Opinião

Autonomia nas licitações e autonomia universitária

Autor

  • é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

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9 de junho de 2024, 7h02

Com surpresa e, até mesmo indignação, o subscritor do texto teve a informação (por professores) de que as universidades federais não teriam procuradoria própria tendo formato muitíssimo distinto das universidades públicas do estado de São Paulo, por exemplo. As universidades federais, portanto, não tem autonomia licitatória, tampouco autonomia universitária real e efetiva.

Não pudemos deixar de lembrar da previsão constitucional:

“Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, istrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.” (grifo do articulista)

Como uma universidade federal poderia ter autonomia se suas licitações e contratos am pelo crivo de outro ente istrativo (a União) sem que haja (a exemplo da USP) uma procuradoria própria e independente? Autonomia universitária pressupõe a dialética da autonomia licitatória como pressuposto e; concomitantemente; como consequência da efetiva e real autonomia universitária.

Não há qualquer crítica ao excepcional corpo consultivo da AGU, mas ao atentado ao princípio civilizatório da autonomia universitária. Há uma “autonomia” tacanha quando pessoas estranhas à estrutura da universidade podem opinar sobre temas essenciais ainda que não conheçam absolutamente nada sobre o dia a dia da vida acadêmica.

Não seria óbvio que uma pessoa que opina sobre os destinos da universidade deveria pertencer aos próprios quadros da universidade e não de um ente distinto e distante?

Até mesmo nas acanhadas urbes, dos grotões mais longínquos, há corpo próprio de procuradoria quando decidem criar uma autarquia para gestão do serviço de água. O serviço “autônomo” de água só é, efetivamente, autônomo com a existência de orçamento e corpo funcional próprio.

As empresas estatais também tem corpo próprio de advogados para a defesa de seus interesses e nunca se cogitou que membros da AGU pudessem atuar nos pareceres dos respectivos contratos. Aliás, dói o ouvido uma afirmação desse naipe.

Do ponto de vista axiológico não tem o menor sentido que as estatais tenham mais autonomia do que as universidades federais. Os monstros formalistas dirão que as estatais tem lei prevendo mais autonomia e as universidades federais não tem tal lei! Mas isso seria uma verdadeira inversão da pirâmide de Kelsen dando maior hierarquia às leis em detrimento da Constituição.

A vida universitária tem dinâmica própria e; não raro; disruptiva, não se compatibilizando com assessoramento jurídico à distância numa espécie de imposição de um modelo de “assessoria remota” sem prévia consulta e vivência junto às universidades federais. Não há autonomia universitária sem autonomia licitatória nem esta sem aquela numa simbiose decorrente da liberdade estrutural de cátedra.

Interpretação conforme da Constituição

A interpretação “conforme” significa a observância de determinada e específica interpretação que preserve a constitucionalidade da norma, excluindo interpretações que levem à inconstitucionalidade da norma.

A Lei Orgânica da AGU (LC 73/93) prevê em seu artigo 2º,  §3º que as autarquias são vinculadas à AGU. Assim:

“§ 3º – As Procuradorias e Departamentos Jurídicos das autarquias e fundações públicas são órgãos vinculados à Advocacia-Geral da União.”

Ocorre que a interpretação de que a universidade seria apenas “mais uma autarquia” ou “mais uma fundação” amesquinha a norma constitucional do artigo 207 da CF que prevê a autonomia das universidades.

O autor alemão Robert Alexy [1], em apertada síntese, faz referência à superioridade axiológica dos princípios em relação às normas.

A autonomia universitária não é mera norma, mas princípio de elevada estatura axiológica como decorrência do próprio Estado Democrático de Direito.

Ousamos afirmar que a autonomia universitária é preceito fundamental e sequer poderia ser objeto de emenda constitucional sendo, também, cláusula pétrea.

Como já decidiu o STF, no âmbito da anterioridade tributária, os direitos individuais não são apenas aqueles listados no artigo 5º mas outros espalhados pelo texto constitucional. Tal como os direitos do artigo 5º, a autonomia universitária tem eficácia plena (artigo 5º,§1º da CF).

Que sentido teriam direitos como liberdade profissional, liberdade de pensamento, igualdade racial e de gênero sem o à educação superior? As liberdades públicas são “liberdades combo” peças gêmeas nascidas num ambiente de autonomia universitária.

A autonomia universitária é cláusula pétrea e preceito fundamental da Magna Carta e a equiparação das universidades às demais autarquias/fundações é uma subversão do sistema normativo. É uma igualdade meramente formal inexistente no âmbito da realidade substancial dos fatos.

