Legalidade do imposto de renda na permuta de criptoativos
20 de junho de 2024, 16h34
A criação do Bitcoin por Satoshi Nakamoto, usando a tecnologia disruptiva da blockchain, marcou o início da revolução dos criptoativos. Desde então, o mercado de criptoativos expandiu-se rapidamente e agora inclui criptomoedas, tokens tokenizados e NFTs (tokens não fungíveis). Este avanço tecnológico mudou completamente o mercado financeiro, mas também trouxe muitos problemas para os sistemas regulatórios e fiscais.

Por meio da Instrução Normativa RFB nº 1.88/2019 tornou obrigatório declarar criptoativos no imposto de renda. As Soluções de Consulta Cosit nº 214 e Disit nº 6.008 estabeleceram que a transferência de criptoativos seria considerada um ganho de capital quando tributada. No entanto, há um debate sobre a legalidade dessa exigência fiscal, principalmente quando se considera o conceito jurídico de renda e proventos, que requer um acréscimo substancial no patrimônio.
Fundamentos da tecnologia blockchain
Com a criação do bitcoin por Satoshi Nakamoto em 2008, surgiu a tecnologia blockchain, também conhecida como “cadeia de blocos”. É uma estrutura de dados distribuída que funciona como um registro digital público e seguro e armazena dados de transações de forma descentralizada e imutável. Essa tecnologia, que usa criptografia sofisticada para garantir a integridade e autenticidade dos dados, permite que as partes façam transações diretas sem a necessidade de intermediários.
Cada bloco da cadeia contém um hash criptográfico, que funciona como uma impressão digital única, bem como um conjunto de transações. Cada bloco é conectado ao bloco anterior por este hash, formando uma cadeia de registros que não pode ser quebrada. A estrutura da blockchain garante que qualquer alteração em um bloco específico invalidará todos os blocos subsequentes, tornando a blockchain resistente a erros.
Além da criptografia, a blockchain usa mecanismos de consenso como o Proof of Work (PoW) e o Proof of Stake (PoS) para validar e adicionar novos blocos à cadeia. O PoS escolhe validadores com base na quantidade de criptomoedas que possuem, enquanto o PoW, usado pelo Bitcoin, exige que os mineradores resolvam problemas matemáticos complicados.
Os programas de computador conhecidos como contratos inteligentes executam automaticamente os termos de um contrato quando as condições pré-estabelecidas são atendidas. Esses contratos foram introduzidos pela rede Ethereum e são essenciais para a implementação de aplicações descentralizadas e finanças descentralizadas.
Os contratos inteligentes garantem transparência, imutabilidade e execução automática diretamente na blockchain. Isso reduz os custos operacionais, aumenta a eficiência das transações e diminui o risco de falhas humanas.
Os contratos inteligentes têm o potencial de transformar completamente a conformidade fiscal e a arrecadação de impostos na área tributária. Eles podem ser programados para calcular e recolher impostos automaticamente com base em transações registradas na blockchain. No entanto, para que seja executado, é necessário um arcabouço jurídico sólido e conforme às leis tributárias em vigor, bem como uma base tecnológica sofisticada.
Receita Federal e tributação de criptoativos
Criptoativos são definidos como “representações digitais de valor denominadas em unidades de conta próprias, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionados eletronicamente com a utilização de criptografia e tecnologias de registros distribuídos”, de acordo com a Lei nº 1.888/2019. Além de criptomoedas, NFTs e outros tokens, vários tipos de ativos digitais estão incluídos nesta descrição.
Quando as transações envolvendo criptoativos são realizadas em exchanges domiciliadas no exterior ou fora do ambiente de exchanges, as pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no Brasil são obrigadas a informar a norma. Além disso, a Lei 1.888/2019 estabelece que as operações de compra e venda, permuta, doação, transferência e outras formas de transações devem ser documentadas, mesmo aquelas em que não há movimentação financeira direta.
