Análise dos dispositivos legais na Lei 12.651/12 sobre APP em zonas rurais (parte 2)
15 de junho de 2024, 9h18
Caro(a) leitor(a), este artigo é a continuidade de outro publicado aqui, correspondendo à parte 1 da análise normativa realizada sobre APP a partir da Lei Federal nº 12.651/2012 (referida, comumente, como Código Florestal).

Naquela oportunidade, foram abordadas as definições gerais que envolvem o tema para áreas rurais e urbanas e algumas peculiaridades dessas áreas envolvendo regimes de proteção diferenciados em pequenas propriedades rurais; áreas rurais consolidadas; e às demais propriedades rurais.
Nesta segunda parte, o objetivo foi o de tratar a respeito das áreas de preservação permanente (APP) localizadas em áreas urbanas, incluindo o tema das áreas urbanas consolidadas, descaraterização de APP em razão de canalização de curso d’água e perda de função ambiental, bem como acerca de discussões judiciais pendentes de julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, sobre a constitucionalidade da Lei Federal nº 14.285/2021, conforme se a a fazer a seguir.
1. Recapitulando alguns aspectos abordados na parte 1 desta análise
Conforme abordado no artigo anterior, APP se trata de “área protegida [em zona rural ou urbana — art. 4º, caput], coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”, nos termos do artigo 3º, II da Lei Federal nº 12.651/2012.
Classificam-se em áreas interiores úmidas (faixas marginais de cursos d’água perenes e intermitentes; entorno de lagos e lagoas naturais; entorno de reservatórios artificiais decorrentes de barramento ou represamento de cursos d’água naturais abrangendo aqueles que se destinem à geração de energia ou abastecimento público; entorno de nascentes e olhos d’água perenes; e, veredas); áreas úmidas associadas ao litoral (restingas e manguezais) e áreas relacionadas aos acidentes topográficos.
As APP devem ser preservadas integralmente, permitindo-se intervenções ambientais somente em situações de utilidade pública, interesse social e atividades eventuais ou de baixo impacto, nos termos do artigo 8º, cumulado com os artigos 7º e 3º, VIII, IX e X da Lei Federal nº 12.651/2012.
Como já mencionado, as APP podem estar presentes em zonas rurais ou urbanas, mantendo, de forma geral, o mesmo regime jurídico de proteção, guardadas algumas situações específicas tais como as que foram trabalhadas no artigo anterior.
No que que se refere às APP localizadas em zonas urbanas, destacam-se algumas peculiaridades, por exemplo, em situações que envolvam áreas urbanas consolidadas, conforme se discorre nos capítulos a seguir.
2. Áreas urbanas consolidadas e APP
Nos termos da Lei Federal nº 12.651/2012, para que uma área urbana seja considerada como sendo consolidada, deve atender aos seguintes critérios:
“Art. 3º (…). XXVI – (…):
a) estar incluída no perímetro urbano ou em zona urbana pelo plano diretor ou por lei municipal específica;
b) dispor de sistema viário implantado;
c) estar organizada em quadras e lotes predominantemente edificados;
d) apresentar uso predominantemente urbano, caracterizado pela existência de edificações residenciais, comerciais, industriais, institucionais, mistas ou direcionadas à prestação de serviços;
e) dispor de, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados:
-
drenagem de águas pluviais;
-
esgotamento sanitário;
-
abastecimento de água potável;
-
distribuição de energia elétrica e iluminação pública; e
-
limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos.”
Nessas áreas, e com fundamento no §10 do artigo 4º da Lei Federal nº 12.651/2012, lei municipal ou distrital (Distrito Federal) poderá definir faixas marginais para preservação da vegetação ciliar dos cursos d’água perenes e intermitentes, em metragens distintas das que estão previstas no artigo 4º, I [1] (abordadas na análise anterior), desde que tais regras municipais ou distritais estabeleçam:
Art. 4º (…). §10 (…):
I – a não ocupação de áreas com risco de desastres;
II – a observância das diretrizes do plano de recursos hídricos, do plano de bacia, do plano de drenagem ou do plano de saneamento básico, se houver; e
III – a previsão de que as atividades ou os empreendimentos a serem instalados nas áreas de preservação permanente urbanas devem observar os casos de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental fixados nesta Lei.