Aliás, foi a relevância do ensino superior que inspirou o STF a decidir pelas cotas raciais como instrumento de verdadeira e substancial isonomia. Não nos parece que essa decisão aceitaria o pressuposto de que se trata de “mais uma autarquia”. Por que as cotas raciais não começaram pelas agências de fiscalização ou conselhos profissionais? A obviedade dispensa resposta.

Confiança da comunidade universitária

Vale repetir que o texto não tem a irresponsabilidade de duvidar ou sequer questionar a capacidade técnica dos membros da respeitada AGU.

Universidade Federal do Rio de Janeiro

A questão em foco é se uma universidade federal é obrigada a aceitar apenas a assessoria de um membro da AGU ou teria a prerrogativa de utilizar-se dos préstimos daqueles que tem aderência e transversalidade. Ou seja, um parecerista que conheça o ambiente universitário, suas inúmeras peculiaridades e, ainda, seu caráter disruptivo intrínseco. Ou numa palavra: a aderência ao contexto universitário.

Não há que se falar em “autonomia” se temas relevantes não são examinados por estrutura de servidores da própria universidade federal. Ou seja, com “aderência” profissional ao ambiente universitário.

Dentro do tema aderência, vale destacar a previsão do Código de Ética e Disciplina no sentido que deve haver confiança entre cliente e advogado. Assim:

“Art. 10. As relações entre advogado e cliente baseiam-se na confiança recíproca.  Sentindo o advogado que essa confiança lhe falta, é recomendável que externe ao cliente sua impressão e, não se dissipando as dúvidas existentes, promova, em seguida, o substabelecimento do mandato ou a ele renuncie.”  (grifo do articulista)

A confiança não advém da capacidade técnica (indiscutível no caso da AGU) mas de circunstâncias que respeitem a autonomia universitária: contratação de corpo próprio de procuradores da universidade ou assessoramento oriundo de aderência ao ambiente universitário.

Quanto ao tema da transversalidade, típico dos pedagogos, é uma metáfora de um risco diagonal no quadro de disciplinas indicando o diálogo entre estas várias matérias acadêmicas.

Num ambiente universitário essa característica é essencial, principalmente para o assessoramento jurídico que deverá atuar com as múltiplas necessidades de diversas faculdades e, ainda, com aspectos de mercado para a aquisição de produtos e serviços.

Assim, a existência de um profissional selecionado pela própria universidade com critérios próprios que priorizem tais características é essencial para que exista, efetivamente, autonomia universitária. Um professor de Direito dos quadros da universidade federal, por exemplo, poderia ser parecerista em licitações se tivesse especialização nessa área, aderência e transversalidade.

Clareza dos pareceres

Há previsão expressa na Lei de Licitações sobre a necessidade de clareza nos pareceres (objeto de reiteradas insatisfações da comunidade universitária). Assim, prevê o códex licitatório:

“Art. 53. Ao final da fase preparatória, o processo licitatório seguirá para o órgão de assessoramento jurídico da istração, que realizará controle prévio de legalidade mediante análise jurídica da contratação.

§1º Na elaboração do parecer jurídico, o órgão de assessoramento jurídico da istração deverá:

(…)

II – redigir sua manifestação em linguagem simples e compreensível e de forma clara e objetiva, com apreciação de todos os elementos indispensáveis à contratação e com exposição dos pressupostos de fato e de direito levados em consideração na análise jurídica;” (grifos do articulista).

Novamente vem à mente a necessidade de confiança e aderência do parecerista ao ambiente universitário. A clareza pressupõe conhecimento do público que se orientará pelo parecer jurídico.

Universidades federais são autarquias especiais

A jurisprudência do c. STF já decidiu sobre a existência de autarquias “especiais” que inobstante a terminologia “autarquia” desfrutam de relevância institucional que obriga a interpretação de maior conteúdo axiológico de sua existência e, como decorrência, maior autonomia de atuação.

Tal relevância e consequente autonomia foram reconhecidas em relação à OAB diante de sua inequívoca relevância histórica e institucional na defesa da democracia.

Exatamente na defesa da democracia e do princípio constitucional da isonomia é que as universidades tem, também, relevância comparável à OAB.

Suas finalidades institucionais de caminho para a efetivação da igualdade, obrigam-nos a concluir pela sua autonomia como “autarquias especiais” reguladas por seus conselhos universitários e não meras repartições públicas especializadas. São produzidos cidadãos nas universidades federais e não burocratas carimbadores.