Essa regulamentação tem uma variedade de consequências. Por um lado, um instrumento eficaz para monitorar a movimentação de criptoativos é fornecido à Receita Federal, o que aumenta a transparência e a capacidade de fiscalização. Por outro lado, os contribuintes têm novas obrigações órias que exigem que eles verifiquem cuidadosamente o que está sendo feito para evitar erros que podem resultar em multas.
Soluções para as consultas Cosit 214/2021 e Disit 6.008/22
As Soluções de Consulta Cosit nº 214, de 20 de dezembro de 2021, e Disit nº 6.008, de 24 de maio de 2022, consolidaram o entendimento da Receita sobre a tributação de transações de criptomoedas. Esses pareceres afirmam que a permuta de criptoativos está sujeita à tributação do imposto de renda das pessoas físicas e é equiparada à alienação para fins de apuração de ganho de capital.
As soluções de consulta acima esclarecem que as alíquotas progressivas estabelecidas no artigo 21 da Lei nº 8.981/1995, que variam de 15% a 22%, dependendo do valor do ganho é importante observar que operações cujo valor total de alienação no mês não exceda R$ 35 mil são excluídas (atualmente — junho de 2024).

O conceito de permuta e alienação tem sido objeto de disputas. A Receita Federal diz que a permuta cria um acréscimo patrimonial porque envolve a troca de ativos. No entanto, alguns especialistas contestam essa interpretação, argumentando que a permuta por si só não resulta em um aumento real no patrimônio, pois os ativos que foram permutados podem ter valores idênticos, o que significa que eles não geram disponibilidade econômica ou lucro efetivo.
Para fins de declaração e tributação, a Receita divide os criptoativos em várias categorias. Entre os grupos principais de criptoativos estão:
- Bitcoin (BTC): a primeira e mais conhecida criptomoeda, frequentemente referida a outras criptomoedas.
- Altcoins: criptomoedas alternativas ao bitcoin, como ethereum (ETH), litecoin (LTC) e outras.
- Coins estáveis: criptomoedas conectadas a ativos estáveis, como moedas fiduciárias (como o USDT e o USDC), com o objetivo de diminuir a volatilidade.
- NFTs: são ativos digitais únicos que servem como representação da propriedade de itens específicos, como colecionáveis e arte digital.
- Outros criptoativos: tokens de utilidade, tokens de segurança e outros ativos digitais não listados acima.
A criação de códigos exclusivos para cada tipo de criptoativo na ficha “Bens e Direitos” da declaração de imposto de renda reflete a diversidade do mercado de criptoativos e a necessidade de uma abordagem distinta para cada tipo de ativo. Essa classificação ajuda a identificar e monitorar as várias atividades dos contribuintes.
No entanto, a extensão da definição e classificação da Receita Federal de criptoativos também apresenta desafios. A volatilidade e a natureza intangível desses ativos dificultam a avaliação e a comprovação do custo de aquisição. Isso pode resultar em dificuldades na apuração do ganho de capital e na determinação da base de cálculo do imposto devido.
Conceito de renda e proventos de qualquer natureza
Para fins tributários, o conceito de renda abrange tanto os lucros do trabalho quanto os do capital, bem como os resultados da combinação de ambos. A fim de evitar brechas que possam resultar em evasão fiscal, a frase “proventos de qualquer natureza” é usada para garantir que quaisquer ganhos patrimoniais que não sejam considerados renda direta sejam igualmente tributáveis.
A legislação infraconstitucional complementa este arcabouço constitucional, especificando os requisitos e condições para a tributação da renda e dos proventos. A interpretação desse dispositivo deve estar em conformidade com os princípios constitucionais da legalidade, da capacidade contributiva, da isonomia e da segurança jurídica, que são os pilares do sistema tributário nacional.
