Opinião

Em tempos de acirramento nas relações, é correto tributar a generosidade?

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  • é advogado mestre e doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor do Mestrado Profissional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e da Escola Superior da Advocacia da OAB-RS.

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20 de junho de 2024, 19h44

A generosidade é um valor prestigiado pelas mais variadas culturas. Nossa Constituição consagra o valor da solidariedade e nos define como uma sociedade fraterna. Se a Constituição define como objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade solidária (artigo 3°, I), seria issível que o Estado pudesse tributar o ato de solidariedade?

Joédson Alves/Agência Brasil

A pergunta é pertinente ante a catástrofe que assolou o estado do Rio Grande do Sul, vitimando dezenas de pessoas e deixando um rastro de destruição. Por outro lado, foi possível também testemunhar uma corrente de solidariedade que enche de esperança o povo gaúcho. Assim, seria correto tributar a generosidade? Penso que não.

Imunidades

A Constituição confere aos estados e Distrito Federal a prerrogativa de instituir imposto sobre a transmissão em razão da morte e sobre doações, o conhecido ITCD ou ITCMD (artigo 155, I). O texto constitucional não fazia qualquer referência ou discrímen em relação a doações com fins filantrópicos, muito embora já existisse a imunidade para tais instituições (artigo 150, VI, c).

O constituinte derivado inseriu duas importantes regras de exclusão de competência tributária para duas situações que interessam ao presente questionamento. A primeira modificação é trazida pela Emenda Constitucional n° 126 em 2022, criando uma imunidade para doações que visem mitigar efeitos das mudanças climáticas:

“Art. 155. (…) § 1°. (…) V – não incidirá sobre as doações destinadas, no âmbito do Poder Executivo da União, a projetos socioambientais ou destinados a mitigar os efeitos das mudanças climáticas e às instituições federais de ensino”

A segunda alteração no texto constitucional introduz a imunidade para doações a instituições sem fins lucrativos, no bojo da reforma tributária promulgada na Emenda Constitucional n° 132/2023:

Art. 155. (…) § 1°. (…)VII – não incidirá sobre as transmissões e as doações para as instituições sem fins lucrativos com finalidade de relevância pública e social, inclusive as organizações assistenciais e beneficentes de entidades religiosas e institutos científicos e tecnológicos, e por elas realizadas na consecução dos seus objetivos sociais, observadas as condições estabelecidas em lei complementar. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)

Como se sabe, quando a Constituição contempla uma norma imunizante, o efeito é retirar o poder de tributar do ente. Não há falar em norma regulamentadora, muito menos se pode sustentar eficácia contida da regra constitucional. Se a Constituição proíbe tributar, o ente federado não pode exercer tal prerrogativa e pronto. Na visão do Supremo, eventual restrição da imunidade somente pode ser estabelecida por lei complementar e não o reverso, conforme decidido na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.480.

No âmbito da regulamentação da reforma tributária, o governo federal encaminhou ao Congresso o Projeto de Lei Complementar que reconhece a imunidade constitucional e não estabelece qualquer restrição (artigo 160 do PLP).

Preocupa a redação conferida ao artigo 160, § 5° que amplia a noção de doação para alcançar fenômenos que não se encontram no espectro de incidência do ITCD, todavia a abordagem desse dispositivo extrapolaria os limites desta publicação.

Para além da catástrofe

Em suma, pode-se dizer que as doações realizadas para as finalidades antes referidas estão protegidas pelo manto das normas imunizantes e sequer deveriam gerar controvérsias.

Ocorre que muitas doações são realizadas para entidades que não são consideradas filantrópicas mas que se dispam a coordenar esforços e ajudar. Estariam essas doações sujeitas à incidência do ITCD? Parece-me que a regra do artigo 155, § 1°, V socorre as doações no emblemático caso do Rio Grande do Sul porque ninguém duvidará de que tais doações visaram mitigar os efeitos de um evento vinculado às mudanças climáticas como o ocorrido em maio de 2024.

Não se pode sustentar que a doação seria apenas para evitar as tragédias climáticas e não poderia alcançar as medidas de socorro a eventos extremos. No entanto, a reflexão vai para além da catástrofe e lança luz sobre o generoso ato de ajudar o próximo e que não esteja vinculado à instituição pública ou entidade filantrópica.

Infelizmente, essas doações ficam sujeitas às regras de isenção de cada estado que, segundo seu critério de conveniência e oportunidade dispensa o recolhimento do imposto sobre doações de pequeno valor.

Doação e receita

Por derradeiro, cumpre analisar o reflexo das doações no âmbito de pessoas jurídicas no tocante à apuração do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e a Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS).

Esses tributos são apurados a partir do reconhecimento de receita tributável, o que remete ao seguinte questionamento: poderia uma doação ser considerada como receita? Pode soar incoerente, mas há posicionamento no sentido de considerar doações como ível de incidência dos referidos tributos, como se pode observar na Solução de Consulta Cosit n° 111 de 2016.

Em outro caso que envolvia uma pessoa jurídica como mera intermediária entre o doador e donatário, a Receita Federal exarou a Solução de Consulta Cosit n° 48 de 2022 que afastou a tributação sobre valores que somente transitaram nas contas de titularidade da empresa. Há ainda a Solução de Consulta Cosit n° 68 de 2020 que afasta a incidência da tributação de imóvel doado por contribuinte optante do lucro presumido.

Tributar a generosidade?

Em tempos de acirramento nas relações sociais, retomada de conflitos e guerras, é preciso voltar aos preceitos seculares que fundaram e desenvolveram a civilização humana e que erigem a generosidade como valores importantes para a construção de uma sociedade livre e fraterna como preceitua o preâmbulo da nossa Constituição.

Reitero que a doação, como ato de generosidade e amor ao próximo, deve estar interditada à incidência de qualquer tributo ante a inequívoca inexistência de qualquer manifestação de riqueza ou capacidade contributiva, senão apenas a expressão de amor ao próximo.

 

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