Essa possibilidade foi introduzida no Código Florestal Brasileiro por meio da Lei Federal nº 14.285/2021, a qual é objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.146 [2]), cujo relatoria é do ministro André Mendonça, do STF.
3. Áreas Urbanas Consolidadas, APP e ADI nº 7.146
A ADI nº 7.146 foi ajuizada em 18/4/2022 pelos seguintes partidos: Partido dos Trabalhadores, Partido Socialista Brasileiro, Partido Socialismo e Liberdade e Rede Sustentabilidade cuja inconstitucionalidade apontada na petição inicial à luz da Lei Federal nº 14.651/2021 se relaciona, sobretudo, à determinação de atribuir aos municípios a possibilidade de estabelecerem faixas marginais de proteção inferiores às previstas no artigo 4º, I do Código Florestal, flexibilizando, com isso, as regras nacionais pela legislação municipal e colidindo
“(…) com o regime da legislação concorrente em meio ambiente (artigo 24, incisos VI, VII e VIII e §4º, c/c o artigo 30, inciso II, da Constituição Federal. Isso, em verdade, inverteria toda a lógica do regime constitucional de repartição de competências, nos termos do qual as leis ambientais dos entes subnacionais somente podem aumentar o rigor ambiental das normas nacionais, jamais reduzir. (…)” [3] (negritos originais).
Destaca-se, nesse contexto, que o artigo 24, VI, da Constituição não prevê a possibilidade de que os municípios legislem, de forma concorrente, sobre florestas e conservação da natureza, ao dispor que: “Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (…) florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; (…).
Apesar disso, é competência comum de todos os entes federativos a proteção do meio ambiente e a preservação de florestas, nos termos do artigo 23, VI e VII: “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (…) proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; (…) preservar as florestas, a fauna e a flora; (…)”.
A ADI em comento aguarda apreciação pelo STF e segue conclusa com o relator desde 16/5/2024.
4. APP em área urbana e canalização de curso d’água
Um tema polêmico em relação às APP localizadas em áreas urbanas é também o da canalização de curso d’água (ambientalmente autorizada pelo órgão ambiental competente), se, nestes casos, a APP estaria descaracterizada. Para não deixarmos o assunto de fora desta análise, porém lembrando da necessária limitação de caracteres deste artigo, é possível dizer, de modo geral, que o assunto guarda íntima relação com a preservação das funções ecológicas da APP. Explica-se.

Como mencionado anteriormente, ao definir APP, o artigo 3º, II, da Lei Federal nº 12.651/2012 estabelece que se trata de “área protegida coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas” (negritos nossos).
Assim, a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, por meio de suas duas Câmaras Reservadas ao Meio Ambiente, tem se posicionado no sentido de que nos casos em que as funções ambientais da APP já não estejam mais presentes devido à completa antropização do local, a APP poderia ser descaracterizada (com base em avaliação técnica), afastando, com isso, as determinações legais relacionadas ao regime jurídico de proteção específico atribuído a tais áreas.
Observe-se esse cenário jurisprudencial paulista nas ementas dos julgados a seguir:
“MEIO AMBIENTE – APELAÇÃO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE – Intervenção em área de preservação permanente, situada em zona urbana – Bairro consolidado, com canalização do córrego e perda das funções ambientais da APP – Possibilidade de regularização contemplada, em tese, pelo ordenamento pátrio – Inteligência do artigo 8º do Código Florestal e lei 13.465/17 – Órgão ambiental que concluiu pela regularidade da intervenção – Ausência de dano ambiental – Ação improcedente. RECURSO DO AUTOR – Pretensão ao reconhecimento da responsabilidade solidária do Município – Questão prejudicada ante a improcedência da ação. RECURSO DO RÉU PROVIDO, RECURSO DO AUTOR PREJUDICADO.” (TJ-SP; Apelação/Remessa Necessária 0000504-95.2010.8.26.0247; Relator (a): Luis Fernando Nishi; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente; Foro de Ilhabela – 1ª Vara; Data do Julgamento: 17/10/2023; Data de Registro: 17/10/2023)
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Dano ambiental – Ocorrência – Reparação devida. Edificações construídas em Área de Preservação Permanente localizada ao longo de faixa marginal de curso d’água. Prova pericial que corroborou as conclusões dos órgãos ambientais. Descaracterização de APP não observada. Precedentes desta C. Câmara. Sentença mantida. RECURSO DESPROVIDO.”