Em seu artigo 43, o Código Tributário Nacional (CTN) estabelece os padrões materiais para a hipótese de incidência do imposto de renda e define juridicamente o conceito de renda e proventos de qualquer tipo. Este dispositivo afirma que a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de renda, que pode ser definida como o resultado do trabalho, do capital ou da combinação de ambos, e de proventos de qualquer tipo, incluindo acréscimos patrimoniais que não foram entendidos no conceito anterior
A disponibilidade jurídica diz respeito ao direito do contribuinte de dispor desses recursos, mesmo que ainda não tenham sido recebidos. Em contraste, a disponibilidade econômica refere-se à efetiva entrada de recursos financeiros no patrimônio do contribuinte.
Essa dualidade visa capturar todas as formas possíveis de aumento de riqueza, garantindo que qualquer aumento de riqueza seja tributável, independentemente de sua origem ou forma de realização. Um aumento no patrimônio real do contribuinte é necessário para que o imposto seja devido.
As interpretações do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça sobre os conceitos de renda e proventos de qualquer tipo foram essenciais para o entendimento jurídico da questão. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.588, o STF, diferenciando-se da mera expectativa de ganho futuro, afirmou que a renda tributável deve demonstrar um acréscimo patrimonial efetivo.
O Supremo determinou que, enquanto a disponibilidade jurídica envolve a possibilidade de dispor de um direito de crédito, mesmo que não haja ingresso imediato de recursos financeiros, a disponibilidade econômica implica a percepção efetiva de renda. A jurisprudência do STF tem enfatizado a importância de um acréscimo patrimonial real e eficaz para evitar a tributação de ganhos imaginários ou possíveis.
Por sua vez, o STJ decidiu que a tributação da renda deve levar em consideração a eficácia do acréscimo patrimonial. A Corte Suprema tem enfatizado várias vezes que a mera expectativa de ganho ou valorização potencial de ativos não constitui disponibilidade econômica ou jurídica, portanto, não pode ser considerada um fato gerador do imposto de renda.
A análise da tributação de transações de permuta de criptoativos depende dessa compreensão, pois se discute se essas transações produzem um aumento real no patrimônio, o que significa que deve ser tributado. A interpretação cuidadosa dos conceitos de disponibilidade jurídica e econômica visa garantir que apenas ganhos reais e efetivos sejam tributados de acordo com a Constituição.
Permuta de criptoativos e legalidade da tributação
Em termos de criptoativos, a permuta refere-se à transferência de criptomoedas ou outros ativos digitais entre pessoas ou entidades. A troca direta de vários tipos de criptoativos pode ser mais econômica e eficaz do que a venda e compra posteriores, por isso é uma transação comum no mercado de criptoativos.
A principal característica da permuta é a equivalência dos bens trocados. Na permuta, os valores dos ativos permutados são considerados iguais, não gerando um aumento de patrimônio imediato para nenhuma das partes envolvidas. Isso difere de uma venda, onde a propriedade é transferida por meio de pagamento. Essa parte é importante para a análise tributária porque levanta dúvidas sobre a existência do fato gerador do imposto de renda.
De acordo com a jurisprudência brasileira, principalmente a do STJ, a permuta de imóveis não pode ser considerada alienação para fins de tributação do ganho de capital desde que não haja recebimento de torna (em dinheiro). O argumento que sustenta essa equiparação é que não há aumento no patrimônio real como resultado da troca de bens com valores equivalentes.
A negociação de criptoativos também deveria seguir a mesma lógica. Se dois criptoativos de valores iguais são trocados, apenas os ativos são trocados em vez do patrimônio das partes. Por outro lado, as Soluções de Consulta Cosit nº 214/2021 e Disit nº 6.008/2022 considerou a transferência de criptoativos como alienação e sujeitou-os à tributação do ganho de capital, o que gerou muita controvérsia.
O conceito de acréscimo patrimonial, que ocorre quando há renda legal ou econômica disponível, serve como base para a tributação do imposto de renda. A principal questão quando se trata de permuta de criptoativos é determinar se a transação resulta em um aumento no patrimônio que deve ser tributado.
