Opinião

Há cultura de precedentes no Brasil? A lógica da impenhorabilidade salarial

Autor

  • é assistente de juiz de direito no Tribunal de Justiça do Paraná graduando em direito pela FACNOPAR pós-graduando em direito processual penal contemporâneo pela FACNOPAR.

    Ver todos os posts

11 de junho de 2024, 21h30

Com a edição do novo Código de Processo Civil em 2015, o sistema de precedentes, outrora tratado no âmbito doutrinário com muita efervescência, foi devidamente previsto no artigo 927, positivando, assim, o dever dos juízes e tribunais em respeitar os padrões decisórios anteriormente estabelecidos, a fim de garantir segurança jurídica, previsibilidade, isonomia e harmonia ao sistema jurídico. Isso decorre da própria norma fundamental do artigo 926, a qual impõe aos tribunais o dever de uniformizar sua jurisprudência, mantê-la estável, íntegra e coerente.

leonidassantana/freepik

Nesse ponto, importante dizer que o precedente — enquanto norma geral produzida à luz da análise do caso concreto, e que serve como norte para o julgamento de casos futuros — surgiu na Inglaterra, país com formação jurídica calcada no commom law, diversa do modelo brasileiro, estruturado no civil law.

Ao o que na Inglaterra o precedente surge devido à ausência de codificação, no Brasil, com moldura totalmente diferenciada, adotamos/importamos o sistema de precedentes com o fito de reajustar nosso sistema e resolver um dos principais problemas que assolam o Poder Judiciário, caracterizado na dispersão jurisprudencial, geradora de insegurança jurídica.

Sistema de precedentes no civil law brasilis

Assim, como alerta Bruno Dantas e Tereza Arruda Alvim, o Código de Processo Civil de 2015 prestigia os precedentes proferidos em certas e determinadas situações que justificam sua natureza, na medida em que há decisões que naturalmente se tornam precedente — a luz do commom law, devido à sua capacidade de convencimento e persuasão — e outras que já nascem precedentes, impondo aos juízes e tribunais o seu respeito, independentemente do poder de convencimento ou respeitabilidade [1].

A partir disso surge a dificuldade. Como compatibilizar um sistema de precedentes, naturalmente gestado e construído para as especificidades do commom law, ao nosso sistema de matriz completamente distinta?

A resposta não é das mais simples, e nem deveria ser, levando em conta a cultura jurídica que possuímos em terras brasilis, como o desrespeito às decisões e à jurisprudência consolidada dos tribunais superiores por órgão inferiores (leia-se juízes e tribunais estaduais), ou pelos membros do próprio tribunal superior, o que evidencia tanto a deficiência de vinculação vertical, como horizontal, demonstrando que, se não há mecanismo de punição aos “descumpridores de precedentes”, no civil law brasilis a discussão é um pouco mais complexa.

Mas a despeito da inexistência de uma cultura de precedentes, eles estão aí, possuem eficácia vinculante nos moldes do artigo 927 do C e devem ser respeitados, como forma (um pouco deficiente) de garantir segurança jurídica e isonomia, e não apenas para controle do número de processos existentes no Poder Judiciário.

Por oportuno, é importante mencionar que adotar um sistema de precedentes vinculantes — como fez o Código de Processo Civil de 2015 — não surte efeitos se todos os seus institutos (ratio decidendi, overruling, obter dictum, distinguishing, etc.) são trabalhados erroneamente. Se isso ocorre, a consequência é mais insegurança jurídica, irracionalidade e ausência de lógica do sistema, como se demonstrará a diante e partir de um caso concreto, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Urge dizer que o artigo 927, III, do Código de Processo Civil, estabeleceu que os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos possuem o condão de gerar precedentes obrigatórios, vinculando os juízes e tribunais, de forma vertical, e até mesmo o próprio tribunal superior, na perspectiva horizontal, defendida na doutrina.

Segundo Jaylton Lopes Jr., o código criou um verdadeiro microssistema de julgamento de casos repetitivos, em que demandas com um alto nível reincidência nos tribunais podem ser julgados a partir da afetação e gerar precedentes para o futuro, objetivando dar harmonia e racionalidade ao sistema [2].

Tema 1.153 do STJ

ada tal contextualização, no dia 5 de junho de 2024, utilizando-se da lógica dos recursos especiais repetitivos, o Superior Tribunal de Justiça, na análise do Tema n° 1.153 (REsp n° 1.954.382/SP), fixou a seguinte tese: “A verba honorária sucumbencial, a despeito de sua natureza alimentar, não se enquadra na exceção prevista no § 2° do art. 833 do C/2015 (penhora para pagamento de prestação alimentícia)”, de forma com que um precedente vinculante foi criado.