[Trecho do acórdão: “Em relação à modificação do leito do rio, observa-se que no local do imóvel dos réus não houve canalização, de modo que não há descaracterização do curso d’água para fins de fixação da faixa de APP, não interferindo, neste tema, o fato de se tratar de área urbana consolidada” (p. 5)]. (TJ-SP; Apelação Cível 0013440-18.2012.8.26.0269; Relator (a): Isabel Cogan; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente; Foro de Itapetininga – 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/02/2023; Data de Registro: 28/02/2023)
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Paulínia. Córrego Jacaré. Construção em área de preservação permanente. Dano ambiental. Remoção das intervenções. Restauração da vegetação. Canalização do curso d’água. Perda da função ambiental. – 1. Área de preservação permanente. Área urbana. Legislação. A LF nº 12.651/12 se aplica às áreas urbanas; mas recomenda-se a avaliação da sobrevivência da função ecológica e da legislação municipal, como decorre do art. 182 da Constituição Federal. A urbanização da área em que situado o imóvel da ré não pode ser ignorada pelo juiz. – 2. Área de preservação permanente. Perda da função ambiental. A área de preservação deve ser conservada, não ocupada. No entanto, o caso concreto oferece peculiaridades que não podem ser desconsideradas. A área de preservação permanente às margens do córrego urbano em parte canalizado foi descaracterizada pela intensa urbanização, pela abertura de ruas, além da impermeabilização de parte das suas margens. A perda da função ambiental prejudica a área de preservação permanente, que nenhuma função exerce. – Procedência. Recurso da ré provido.” (TJ-SP; Apelação Cível 1003317-05.2019.8.26.0428; Relator (a): Torres de Carvalho; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente; Foro de Paulínia – 1ª Vara; Data do Julgamento: 04/08/2022; Data de Registro: 05/08/2022)
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Imóvel localizado à margem de córrego em área urbana. Região antropizada. Curso d´água canalizado e em cujas margens há forte urbanização, sendo que parte dele foi inclusive coberto por via pública. Laudo pericial que atesta a descaracterização da área de preservação. Perda da função protetora. Precedentes. Sentença reformada. Recurso conhecido e provido.” (TJ-SP; Apelação Cível 0011161-84.2012.8.26.0099; Relator (a): Vera Angrisani; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente; Foro de Bragança Paulista – 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 18/2/2016; Data de Registro: 19/2/2016)
Nesse contexto é que o tema da canalização de curso d’água x descaracterização de APP está intimamente conectado ao aspecto da função ambiental da área. Assim, caso as funções ambientais ainda estejam presentes, a APP não deve ser descaracterizada e seu regime jurídico especial de proteção deve ser observado.
5. Considerações finais
Diante do exposto, foi possível observar que as APP em áreas urbanas mantêm igual regime jurídico de proteção em relação àquelas localizadas em zonas rurais. Há alguns desafios enfrentados no que se refere às áreas urbanas consolidadas, por exemplo, relacionada à possibilidade de que os municípios possam estabelecer faixas marginais de proteção vegetacional diferentes daquelas previstas no artigo 4º, I, da Lei Federal nº 12.651/2012 (assunto que está sub judice em relação à constitucionalidade) e à descaracterização de APP frente à canalização de curso d’água.
Referências
BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm, o: 12/06/2024.
______. Lei Federal n. 12.651, de 25 de maio de 2012. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/L12651compilado.htm, o: 12/06/2024.
STF. ADI n. 7.146. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6387022, o: 12/06/2024.
______. ADI n. 7.146. Petição Inicial. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=6387022, o: 12/06/2024.
[1] Art. 4º Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei:
I – as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de:
a) 30 (trinta) metros, para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura;
b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura;
c) 100 (cem) metros, para os cursos d’água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de largura;
d) 200 (duzentos) metros, para os cursos d’água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura;
e) 500 (quinhentos) metros, para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros;
(…).
[2] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6387022, o em 12/06/2024.
[3] STF. ADI n. 7.146/2022. Petição Inicial – p. 21. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=6387022, o em 12/06/2024.
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