Sobre a OAB já decidiu o STF:

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. § 1º DO ARTIGO 79 DA LEI N. 8.906, 2ª PARTE. “SERVIDORES” DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. PRECEITO QUE POSSIBILITA A OPÇÃO PELO REGIME CELESTISTA. COMPENSAÇÃO PELA ESCOLHA DO REGIME JURÍDICO NO MOMENTO DA APOSENTADORIA. INDENIZAÇÃO. IMPOSIÇÃO DOS DITAMES INERENTES À ISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA. CONCURSO PÚBLICO (ART. 37, II DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL). INEXIGÊNCIA DE CONCURSO PÚBLICO PARA A ISSÃO DOS CONTRATADOS PELA OABAUTARQUIAS ESPECIAIS E AGÊNCIAS. CARÁTER JURÍDICO DA OAB. ENTIDADE PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO INDEPENDENTE. CATEGORIA ÍMPAR NO ELENCO DAS PERSONALIDADES JURÍDICAS EXISTENTES NO DIREITO BRASILEIRO. AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA DA ENTIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 37, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. NÃO OCORRÊNCIA. 1. A Lei n. 8.906, artigo 79, § 1º, possibilitou aos “servidores” da OAB, cujo regime outrora era estatutário, a opção pelo regime celetista. Compensação pela escolha: indenização a ser paga à época da aposentadoria. 2. Não procede a alegação de que a OAB sujeita-se aos ditames impostos à istração Pública Direta e Indireta. 3. A OAB não é uma entidade da istração Indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. 4. A OAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como “autarquiasespeciais” para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas “agências”. 5. Por não consubstanciar uma entidade da istração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da istração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária. 6. A OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente privilegiada, na medida em que são indispensáveis à istração da Justiça [artigo 133 da CB/88]. É entidade cuja finalidade é afeita a atribuições, interesses e seleção de advogados. Não há ordem de relação ou dependência entre a OAB e qualquer órgão público. 7. A Ordem dos Advogados do Brasil, cujas características são autonomia e independência, não pode ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional. A OAB não está voltada exclusivamente a finalidades corporativas. Possui finalidade institucional. 8. Embora decorra de determinação legal, o regime estatutário imposto aos empregados da OAB não é compatível com a entidade, que é autônoma e independente. 9. Improcede o pedido do requerente no sentido de que se dê interpretação conforme o artigo 37, inciso II, da Constituição do Brasil ao caput do artigo 79 da Lei n. 8.906, que determina a aplicação do regime trabalhista aos servidores da OAB. 10. Incabível a exigência de concurso público para issão dos contratados sob o regime trabalhista pela OAB. 11. Princípio da moralidade. Ética da legalidade e moralidade. Confinamento do princípio da moralidade ao âmbito da ética da legalidade, que não pode ser ultraada, sob pena de dissolução do próprio sistema. Desvio de poder ou de finalidade. 12. Julgo improcedente o pedido.” (ADI 3026, Tribunal Pleno, ministro Eros Grau, julgamento: 08.06.2006, publicação:29.09.2006 – grifos nossos)

As universidades caminham, historicamente, para a realocação jurídica e axiológica ao lado da relevância ímpar da OAB. Com o tempo terão recursos próprios rompendo sua dependência financeira com a União e suas vicissitudes ideológicas de esquerda e de direita. Prosseguirá na sua caminhada livrando-se das amarras já rompidas pela OAB e seguindo modelos de universidades do primeiro mundo.

Conclusão

A universidade pública federal tem direito a procuradoria própria, diante da inequívoca autonomia constitucionalmente prevista. Uma regra do Conselho Universitário pode autorizar pareceres da AGU ou outro profissional especializado em consonância com autonomia universitária substancial até que ocorra a criação e estruturação da novel instituição.

Recomenda-se, ainda, ajuizamento de ADI por partido político com representação no Congresso para que haja interpretação “conforme”, sem redução de texto, da mencionada regra da LC 73/93 no sentido de que o parecer da AGU está dentre as possibilidades à disposição da universidade federal. A autonomia licitatória é o primeiro o para que a universidade se equipare, ao longo do tempo, à OAB, autarquia especial, e instrumento de consolidação da democracia.

 


[1] “Teoria dos Direitos Fundamentais”, Ed. Malheiros, tradução de Virgílio Afonso da Silva, abril de 2008, im

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-SP, procurador municipal, autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (Ed. Dialética) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia, (coordenador: Marcelo Figueiredo, Ed. Juspodivm).

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