A disponibilidade jurídica significa que você pode usar esses recursos, mesmo que ainda não tenham sido recebidos. Por outro lado, a disponibilidade econômica significa que os recursos financeiros entram efetivamente no patrimônio do contribuinte. A permuta de criptoativos não altera o valor patrimonial líquido do contribuinte; em vez disso, ela simplesmente substitui um ativo de valor equivalente por outro, sem gerar liquidez ou riqueza imediata.
A jurisprudência do Supremo tem enfatizado que o aumento patrimonial tributável deve ser concreto e eficaz. No caso das permutas, apenas a troca de ativos de valores semelhantes não constitui um ganho de capital realizável, portanto, a incidência do imposto de renda sob a ótica da capacidade contributiva é inviável.
Aspectos econômicos e volatilidade dos criptoativos
Ao contrário dos ativos financeiros convencionais, os criptoativos não têm lastro em ativos tangíveis ou base de valor intrínseca. O valor dele depende principalmente da oferta e da demanda no mercado, o que resulta em preços extremamente instáveis. Por exemplo, é incomum que o bitcoin, a primeira e mais conhecida criptomoeda, tenha flutuações diárias superiores a 10%.
A dificuldade de encontrar contrapartes para transações volumosas sem afetar significativamente o preço do ativo é um sintoma da iliquidez dos criptoativos. Essa característica é agravada em períodos de alta volatilidade, quando o spread, ou diferença entre os preços de compra e venda, pode aumentar significativamente, dificultando a realização de transações a preços justos.
A caracterização do acréscimo patrimonial para fins tributários é diretamente influenciada pela volatilidade dos criptoativos. Conforme definido pelo Código Tributário Nacional e interpretado pela jurisprudência, um ganho substancial é necessário para o acréscimo patrimonial. Devido à natureza especulativa e volátil dos ativos, essa exigência torna-se complexa no contexto de criptoativos.
Quando um criptoativo é trocado por outro, a alta volatilidade pode causar mudanças drásticas no valor em um curto período. No entanto, essas mudanças não sempre significam que o contribuinte ganhou mais dinheiro. Por exemplo, trocar uma criptomoeda altamente volátil por outra semelhante pode resultar em perdas significativas em pouco tempo, mesmo que os valores sejam iguais no momento da transação.
Como resultado, a volatilidade torna difícil usar os conceitos convencionais de disponibilidade econômica e jurídica porque os valores dos criptoativos podem mudar significativamente entre o momento em que os criptoativos são permutados e o momento em que o ganho (cash out) é realizado. Neste caso, a tributação de permutas de criptoativos deve levar em consideração não apenas o valor nominal da transação, mas também a capacidade do contribuinte de realizar esses valores de forma eficiente.
Conclusão
A análise cuidadosa da tributação de criptoativos no Brasil, particularmente no que diz respeito às permutas, revelou muitas objeções à estratégia da Receita Federal. Para começar, o fato de as permutas envolverem a transferência de ativos de valor equivalente não resulta em um acréscimo de patrimônio real, um requisito essencial para a incidência do imposto de renda de acordo com os princípios constitucionais de capacidade contributiva.
Além disso, devido à volatilidade e iliquidez inerentes aos criptoativos, calcular os ganhos de capital é um processo complicado e frequentemente injusto. O princípio da segurança jurídica pode ser violado pela imposição de tributação sobre permutas, sem considerar a realização efetiva de ganhos.
Existem sérias dúvidas sobre a legitimidade e a constitucionalidade da exigência fiscal imposta pela Receita Federal ara tributar as permutas de criptoativos. A renda, de acordo com a interpretação da jurisprudência do STF e do STJ, requer um aumento no patrimônio real e financeiramente viável. Parece que este princípio fundamental é violado pela aplicação do imposto de renda sobre permutas de criptoativos sem a realização de ganho real.
Além disso, comparar a permuta de criptoativos à alienação para fins fiscais ignora a natureza única das transações e a volatilidade dos ativos digitais. Pode-se pensar que esse tratamento fiscal é uma invenção jurídica que não está ligada às circunstâncias econômicas dos contribuintes. Além disso, está em conflito com os princípios da capacidade contributiva e da isonomia.
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