Da leitura do inteiro teor do acórdão, a fim de verificar e extrair a ratio decidendi, ou seja, a razão generalizante do precedente, observa-se que o STJ sustenta a impenhorabilidade total dos valores provenientes de vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família e os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, nos termos do artigo 833, IV, do C.

De acordo com a Corte da Cidadania, a única exceção à impenhorabilidade seriam as hipóteses descritas no § 2° do artigo 833, quais sejam o pagamento de dívida oriunda de prestação alimentícia (leia-se alimentos) e quando o provento do executado exceder o patamar de 50 salários-mínimos.

Limitando o conceito de prestação alimentícia aos alimentos e impedindo a mitigação da regra da impenhorabilidade para pagamento de créditos alimentares, como os honorários advocatícios, verifica-se que a corte fechou o cerco interpretativo, estabelecendo como únicas hipóteses de mitigação às disposições do § 2° do artigo 833.

Contradição

Contudo, a despeito da ratio decidendi ser identificada e, em primeiro momento, gerar uma ínsita sensação de segurança jurídica, harmonia e integridade, não é o que se depreende da lógica sistêmica. Isso porque o próprio STJ — no AgInt no AREsp: 2.177.791/SP 2022/0229671-1, de relatoria da ministra Nancy Andrighi — decidiu que, a despeito das únicas exceções à impenhorabilidade salarial estarem no § 2° do artigo 833 do Código de Processo Civil, é legítima a penhora de até 30% dos proventos salariais daquele que recebe menos de 50 salários mínimos, desde que não prejudique seu mínimo existencial.

Além dessa decisão, também há várias outras nesse sentido no STJ, formando jurisprudência, além do posicionamento também ser adotado por alguns tribunais do país, como é o caso do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (IRDR de n° 0061787-14.2020.8.16.0000).

Instaurou-se o caos! A ratio decidendi já não é mais harmônica! E além disso não há mais integridade! A norma fundamental do artigo 926 do Código de Processo Civil também não mais subsiste!

Ora, do ponto de vista lógico e sistemático, como é possível a impenhorabilidade salarial não ser ível de relativização em caso de créditos alimentares — como é o caso dos honorários advocatícios — mas poder ser quando se trata de crédito não alimentar, desde que seja até 30%?

O mais contraditório de toda esta questão é que, no caso concreto gerador do Tema n° 1.153 (REsp n° 1.954.382/SP), tínhamos a penhora de 30% do salário da executada para pagar um crédito alimentar (honorários advocatícios), e a corte disse que era juridicamente inadequado relativizar o mencionado dispositivo legal.

Dificuldade de aceitação dos precedentes

Diante de tal confusão, o que se espera é insegurança jurídica, haja vista que a contradição apresentada poderá ocasionar dificuldades aos juízes e tribunais na análise de casos semelhantes, fazendo-os interpretar o precedente e a jurisprudência ao seu modo.

Nesse contexto, questiona-se a devida aplicação do sistema brasileiro de precedentes pelo Superior Tribunal, e se o órgão está trabalhando de maneira adequada com os institutos a ele inerentes. Ressalte-se que, ao construir a tese que será utilizada em demandas futuras com grau de similaridade, poderia a corte ter esmiuçado e trabalhado a hipótese da mitigação dos 30% (trinta por cento), garantindo-se maior racionalidade e lógica-sistêmica ao precedente vinculante.

Ao fim das contas, percebe-se uma verdadeira dificuldade do Poder Judiciário brasileiro em trabalhar com o sistema de precedentes. A ausência de cultura de precedentes não gera apenas a dificuldade de aceitação dos precedentes obrigatórios, mas também a precariedade no trato com os institutos a ele inerentes, como a consolidação de uma ratio decidendi coerente, íntegra e harmônica.

 


[1] ALVIM, Teresa Arruda; DANTAS, Bruno. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a nova função dos tribunais superiores. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 276.

[2] LOPES Jr. Jaylton. Manual de Processo Civil. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: EditoraJuspodivm. p. 941.

Autores

  • é assessor de juiz de Direito no TJ-PR, mais especificamente na 2a Vara Cível e da Fazenda Pública de Apucarana, responsável pela condução de processos cíveis em geral e relacionados à recuperação de empresas e falência, graduado em direito pela Facnopar, campus Apucarana, pós-graduado em Direito Processual Penal Contemporâneo também pela Facnopar e pós-graduando em Direito Constitucional pela Associação Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!