, tendo em vista a existência mais que milenar de tal direito. Aliás, uma boa missão para o Congresso Nacional seria cobrar da istração pública que faça valer o direito de livre o às praias que, em muitas regiões do Brasil, é inexistente ou de impossível exercício.

A PEC, como se pode constatar, é inútil e inoportuna.


[1] Disponível em < https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151923 > o aos 03/06/2024

[2][2] VEIGA CABRAL, P.G.T.  Direito istrativo Brasileiro. Rio de Janeiro: Typografia Universal. Vol. II, 1859. Disponível em < https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/34340 > o aos 03/06/2024

[3] antiga medida que correspondia a 10 palmos de craveira; medida de dois braços abertos e estendidos desde a extremidade do dedo do meio contando com o espaço do tronco até à extremidade oposta; equivalente a sete pés geométricos || no comércio de fitas e linhas a braça correspondia a 184 centímetros || na terminologia náutica significa a medida correspondente a 1,83 metros || braço de uma árvore.  Fontes: Moraes, 1950, vol. II, p. 590; 1813, vol. I, p. 296; Bluteau, 1712-1728, vol. II, p. 174; Barroca, 1992, p. 55. LR. Disponível em < https://www.museuvirtualdalusofonia.com/glossario/braca/ > o aos 03/06 /2024

[4] Tribunal Regional Federal da 1ª Região – Escola de Magistratura Federal da 1ª Região. Corpus Iuris Civilis. DigestoLivro I. Brasília. 2010, p. 82.

[5] Código Civil. Art. 99, I combinado com artigo 10 da Lei nº 7661/1988. Art. 10. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco o a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica.

[6] Lei nº 7661/1988. Art. 3º. O PNGC deverá prever o zoneamento de usos e atividades na Zona Costeira e dar prioridade à conservação e proteção, entre outros, dos seguintes bens: I – recursos naturais, renováveis e não renováveis; recifes, parcéis e bancos de algas; ilhas costeiras e oceânicas; sistemas fluviais, estuarinos e lagunares, baías e enseadas; praias; promontórios, costões e grutas marinhas; restingas e dunas; florestas litorâneas, manguezais e pradarias submersas.

[7] OCTAVIO, Rodrigo. Do domínio da União e dos Estados segundo a Constituição Federal.  Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. 1897, p. 77

[8] Art. 1º As áreas definidas como terrenos de marinha e seus acrescidos am a ter sua propriedade assim
estabelecida: I – continuam sob o domínio da União as áreas afetadas ao serviço público federal, inclusive as destinadas à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos e a unidades ambientais federais, e as áreas não ocupadas; II – am ao domínio pleno dos respectivos Estados e Municípios as áreas afetadas ao serviço público estadual e municipal, inclusive as destinadas à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos; III – am ao domínio pleno dos foreiros e dosocupantes regularmente inscritos no órgão de gestão do patrimônio da União até a data de publicação desta Emenda Constitucional; IV – am ao domínio dos ocupantes não inscritos,desde que a ocupação tenha ocorrido pelo menos 5 (cinco) anos antes da data de publicação desta Emenda Constitucionale seja formalmente comprovada a boa-fé; V – am aos cessionários as áreas que lhes foram cedidas pela União.  § 1º A transferência das áreas de que trata este artigo será realizada de forma: I – gratuita, no caso das áreas ocupadas por habitação de interesse social e das áreas de que trata o inciso II do caput deste artigo; II  onerosa, nos demais casos, conforme procedimento adotado pela União nos termos do art. 3º desta Emenda Constitucional. § 2º As áreas não ocupadas de que trata o inciso I do caput deste artigo requeridas para o fim de expansão do perímetro urbano serão transferidas ao Município, desde que atendidos os requisitos exigidos pela lei que regulamenta  art. 182 da Constituição Federal e as demais normas gerais sobre planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Art. 2º Fica vedada a cobrança de foro e de taxa de ocupação das áreas de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional, bem como de laudêmio sobre as transferências de domínio, a partir da data de publicação desta Emenda Constitucional. Art. 3º A União adotará as providências necessárias para que, no prazo de até 2 (dois) anos, sejam efetivadas as transferências de que trata esta Emenda Constitucional. Parágrafo único. Nas transferências de que tratao inciso III do caput do art. 1º desta Emenda Constitucional, serão deduzidos os valores pagos a título de foros ou de taxas de ocupação nos últimos 5 (cinco) anos, corrigidos pela taxa do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia(Selic).Art. 4º Ficam revogados o inciso VII do caput do
art. 20 da Constituição Federal e o § 3º do art. 49 do Ato  das Disposições Constitucionais Transitórias.

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  • é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia, professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros.

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