Privação da liberdade em SP por 1 g de droga: a quase estadualização do direito federal
11 de junho de 2024, 16h23
Em 11 de junho de 2019, transitou em julgado no Tribunal de Justiça de São Paulo um acórdão para confirmar a condenação da ré A.M.P.P., presa em flagrante em 2018, a uma pena de oito anos e nove meses de reclusão pelo crime previsto no artigo 33 da Lei de Drogas.
O dispositivo da sentença a considerou:
“Como incursa no art. 33, caput, da Lei 11.343/06, à pena de 08 (oito) anos e 09 (nove) meses de reclusão e pagamento de 875 (oitocentos e setenta e cinco) dias-multa, cada qual no mínimo legal. O regime de cumprimento de pena será o fechado em razão da reincidência e dos motivos que não permitiram a incidência da causa de diminuição da pena.
Diante da periculosidade concreta da ação criminosa, e considerando que continuam presentes os requisitos autorizadores da custódia cautelar, como forma de garantir a ordem pública e a repressão ao tráfico de drogas, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal, mantenho a prisão preventiva da ré. Assim, deverá recorrer, caso queira, custodiada. Recomende-se a ré no cárcere.” (trecho da sentença no HC)
Até aqui aparentemente nada fora da rotina da Justiça criminal brasileira, considerando que o crime de tráfico previsto no artigo 33 da Lei 11.343/06, com pena de reclusão de cinco a 15 anos, é o principal assunto julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme o relatório estatístico da corte para 2023.
Reitera-se, pelo STJ na sua totalidade, e não apenas pela 3ª Seção, competente para julgar o assunto. Apenas para ter uma dimensão, “tráfico de drogas e condutas afins”, na primeira posição, tem como número no relatório estatístico 22.692, já o “homicídio qualificado”, segundo na posição, tem o distante número 7.978, seguindo de “roubo majorado” e “dívida ativa”.
Mas o destaque do HC impetrado em 18/12/2023 pela Defensoria Pública de São Paulo perante o Superior Tribunal de Justiça consiste no fato de que a pena de oito anos e nove meses de reclusão em regime inicialmente fechado tem como base 1 grama de droga. Apenas 1 grama de crack.

Mas como a Justiça de São Paulo chegou a essa dosimetria da pena considerando a apreensão de apenas 1 grama de droga? Essa é a pergunta jurídica. Foram dois pontos levados em consideração pela Justiça de São Paulo para o aumento da pena-base em metade e da pena intermediária para oito anos e nove meses, que depois foram reformados pelo STJ. Vejamos.
Primeiro, o Juízo sentenciante na primeira fase do cálculo dosimétrico aumentou a pena-base em dois anos e meio, totalizando em sete anos e seis meses por considerar que “a natureza da droga apreendida (crack) revela um maior desvalor da conduta. Trata-se o crack de droga utilizada em ínfimas quantidades, com poder devastador para a saúde e uma das que mais facilmente causa dependência”. (trecho da sentença no HC)
Isto é, devido ao poder devastador para a saúde e pelo alto grau de dependência da droga, o Juízo de primeiro grau entendeu que a pena-base deveria ser exasperada pela metade, mesmo na quantidade de apenas 1 grama de droga apreendida.
Depois, na segunda fase da dosimetria, ainda por ser usuária, nos termos do artigo 28 da Lei de Drogas, foi considerada reincidente pelo magistrado singular, que agravou a sua reprimenda em 1/6 da pena:
“Na segunda fase da dosimetria está presente a agravante de reincidência (certidão de objeto e pé de fls. 137), assim, agravo a reprimenda em 1/6, ando-a para 08 (oito) anos e 09 (nove) meses de reclusão e pagamento de 875 (oitocentos e setenta e cinco) dias-multa. Ausentes atenuantes.” (trecho da sentença no HC)
Ao analisar as causas de aumento e diminuição de pena na terceira fase da dosimetria, em apertada síntese, o togado de primeiro grau destacou que não era possível a aplicação do tráfico privilegiado, previsto no artigo 33, § 4º da Lei Antidrogas, porquanto a paciente era reincidente pela prática do crime de consumo, previsto no artigo 28 do mesmo diploma legal.
