Embargos culturais

Hans Kelsen e a falsa imputação de culpas ao positivismo

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23 de junho de 2024, 8h00

Foi em ambiente de repulsa ao positivismo que se hostilizou Hans Kelsen, um pensador que fora perseguido pela barbárie nazista, o que nos indica contradição. Hans Kelsen nasceu em Praga, em 1891, quando as margens do Moldava ainda pertenciam ao Império Austro-Húngaro. Kelsen privou dos neopositivistas lógicos do Círculo de Viena, nutrindo a purificação das ciências em face de preocupações metafísicas, na crise epistemológica que itia que a ciência não poderia pronunciar juízos de valor.

Arnaldo Godoy

Kelsen foi o autor intelectual da Constituição republicana austríaca. Lecionou na Universidade de Viena de 1919 a 1929. Foi juiz na Áustria por nove anos, de 1921 a 1930. Em 1934 publicou sua Teoria Pura do Direito. Fugiu do nazismo e foi recebido nos Estados Unidos, em Berkeley, onde lecionou até 1952. Em outubro de 1973, aos 92 anos, morreu na Califórnia.

Kelsen foi injustamente acusado de reducionista por ter defendido alguma pureza científica no que se refere ao Direito. A ciência jurídica seria ciência pura, preocupada com normas. Retomou kantianamente a teoria da norma fundamental, radicada na primeira norma posta, de feição constitucional. A norma posta deve-se a uma norma suposta; a norma hipotética fundamental vem solucionar a questão do fundamento último da validade das normas jurídicas. Afinal, o que legitima o Direito? No limite, pode-se itir um direito legítimo na ordem nacional-socialista?

Estado e Direito se confundem em Kelsen. Não haveria leis inconstitucionais ou decisões ilegais. Paradoxo talvez vivido pelo próprio Kelsen, supostamente forçado a itir a eficácia do Direito nazista. Para o mestre de Viena o cientista do Direito deve preocupar-se com a lei, e com problemas de aplicabilidade desta, tão somente. Kelsen nos dá conta de que o conhecimento jurídico só é científico se tentar ser neutro. A pureza do Direito decorreria de corte epistemológico que definiria o objeto e de um corte axiológico que afirmaria a sua neutralidade. Para Kelsen, autêntica é a interpretação do Direito pelos órgãos competentes: a decisão judicial qualificaria uma norma jurídica individual.

Seu livro mais importante, A Teoria Pura do Direito, é dividido em oito seções. Kelsen tratou nesse livro das relações entre Direito e natureza, Direito e moral, Direito e ciência, das normas chamadas estáticas, das normas chamadas dinâmicas, das relações entre Direito e Estado, do Direito Internacional e do problema da interpretação do Direito. A teoria pura do Direito, como teoria, procura descrever seu objeto, tratando o Direito como ele efetivamente é, e não como ele deve ser, isto é, afasta-se de paradigmas políticos. Tem como base metodológica o projeto de eliminar do Direito seus elementos estranhos, de cunho político e sociológico. É que o pensamento normativo do século XIX teria promovido uma adulteração do Direito, por causa da livre interpenetração de outras disciplinas no universo normativo.

As normas são o objeto da ciência do Direito. Os costumes podem criar normas legais ou morais. A validade é a existência específica de uma norma. E ainda, a norma pode ser válida até mesmo quando seu ato de vontade não tenha mais existência. A validade qualifica um deve, a eficiência caracteriza um é, e a diferença transcende questões de formatação verbal. Assim, na validade a norma deve ser cumprida, na eficácia a norma é efetivamente cumprida. Uma norma legal é válida antes mesmo de ser efetiva. A norma não seria verdadeira ou falsa, seria apenas válida ou não válida. Uma decisão judicial não seria tão somente a explicitação de um julgamento; tratar-se-ia também de norma que determinado juiz aplica. Dizer-se que uma norma é injusta seria medida insuficiente para se reconhecer que existe uma ordem legal.

Quanto às relações entre Direito e Ética, parte-se do princípio que a pureza metodológica da ciência do Direito estaria ameaçada porque não se separa claramente esse último da Ética, tomando-se essa como a disciplina que tem por objeto conhecer e descrever a moral, que é delineada por um costume ou por um ato de vontade. A validade de uma norma jurídica independeria de sua ordem moral. Já Paulo, na carta aos romanos, determinava que se cumprissem todas as normas das autoridades, não obstante a inexistência de laços de Ética e de Moral.

Um dos mais peculiares aspectos do Direito seria o fato de que ele mesmo regula sua criação e sua aplicação, percepção mais tarde aprofundada por Niklas Luhmann. No Direito, ao contrário da explicação da natureza, usa-se o princípio da imputação e não o da causalidade. Já o homem primitivo interpretava a natureza de acordo com a imputação, implementando interpretação sócio-normativa da natureza. As primeiras normas que o homem conheceu teriam sido contra o desejo sexual (incesto) e contra a vontade de agressão (homicídio). E porque somente o homem detém o livre arbítrio, é que somente o homem poderia se valer de juízos de imputação.

A teoria pura do direito dirige-se a normas, e não a fatos. Trata-se de percepção teórica radicalmente realista do Direito, da mais elaborada teoria do positivismo jurídico. o que consta, recusa-se a servir a interesses políticos, negando-se a propiciar  ideologia que apoie ou critique determinado modelo jurídico. Uma norma inconstitucional seria válida até que especificamente anulada, e de tal modo, ela não é nula, é tão simplesmente anulável. Encontra-se no terreno da dinâmica das normas, porque que a questão da validade de uma norma decorreria da validade de uma outra norma.

A busca de uma regra cada vez mais alta no escalonamento hipotético levaria o cientista do Direito a uma norma pressuposta, que Kelsen chamará de norma básica. As normas seriam então de natureza estática ou dinâmica; a estática decorreria do referencial que justificaria as razões de validade de uma norma básica, a dinâmica decorreria do referencial que justificaria a validade das demais normas de determinado sistema.

Um dos pontos centrais da teoria pura dá-nos conta de que é irrelevante como se tomou o poder político, por revolução, por golpe de Estado ou por voto popular. Qualquer norma resultante do titular do poder é válida e apta para produzir efeitos. Trata-se do princípio da legitimidade, segundo o qual, toda norma seria válida até que oficialmente declarada inválida. Deduz-se do princípio da legitimidade o princípio da efetividade, isto é, se uma revolução não obteve suficiente sucesso para produzir um novo ordenamento, uma nova constituição, vale então a constituição pretérita, e o movimento revolucionário a a ser tido como de alta traição.

A concepção de que qualquer sisterma normativo poderia deter validade, pelo simples fato de que se trata de um sistema, é o calcanhar de Aquiles das concepções jurídicas e políticas de Hans Kelsen, quando cotejadas com a experiência do nacional-socialismo, do qual também foi vítima.

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