Opinião

Imposição da via extrajudicial às partes é medida inadequada

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14 de junho de 2024, 18h28

Nos últimos anos, a sobrecarga do sistema judiciário brasileiro tem provocado o debate acerca da obrigatoriedade da tentativa de solução extrajudicial de conflitos antes do ajuizamento de ações judiciais, como uma forma de comprovar o interesse de agir.

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A questão é objeto do Tema nº 91 em incidente de resolução de demandas repetitivas no TJ-MG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais) e foi objeto de audiência pública realizada no último dia 23 de maio, conduzida pelo relator, desembargador José Marcos Rodrigues Vieira.

Embora a medida pareça, à primeira vista, adequada (e eficaz) para diminuir o número de processos no Judiciário e, sobretudo, um caminho para promover a cultura da paz, sua imposição obrigatória revela-se inadequada sob a perspectiva técnica e contraproducente sob a ótica prática.

Interesse de agir

Primeiramente, é essencial compreender os contornos e as funções do interesse de agir no processo civil brasileiro. O interesse de agir é um dos requisitos processuais indispensáveis para a issibilidade da ação judicial, ao lado da legitimidade das partes.

Ele vem previsto no artigo 17 do Código de Processo Civil e se refere à necessidade e à utilidade da intervenção judicial pretendida. Ou seja, na sua petição inicial, a parte deve demonstrar, prima facie, que a demanda judicial é necessária para a proteção de seu direito e que a decisão do juiz lhe trará algum benefício concreto.

Ampliação das opções

Embora a obrigatoriedade da tentativa de solução extrajudicial antes do ajuizamento não contrarie o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição, à luz da consolidação entre nós da possibilidade de alcance do o à Justiça por múltiplas portas (judicial, arbitral, mediadora, etc.), isso deve ser interpretado como uma ampliação das opções de o à solução do conflito e, jamais, como uma limitação.

Além disso, o Código de Processo Civil, em seu artigo 3º, §§ 1º e 2º, impõe aos juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público o dever de promover, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. Isso reflete uma orientação moderna de que a composição amigável deve ser buscada ao longo de todo o processo, e não apenas antes de seu início, como um obstáculo à sua utilização.

Nesse sentido, a solução consensual deve ser incentivada nas várias fases do conflito (e do processo), podendo ser alcançada a qualquer momento, conforme a conveniência e a vontade das partes.

Consensualidade

A conveniência e a vontade das partes, aliás, são o principal motivo pelo qual não podemos exigir que as partes busquem, obrigatoriamente, solucionar seus conflitos pela via extrajudicial antes do ajuizamento de ações judiciais. Isso porque a imposição do uso de vias extrajudiciais viola algo que é essencial ao uso de qualquer desses caminhos que é a consensualidade, a vontade de ambas as partes envolvidas no conflito com vistas a buscar aquela solução.

Logo, extinguir um processo judicial por ausência de interesse de agir decorrente da falta de tentativa de solução extrajudicial é algo que ignora por completo a natureza voluntária e cooperativa desses métodos e a forma como estão estruturados e positivados entre nós.

Natureza dos conflitos

Outro ponto que nos parece crítico é a própria natureza dos conflitos. Nem todos os casos são adequados para a solução extrajudicial. Questões complexas, que envolvem direitos indisponíveis, ou aquelas em que há um grande desequilíbrio de poder entre as partes, por exemplo, muitas vezes, requerem a intervenção judicial para garantir um resultado adequado. Exigir uma tentativa de solução extrajudicial em tais casos pode levar a soluções impróprios e, sobretudo, injustos.

Especificamente no tocante a casos envolvendo relações de consumo (e, por conseguinte, instituições financeiras, empresas de telefonia, seguradoras, operadoras de plano de saúde entre outras integrantes do rol de “grandes litigantes” do país) a imposição da tentativa obrigatória de solução extrajudicial antes do ajuizamento de ações pode resultar em verdadeira negativa de um direito fundamental.

Consumidores, muitas vezes, não dispõem de recursos, conhecimento ou o adequado para buscar soluções extrajudiciais de forma eficiente. Sem uma estrutura adequada e sem o devido e, a obrigatoriedade pode se transformar em um obstáculo ao alcance de uma prestação jurisdicional adequada, prejudicando os mais vulneráveis.

Aprimoramento

Na verdade, ao invés de se pretender a obrigatoriedade do uso da via extrajudicial, a solução a por incentivos e aprimoramentos. É crucial investir na formação de profissionais cada vez mais qualificados, conscientes e aptos a utilizar esses caminhos, na criação de estruturas verdadeiramente adequadas (e íveis de auditoria e fiscalização) e no fomento da cultura da solução consensual de conflitos.

Campanhas de conscientização e programas de incentivo podem estimular as partes a optarem voluntariamente por esses métodos, sempre com a garantia de que, se necessário, o Poder Judiciário estará disponível para assegurar a justiça.

Conclusão

A tentativa de solução extrajudicial de conflitos é um instrumento valioso e deve ser, sempre, estimulada. No entanto, sua imposição como requisito para o ajuizamento de processos judiciais é uma medida inadequada e indesejável. A verdadeira solução para a eficiência do sistema de justiça a por incentivos, investimentos e pela garantia do o ao Poder Judiciário, respeitando a diversidade, a complexidade e as particularidades de cada conflito existente.

Autores

  • é doutora em Direito pela UFMG, professora de Processo Civil do Ibmec, advogada de solução de disputas do escritório Suzana Cremasco Advocacia.

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