E, assim, a sentença na parte dispositiva condenou a paciente AMPP a pena de oito anos e nove meses de reclusão, a ser iniciada no regime fechado também pela reincidência no crime de consumo.
Interposta a apelação criminal, foi integralmente mantida a totalidade da reprimenda no acórdão do TJ-SP. Ou seja, para o Justiça de São Paulo, a ora paciente deveria permanecer em regime fechado, com privação de liberdade por traficar apenas 1 grama de crack, considerando a circunstância negativada na primeira da dosimetria (natureza da droga) e a agravante da reincidência pelo crime de consumo na segunda fase do cálculo da pena.
Diferenças entre estadual e federal
Mas como o STJ reduziu a pena para apenas um ano e oito meses em regime aberto? A Justiça de São Paulo pensa tão diferente acerca da aplicação da mesma lei federal?

Primeiro, o STJ, ao analisar a impetração, considerou, sobre a exasperação da pena-base que “a natureza da droga apreendida, isoladamente considerada, não constitui fundamento suficiente para majorar a pena-base”, o relator citou julgados recentes da 6ª Turma, a exemplo do REsp nº 1976266, também oriundo do estado de São Paulo.
E com base nesse entendimento, o ministro concluiu na decisão monocrática que “nesse contexto, constato ilegalidade a ser sanada na pena-base fixada à paciente, devendo ser descartada a valoração negativa da natureza da droga apreendida, resultando em pena-base no mínimo legal de cinco anos de reclusão e 500 dias-multa”.
Restabelecida a pena-base em cinco anos, o relator ainda prosseguiu no segundo ponto da defesa apresentada pela Defensoria Pública de SP, que era o indevido agravamento da pena pela reincidência em razão da prática da conduta prevista no artigo 28 da Lei de Drogas (crime de consumo de drogas).
Quanto ao ponto, o ministro afirmou que o tribunal, por meio da 6ª Turma, já “analisou o tema para considerar desproporcional o reconhecimento da reincidência por condenação anterior pelo delito do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006”. Para tanto, citou o REsp nº 1672654, julgado em 21.08.2018, também oriundo de São Paulo.
E assim fazendo, afastou os efeitos da reincidência decorrente de condenação anterior pelo artigo 28 da Lei de Drogas e concluiu que “afastada a reincidência, a reprimenda se mantém no referido patamar na segunda fase da dosimetria e que na terceira fase, aplico o redutor de pena na fração máxima, tendo em vista a pequena quantidade de drogas apreendidas (1g de crack)”.
Isto é, além de afastar a reincidência — motivação que foi utilizada para afastar a benesse do privilégio, o ministro ainda aplicou na terceira fase do cálculo a redução da pena na fração máxima de 2/3 justamente pela diminuta quantidade de droga apreendida — 1 grama de crack, para, então, chegar a pena de um ano e nove meses de reclusão em regime aberto, nos termos da Súmula Vinculante 59 do STF, substituindo-a por duas restritivas de direito, nos moldes do artigo 44 do .
Eis a conclusão da decisão do ministro:
Aplicado o redutor de pena previsto no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 na fração máxima, estabeleço a pena definitiva no montante de 1 ano e 8 meses de reclusão e 166 dias-multa.
No tocante ao regime de cumprimento de pena, verifica-se aplicável ao caso a Súmula Vinculante n. 59 do STF, aprovada em 19/10/2023, no sentido de que é impositiva a fixação do regime aberto e a substituição por restritiva de direitos, quando reconhecida a figura do tráfico privilegiado (art. 33, § 4º da Lei n. 11.343/2003) e ausentes vetores negativos na primeira fase da dosimetria (art. 59 do ). Assim, fixada a pena-base no mínimo legal e reconhecido à paciente o benefício do tráfico privilegiado, a mesma faz jus ao regime aberto e à substituição da pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direito a serem fixadas pelo Juízo das Execuções.
Ante o exposto, com base no art. 34, inciso XX, do Regimento Interno do STJ, não conheço do habeas corpus, mas concedo a ordem, de ofício, para fixar a pena-base no mínimo legal e aplicar o redutor de pena previsto no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006, de forma a reduzir a pena aplicada à paciente para 1 ano e 8 meses de reclusão, e 166 dias-multa, a ser cumprida em regime prisional inicialmente aberto, e substituir a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos.
