Opinião

Aplicação intertemporal da Lei 14.879, que trata de eleição de foro

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17 de junho de 2024, 20h57

Em sua redação original, prestigiando a autonomia de vontade das partes, o Código de Processo Civil permite que elas convencionem o foro (local) de julgamento dos processos relacionados ao seu contrato, faculdade que é muito utilizada em contratos nacionais e internacionais, caracterizando um dos mais comuns negócios jurídicos processuais.

No início deste mês (5/6/2024), a Presidência da República sancionou a Lei nº 14.879/2024, a qual altera a regra até então vigente de eleição de foro prevista no artigo 63 do C.

A nova redação do artigo 63 a a introduzir grandes limitações à liberdade das partes nessa matéria. Agora, somente poderão ser escolhidos locais que tenham relação com o domicílio ou a residência das partes ou em que a obrigação deva ser executada. Fica proibida a escolha de uma Justiça estadual que inspire maior confiança nas partes, normalmente por ter maior experiência com o tipo de litígio que elas anteveem poderá vir a surgir do seu relacionamento.

Congestionamentos processuais

Segundo a justificativa apresentada pelo deputado Rafael Prudente [1], autor do projeto agora transformado em lei, a escolha do foro não pode ser arbitrária e abusiva, pois isso seria contrário ao princípio da boa-fé objetiva. O projeto de lei argumenta que, com frequência, as partes escolhem tribunais com um “melhor desempenho”, mesmo que estes não estejam diretamente relacionados ao conflito em questão. Essa prática estaria supostamente contribuindo para congestionamentos processuais.

Vale destacar que a nova legislação reflete uma postura que já começava a receber algum respaldo nos tribunais. No Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF) [2], por exemplo, mesmo diante da ausência de previsão legal sobre o assunto, alguns magistrados já vinham proferindo decisões que consideravam ineficazes certas cláusulas de eleição de foro, sob a justificativa de que a escolha pelas partes do local de processamentos dos litígios decorrentes do contrato não pode ocorrer de forma arbitrária, sem uma conexão adequada entre as obrigações do contrato e esse local, pois isso configuraria abuso de direito e violação ao princípio do juiz natural.

Validade

Ao repercutir a edição da nova lei, alguns escritórios de advocacia e analistas levantaram a possibilidade de que venha a prevalecer o entendimento de que essa lei atingiria inclusive os contratos celebrados anteriormente, ainda sob a vigência da norma anterior, que previa a total liberdade nessa matéria, chegando a recomendar que os contratos em vigor sejam revistos para adequação à nova lei.

Na minha perspectiva, entretanto, essa preocupação não se justifica. O artigo 5º, XXXVI, da Constituição é explícito ao afirmar que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Além disso, o artigo 6º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, desde 1942, estipula que “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”. O contrato firmado antes da entrada em vigor da lei é um exemplo claro de ato jurídico perfeito.

Natureza da lei

Nem se diga que, por tratar da escolha do local de processamento de um feito judicial, a lei em questão teria natureza de norma processual e, nos termos do artigo 14 do Código de Processo Civil, poderia ter aplicação imediata, inclusive para determinação do foro competente em um processo iniciado a partir de agora com base no contrato anterior.

Em primeiro lugar, é discutível a natureza processual da norma em questão, tendo em vista que ela dispõe sobre o conteúdo de um contrato, o que é típico de normas substantivas de natureza obrigacional. Além disso, o dispositivo do C também expressamente ressalva que a aplicação imediata das normas deve respeitar as situações jurídicas que se consolidaram sob a vigência da norma revogada, o que parece ser justamente o caso.

Rever os contratos que elegeram locais para processamento dos feitos que agora, na vigência da nova lei, não poderiam mais ser escolhidos, seria violentar a vontade que as partes livre e licitamente manifestaram, algo que deve ser considerado com muita cautela.

 


[1] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2257620&filename=PL%201803/2023

[2] Como exemplo o processo 0730366430228070000, de relatoria do des. Roberto Freitas Filho da 3ª Turma Cível do TJDFT, julgado em 17.11.2022 e o processo 07214378420238070000, de relatoria do des. Alvaro Ciarlini da 2ª Turma Cível do TJDFT, julgado em 02.08.2023.

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