Dosimetria menor no STJ
Feito esse breve relato do caso, pode-se concluir juridicamente que, enquanto a Justiça do Estado de São Paulo elevou a pena de cinco anos para oito anos e nove meses de reclusão pelo crime de tráfico, considerando natureza da droga na quantidade de 1 grama de crack e pela sua entendida reincidência pelo crime de consumo, previsto no artigo 28 da Lei de Drogas, o STJ, Justiça da União, em decisão monocrática, no dia 18/12/2023, por sua vez, concedeu ordem de habeas corpus para fixar a pena-base em apenas cinco anos, afastar a agravante da reincidência e, por fim, reconhecer o redutor do tráfico privilegiado na última fase, de modo que a pena final ficou estabelecida em um ano e oito meses de reclusão em regime aberto, com base em súmula vinculante.
Para o jurisdicionado, no caso, a paciente, deve ser difícil entender, e principalmente sentir na privação da sua liberdade, a abrupta divergência numérica da dosimetria realizada pela Justiça Estadual e pela Justiça da União. Para ela, e para os jurisdicionados, é apenas uma a lei que regula a vida penal de todos desse País, independentemente da unidade da federação em que o crime foi cometido. Não se mostra crível para a realidade cotidiana que a mesma lei, que deve ser federal também na sua interpretação, possa ser quase estadual a depender do estado da federação que é aplicada.
Todos os brasileiros são e devem ser iguais perante a Lei, e isso está claro no artigo 5º da Constituição, mas não tão-somente perante a lei, mas igualmente perante a própria interpretação e aplicação da lei pelo Poder Judiciário, seja o estadual ou da União, em toda a sua organização federativa.
No Habeas Corpus da paciente, a Justiça da União, no caso o STJ, responsável federativo pela uniformização da interpretação da legislação federal infraconstitucional, foi provocado para garantir a interpretação uniforme da lei para a paciente, exercendo uma função “corretiva”, que mudou a pena de oito anos e nove meses de privação de liberdade para um ano e nove meses em regime aberto.
A iniciativa da Defensoria Pública, após o trânsito em julgado do processo em 2019, de provocar o STJ para reverter uma prisão ilegal desde 2018, pôs fim a uma quase estadualização da interpretação da legislação federal.
Esse caso pode ser exemplificativo para justificar o crescente número de HC’s que são impetrados por ano no STJ, com ordem concedidas, ainda que de ofício conforme estabelece o novel artigo 647-A do P, incluído pelo advento da Lei nº 14.836/2024. O Relatório Estatístico do STJ registrou que em 2023 a distribuição da classe HC foi maior que a própria classe REsp, atrás apenas da classe agravo em recurso especial.
É fato público e notório o alerta dos ministros que compõem a 3ª Seção do STJ com essa crescente realidade numérica, com destaque para as falas reiteradas do ministro Sebastião Reis, divulgadas aqui nesta ConJur.
Em 2023, também segundo o relatório estatístico do tribunal, a 3ª Seção do STJ julgou 13 temas sob a sistemática dos recursos repetitivos, um avanço histórico, mas ainda insuficientes para evitar lesões ao direito de liberdade.
Talvez com a presidência do ministro Rogério Schietti Cruz na Comissão Gestora de Precedentes do STJ, a identificação e a afetação de outros temas relevantes na seara penal possa ser uma solução, sob o ponto de vista da gestão processual, para evitar possíveis lesões irreparáveis ao direito de liberdade.
Sob o aspecto da irreparabilidade, é necessário relembrar que o sistema carcerário brasileiro já foi reconhecido pelo próprio STF como inconstitucional quando do julgamento da já histórica ADPF 347, que começou em 2015 e terminou em 2023 e que culminou na ordem de elaboração de um plano nacional para o enfrentamento do estado de coisas inconstitucional nos presídios brasileiros.
Conclui-se, portanto, que na hipótese do referido HC merece demais atenção para o trabalho realizado pela Defensoria Pública do Estado de SP, que atentamente percebeu o equívoco na aplicação da lei federal e, que em dezembro de 2023 provocou o STJ para julgar o caso após o trânsito da condenação em 2019, mas, principalmente, à Constituição que, por meio da Justiça da União, garantiu a liberdade da paciente, ainda que por anos lesionada.
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